quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Saber dançar - fator de seleção natural.

Em 22 de junho de 2009, à noite, estava no forró no Arsenal de Marinha, em Recife. Percebo um alvoroço, fico surpreso e logo sou informado de que é antevéspera do dia de São João e que as pessoas estão ansiosas e se preparando para 24, ‘o grande dia’.  

A movimentação é intensa e não demorei a compreender que dançar é uma questão de sobrevivência, de preservação da espécie, fator de seleção natural. Quem sabe dançar chega mais longe, é mais competitivo.

Apesar do meu preconceito com o forró, alimentado durante toda a minha vida devido a um trauma, acabo parando, junto com colegas que participam de um congresso científico, em uma tenda de forró montada pela prefeitura. O som é contagiante e o ritmo inigualável: todos estão balançando o corpo. A sensualidade de um casal dançando um forro quase em câmera lenta me desperta uma grande inveja. Com a chuva fina que cai teimosamente e o vento frio, tudo o que queria naquele momento era estar com o meu amor e como aquele casal: corpos germinados, a minha perna invadindo o meio das pernas dela que se escora no meu joelho e coxa. As nádegas arrebitadas dela, balançando gostoso, dirigem meus pensamentos e, de tanto que ela mexe, dão mais consistência à mistura de imagens e sensações que experimento.

Toca um forró atrás do outro e as mulheres ficam olhando para os estrangeiros, quem, afinal, não deixamos mesmo de ser. Poucos de nós reagem aos olhares desejosos delas, a maioria fica na observação. Os homens de lá avançam sobre as mulheres que acompanham os estrangeiros. Elas se rendem ao molejo deles, que mudam de cara a todo instante. Nós não somos páreos para eles, apesar do bom humor ou qualquer presumido atributo que nos diferencie. Eles têm molejo, requebrado, chamam atenção. A situação me incomoda: “Como assim ceder espaço sem reagir? E o perder dignamente, lutando o bom combate, onde fica?”. Denise, uma bela recifense que dançava sozinha e que me recebeu com um largo sorriso quando cheguei já está rodeada por três estrangeiros e muito feliz com a disputa por ela. Perdi a luta e não considerei um bom combate minha única e lastimável ação de ter ido até ela e perguntado o nome.

Reajo, abordo uma mulher bem requebradora e, sem perguntar seu nome, proponho a dança. Ela aceita, mas não demoro a perceber que reagi sem pensar direito: ela nota que não sei dançar, resmunga, peço para me ensinar e ouço o pior vaticínio de toda a minha vida de homem reativo: “Quero um homem que me conduza, não quero conduzir ninguém”. Ela me deixa na mão no meio do salão. Um recifense bom de dança a agarra e a conduz. Não fico para ver os dois apertadinhos, coladinhos um ao outro, encaminhando, quem sabe, um ‘felizes para sempre’. Um recifense que nos acompanha analisa calmamente meu ocaso: “Ela está certa, é a noite dela, é a chance para encontrar o amor que pode ser o da vida dela. Para uma pernambucana isso não rola com um homem que não sabe dançar”.

A senha do viver emerge requebradora à minha frente: dançar é código de vida, seleção natural, fator de sobrevivência e evolução da espécie para os desafios da condução do outro pela vida. O homem reativo está drasticamente exposto à extinção, não conduzirá ninguém. Captada a lição, paro reflexivo contemplando o gingado dos dançarinos patrocinados por uma marca de cachaça que animam outra tenda. Feito bobo, fico contemplando e desejando as lindas dançarinas profissionais. De repente, os dançarinos improvisam uma quadrilha e logo circundam as pessoas que os observavam. “Quadrilha de São João!”, avisa o locutor enquanto os dançarinos vão nos envolvendo formando um quadrilhão imenso.

Fico tenso, a música em Recife é gatilho para incômodas lembranças da minha puberdade, em 1982, quando vizinhos organizaram uma festa junina e uma quadrilha. Lembro que à época não me saí bem naquele instante coletivo: não suportei não ter jeito para a coisa, as críticas e esporros de quem nos treinava e as zoações de colegas e, como consequência, não dancei, fui trocado por alguém que certamente não achou bobo se fantasiar de caipira, se pintar com um falso bigode e usar aquela roupa toda costurada, traços da péssima representação que guardei de festa caipira. Desde então, me esquivo dela. Fui um grande babaca, pois só um apresenta essa justificativa para a falta de humildade em ser mais um em mais um episódio comum da vida comum que temos, a falta de molejo ou jogo de cintura e de um espírito de festa.

Em Recife, tinha como fugir, mas resolvi encarar: estava envolvido pela quadrilha improvisada na tenda e onde a adesão à dança é feita de maneira espontânea e muito bem-humorada. Dezenas de casais se acumulavam, enquanto observava e a música tocava nervosa. A quadrilha deu a partida e a temperatura aumentou bruscamente. Fico olhando o fenômeno até que uma morena sorridente aparece em minha frente. “Você faz par comigo?”. Não penso duas vezes, faço par com Josiane, exponho minha falta de molejo, meu fator de exposição à extinção. Ela nota e diz: “Relaxa”. Fazemos as evoluções e, numa delas, leio tatuado perto da sua nuca: “O tempo muda e nós mudamos com ele”. O porquê da frase me é logo explicado: tatuou após separação traumática do seu grande amor, que a deixou, largou o casamento. E complementa: “Essa frase resume o meu aprendizado: agora quero viver, curtir a vida”. A dança continua, ela pergunta se estou gostando e defino: “Você não sabe o bem que me faz, dancei a primeira quadrilha de minha vida. O tempo muda, né?”.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A carona ao Sr. Sebastião

Na manhã de 4 de maio de 2009, sábado, participei de um dos momentos mais hilários, sensíveis e educativos de minha vida.

Nesse dia, tive o prazer de assistir a dignidade humana responder ao empobrecimento da vida que se dá por meio da repetição e banalização de atos brutos e grossos.

Dirigia para Paracambi quando o motorista de um ônibus não parou no ponto para pegar um senhor negro e idoso que solicitava parada. Apesar dos gestos desesperados dele, que ainda correu acreditando que o ônibus pararia mais à frente, o motorista não parou. Indignado, parei e perguntei o destino dele. Respondeu que era Paracambi e não pensou duas vezes para aceitar a carona e entrar. Dar carona para ele se tornou uma questão de honra, ainda que não nos conhecêssemos.

Ele se chamava Sebastião José de Souza, peão de obra aposentado, oriundo da cidade Porto Novo do Cunha. Veio parar em Seropédica por ocasião da obra da represa da Light, em Piraí, fixando residência no bairro Cabral, onde plantava mandioca. Um idoso com aparência saudável, marcha segura, postura ereta, sem dificuldades aparentes. Vestia-se sobriamente: calça, camisa e sapatos sociais. Figura fácil para conversar. Para lhe deixar seguro, me apresentei como professor da UFRuralRJ.

Àquela altura, o objetivo da carona era vingar o Sr. Sebastião, deixado daquela maneira em um ponto de ônibus por um motorista jovem, alguém que certamente será um futuro idoso e que dependerá da gratuidade e dos ônibus para desenvolver suas atividades. Conforme nos aproximávamos do ônibus, planejei emparelhar, buzinar, abrir o vidro e apresentar ao motorista a figura daquele senhor que abandonou no ponto minutos antes.

Eu entendia que era uma maneira de sinalizar para o desumano motorista que sua ação tosca, a banalização de um ato de desmerecimento de um cidadão, não passaria em branco. Também pensei que se houvesse nele qualquer sentimento de estar levando vantagem em relação àquele idoso, ele não a teria levado, pelo contrário, teria perdido e feio. 

Emparelhamos com o ônibus e sugeri ao senhor Sebastião um ato mais ousado, uma obscenidade. Fui veemente no meu desejo de vingança e a quem estava submetido. Ele fez a de quem entendeu minha mensagem e pôs a cara para fora do meu carro. Para minha surpresa, ao invés de fazer o gesto obsceno que demonstrei, ele dava um sorridente tchau para o algoz dele. Voltou à posição normal de carona e, sorrindo para mim, disse: “Mostramos o que ele merecia”. Senhor Sebastião estava vingado.

Minutos depois, chegamos a Paracambi e ele finalizou nosso encontro dizendo: “Onde o Sr. parar está bom para mim. Cheguei onde queria e vim de maneira diferente: vim de carona com um Doutor! Obrigado. Precisando de mim é só procurar pelo Sebastião Jose de Souza, lá no Cabral”.

Códigos do viver

Às vezes, viver se mostra simples, sugerindo ser possível mergulhar nele dispensando maiores reflexões para entendimento do que esse mergulho nos reserva. Noutras, ele marca sua presença pela complexidade, situação em que ficamos assustados, angustiados e/ou ansiosos em busca de entendimento do que faz parte dessa reserva uma vez dado o mergulho.

Viver é surpreendente. As leituras disponíveis distribuem entre extremos: já disseram que é preciso saber viver -- aprender é fundamental -- e decidiram que viver não é preciso como a navegação -- nem todo aprendizado dá conta do viver. Entre o certo e o incerto, e o simples e o complexo do viver, precisamos lidar com um desafio: as mensagens estão sempre codificadas, solicitando uma providencial decifração das senhas para compreensão ou produção de entendimentos e elaborações.

Nos textos que segue apresento minhas leituras desse surpreendente do viver. São leituras a respeito dessa certa imprecisão dele, do que significa o dar conta do início, meio e fim da nossa passagem pelo ‘tempo-espaço-nexo de encontros’ que emerge ao nascermos.

Viver, embora sugira simplicidade e urgência, e por não poder ser adiado ou antecipado, está entremeado de normas, regras, disposições, regulamentos e leis a serem observados que às vezes o tornam repetitivo, previsível, enfadonho e pouco inspirador. Geralmente, temos conjuntos de preceitos ou normas de comportamento, como os códigos de conduta ou códigos de honra, que falam de delitos e sanções previstas. Tudo impositivo de um modelo para estarmos no mundo, castrador de nossos desejos e abafador da experiência afetiva, criativa e exploradora de viver enquanto ele se desenrola no agora da vida. O excesso de modelos, regras e normas acaba por nos impedir de compreender a inerente,  desafiadora e imanente complexidade do viver. Logo, viver reclama uma ética que norteie nosso modo de estar no mundo e encarar o viver, no que ele tem de simples e de complexo. Uma ética dos encontros, estes aleatoriamente distribuídos no tempo e espaço, mas sempre recheados de linguagens, secretas ou não, onde as palavras, gestos etc., mesmo que familiares, ganham significações diferentes e que merecem ser aprendidas. Esses blog e textos são por uma ética dos encontros.   

Enfim, é importante saber ler o que está oculto, posto nas entrelinhas ou misturado, de maneira que as mensagens do viver deixem de parecer que são incompreensíveis, inalcançáveis...indecifráveis. Viver é difícil, incerto, impreciso, insólito, mas é imprescindível, compreensível, alcançável...decifrável. Mais: pode ser relido e reinterpretado.

Códigos do Viver reúne minhas interpretações sobre esse fenômeno encerrado na passagem pelo ‘tempo-espaço-nexo de encontros’ a que tive direito. São interpretações feitas sobre eventos que vão dos mais densos e tensos aos mais simples possíveis e onde tive o desafio de captar e compreender a mensagem. 


Obrigado e boa leitura.

Marco Bauhaus