segunda-feira, 28 de março de 2011

Honrar encontros

São 9 de setembro de 2010, estou em São Paulo para rever primos e participar de um congresso na USP. Pela primeira vez em minha vida, fui vítima de roubo. Anteriormente, fui furtado em Belo Horizonte, em 1994.

Tudo se deu num arrastão, coisa que parece ‘exclusividade’ do Rio de Janeiro, como sugere a incidência da mídia. Que cena: um cidadão carioca subtraído de seus bens na terra da garoa, no estado das pessoas que, segundo velha provocação, trabalham para o resto do Brasil poder viver. Imagens à parte, o que sobra é a realidade: fui mais um cidadão brasileiro em São Paulo, cidade que é a imagem e materialização do progresso bastante idolatrado por muitos de nós, mas que na realidade é mais violenta que o Rio de Janeiro.

Havia um congresso na USP, mas o que eu mais queria era rever Marta e Edinho, primos caros à minha história de vida e a quem eu protelava o devido reencontro. Edinho eu não via há mais de seis anos, Marta há uns dois anos. A possibilidade do reencontro foi o fator decisivo para viajar, dado que estava cheio dessa coisa de fazer networking, algo artificial, porém muito aceito nos mundos acadêmico e de negócios. Imagens do cansaço e do pessimismo de um acadêmico altamente duvidoso da real vontade e disponibilidade dos seus vaidosos pares para compartilhar o conhecimento que presumimos ter. Não devo ser o único que pensa e sente que a academia é ‘mestre’ em fazer apologias a valores que nem sempre pratica.

Findo o congresso, Edinho me pegou na USP e me levou ao seu lar, no bairro da Lapa. Convivemos nos primeiros anos da minha adolescência, no início dos anos 80, e desse encontro ficaram marcas significativas. Ele sempre me chamava atenção para a necessidade de criar e produzir minha própria história, era perseverante e disciplinado na criação da dele, mas o que me chamava muita atenção eram seus valores e atitudes sempre serem orientados para ética, trabalho, religião e família. Vindo de Pedro Teixeira, MG, em Seropédica trabalhava como balconista de Supermercado para pagar os estudos. Trabalhava e estudava bastante e nunca reclamava, estava sempre sorrindo. Eu o conheci em uma fase difícil da minha vida e nele tive o acolhimento para, àquela época, poder falar sobre o que me deixava apreensivo. Ele sempre me dizia: seja humilde e tenha fé.

Em São Paulo, transformou sua vida: casado, duas filhas e profissional bem-sucedido, colhia da boa safra que preparou por toda a vida num esforço peculiar de sempre semear seu terreno com seus históricos valores. Respira-se isso em sua casa e a dinâmica de sua família nos leva a sentir essa energia. Fiquei pouco tempo por lá, mas a harmonia e ritmo que ele, Adriana e filhas encerram é algo confortador, uma experiência muito boa. Fui chamado para pernoitar, mas queria estar com Marta, com quem tive meus contatos mais fortes a partir dos anos 90, época dos meus vinte e poucos anos. Trabalhamos juntos na UFRRJ, onde fomos técnicos administrativos e dela recebi preciosas lições sobre trabalho, estudo, espiritualidade, coragem, objetividade e otimismo. Saiu do Rio e foi para São Paulo trabalhar, foi ser bandeirante na terra da garoa.

Preparava-me para pegar um taxi até a casa de Marta, quando Edinho decidiu me levar até lá. Às 21:30, na rua João Dias, chegando à avenida Giovane Gronch, porta de entrada do luxuoso bairro Morumbi, bandidos fecham o trânsito e saqueiam os carros, aterrorizando a todos, apontando armas direto para as cabeças. No carro, Edinho, família e eu. Preocupado com a família, sentada no bando de trás, Edinho praticamente se prostra, demora a responder aos comandos dos bandidos que, contrariados, exacerbam as ameaças. Tomado de espantosa calma, respondo aos comandos dos bandidos, entrego tudo o que foi solicitado. Foram-se pertences, dinheiro, cheques, cartões e documentos. A tensão não durou mais que cinco minutos.

Fora de perigo e mesmo ao lado de primos, vivenciei medo, angústia e frustração até chegar à casa de Marta. Para qualquer lugar que olhava, tudo que já era desconhecido se tornou mais hostil. Precisando de amparo, lembrei de que quatorze horas atrás eu beijava e abraçava fortemente minha filha e de algo impressionante: minutos antes do incidente, Julia, filha do Edinho, pediu insistentemente ao pai para cantar para mim a música que aprendeu na catequese:

“Vem amigo vem /Vem para entregar este coração que Deus te deu/ para amar não para odiar /Vem abre teus braços até aquele que está lá/ Vem abre teus braços ao teu irmão ao teu amigo/Dá-lhe um empurrão/ Dá-lhe um empurrão que de pouco a pouco ele se achega ao Senhor Nosso Senhor”.

Pedido interessante o de Júlia: seu cantar nos trouxe a calma para enfrentar o roubo.

Na portaria do prédio em que Marta morava, paramos para elaborar toda tensão e enfim chorar o que o susto nos impediu. Passado o pânico inicial, Edinho e família se foram.

Depois de ter sido acolhido e confortado, e de termos realizado que se foram os bens materiais, mas ficou a vida, Marta me surpreendeu com uma pergunta: “Se o pior lhe tivesse ocorrido hoje, você acredita que levaria consigo a certeza de ter honrado os encontros que teve nessa vida?”. Senti imediatamente o impacto da pergunta e me dei conta de que o código do viver estava sutilmente embalado por uma inusitada e profunda reflexão e exigia bastante tato na sua decodificação.

Acompanhado de Castelhano, marido de Marta, fui prestar queixa. Embora tudo fosse passível de reposição, não importando quanto tempo levasse, o que eu mais ressentia do que foi subtraído eram os documentos. A frustração ainda me faria companhia durante o longo período em que perambulamos por delegacias próximas ao bairro Morumbi que estivessem vazias e que pudessem registrar a ocorrência sem que isso nos custasse toda a madrugada. Enquanto espero atendimento na 34 DP, em Francisco Morato, pensei insistentemente em meus encontros, principalmente se nesses 39 anos de vida eu observei ou não a inerente honradez que possuem. “Honrei meus encontros? Honro meus encontros?”. Pensei no encontro com Maria Luiza, minha filha, no encontro que tive com sua mãe e que nos levou a formar uma família. Pensei no encontro que tive com meus pais, irmãos, tios e primos. Pensei no encontro com amigos, colegas de trabalho e de escola, e com meus alunos, pessoas que precisam de conhecimento, exemplos, atenção e orientação.

Muitos foram os encontros em minha trajetória de 39 anos e a pergunta de Marta, além de me fazer acessar o todo simbólico que envolve um encontro de duas pessoas numa vida, falou de uma riqueza a que somos apresentados e que devemos honrar como condição central para fazer uma análise mais humana e sensível dessa nossa passagem pela vida. Passagem curta, que às vezes pode ser curtíssima, e da qual nada se leva, mas na qual podemos diariamente carregar a leve e confortadora consciência de que foi digna, humanizada e honrada. 

A admiração e gratidão me levaram ao encontro de Marta e Edinho, e, mesmo subtraído de bens e esperança com nosso país, saí enriquecido do que sempre me deram: abraços, conhecimentos, demonstração de afeto e energia espiritual, agora pela providencial mediação de Julia, que fez brotar em mim a calma e paz de espírito para evitar o pior no sufoco do assalto. Também entreguei a eles o afeto que, se não honra o encontro que tivemos nessa vida, pelo menos me estimula a sempre estar com eles.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Abrace o que está vivo.



Recife, 23 de junho de 2009, 6 da manhã. Acordo mais cedo do que esperava e de mal humor. Acordei e não me vieram à mente os melhores dos pensamentos, coisa comum em minha vida. Aceito essa invasão bárbara do baixo astral e procuro relaxar.

Hoje faz quatro anos que meu pai faleceu. Não consigo me concentrar, meus pensamentos estão confusos, a todo instante saio e volto para o hotel numa falta de assertividade de me agoniar. Decido ir à praia de Boa Viagem para uma caminhada. Assumo que não existe essa coisa de ir a Recife e não ir à praia, mesmo que seja só para caminhar na praia, já que não quero me oferecer aos tubarões.

Caminho por alguns minutos, não aguento a tentação, me jogo nos veios de água que ficam antes dos recifes. Frequentado por pais, filhos, avós e netos, o lugar é naturalmente ruidoso e ameaçador à minha necessidade de reflexão. Afasto-me do movimento e me jogo na água. Nado um pouco e depois, sozinho e sentado no raso, fico pensando na vida. Observo o grupo de banhistas que está a uns 15 metros e não demora para que pensamentos sobre os quatro anos de falecimento do meu pai venham. “Não rememoro nenhum momento nosso numa praia, é como se não o tivéssemos tido”. Do nosso passado, revisito conflitos, críticas, culpas, cobranças, convivência, comemorações e uma camaradagem bem menor que a que merecíamos.

Olho fixamente para um ponto dos recifes e, de repente, uma garotinha que estava com duas mulheres no grupo de banhistas se aproxima e puxa assunto: “Eu tenho quatro anos, e você?" Respondo que tenho 38 anos e ela diz não saber quanto que é isso. Ela se afasta nadando e me chama para brincar: “Vem brincar comigo, vem?”. Não reagi, mas Luana é insistente e fica me rodeando, jogando água e areia em mim. Reluto no início, mas logo entendo a mensagem, decifro a senha que o viver me apresenta: “Esses quatros anos não são coincidência, abrace o que está vivo e pare de carregar o que está morto”.

Estou pensando na morte de alguém que me é muito caro e outro alguém que jamais vi, uma criança de quatro anos, e que tinha outras crianças ao lado para brincar, prefere me rodear e me tirar para brincar. Começamos a brincar de pega-pega, enquanto finjo que não consigo alcançá-la. A mãe, surpresa, se aproxima e comunica que não é da filha aquele comportamento. Deixo rolar, digo que não tem problema algum, afinal, a mensagem está copiada e o código do viver decifrado. Luana solta gargalhadas maravilhosas com nossa brincadeira.

O sol nos embala, são 10 da manhã, mas logo chega a hora de me preparar para voltar ao Rio de Janeiro. Dou um abraço apertado em Luana e digo muito obrigado. Ela só faz rir. A mãe reforça: “Moço, minha filha nunca fez isso antes”. Penso comigo: “Captei a mensagem, adorei a mensageira, tentarei nunca mais ficar de baixo astral e abraçado ao que só pede para ter o status de boa saudade”. Digo a ela: “Você não sabe o bem que ela me fez”.