Muriaé, 21 de abril de 2011, bairro Dornelas, perto das 18:00 horas. Aproveitei o feriado da Semana Santa para descansar e, como de costume, levei na bagagem outros propósitos: tirar minha família da correria e bagunça da cidade do Rio de Janeiro; rever meus familiares mineiros, extremamente caros para mim; e fazer uma nova leitura, agora aos 40 anos, do meu jeito de ser e agir e promover mudanças. Uma releitura do meu modo de estar na vida, dos sentimentos, pensamentos e ações.
Realizo essas releituras com frequência. Produzir novas significações e ressignificações é algo que faço com regularidade, embora não sejam nada fáceis de fazer. É uma prática que sempre se sobrepõe a outra ideia que por vezes me aparece: a de praticamente viver sem fazer leitura ou releitura alguma, de bastar-me o significado básico de estar vivo. Remonta a Clarice Lispector: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Sou capaz de render-me, até tentei fazer em determinados momentos de minha vida, uns por amor, outros por puro pragmatismo, mas ainda não ao modo lispectoriano. Os momentos pragmáticos, apesar dos resultados obtidos, foram duros, empobrecidos, era o resultado pelo resultado, a falácia do atirador de elite, do tiro perfeito, só isso. Faltava substância, algo que desse mais sabor ao desafio de viver e que não se resumisse ao "veja, eu fiz, tá aqui, ó".
Acredito que o pragmatismo, ainda que gere resultados e que por vezes mostre-se necessário, quando a iminência, a urgência, o solicita, se não for devidamente ilustrado, trabalhadas as suas razões, promove o empobrecimento da realidade e da aprendizagem. Posto que atende a necessidade de produção de resultados e não importa como, quando feita para premiar a vaidade do seu autor — a de ser visto e de se vê como pessoa audaz e resoluta —, a ação pragmática fecha as portas para o inusitado e surpreendente, cerceia a imaginação, inibe a oferta de contribuições e de troca de experiências. Em outras palavras: “é assim e pronto. Vamos aos resultados!” Pronto: a porta está fechada. Se feita assim, essa ação produz resultados na maioria das vezes miseráveis, pois esse tipo de fazer difere do fazer com simplicidade que resulta da sabedoria, da aprendizagem que o passar do tempo nos confere e nos ensina a sempre manter as portas abertas à sensibilidade, imaginação e criatividade..
Programei relaxamento e reflexões para o fim de semana, mas não me descuidei da prática de exercício diário que assumi como fundamental para produzir saúde e melhorar minha qualidade de vida. Coloquei meu tênis e fui correr no passeio à beira do rio Muriaé, lugar onde muitos caminham. Devido a péssima condição do passeio e ao intenso fluxo de carros, que assustam e poluem, fui correr pelas ruas do bairro Dornelas, especificamente na Sebastião Dornelas e na Boa Esperança.
É assim, pragmaticamente posto ─ produzir saúde e melhorar minha qualidade de vida ─ que entendo a prática de exercício. Por outro lado, isso é parte do que me comunicam a prática de exercício e de esportes e todos os atores diretamente ligados a atividades físicas e esportivas. Outra parte é a preparação para a competição, para a superação de rivalidade e de limites, que, segundo algumas leituras, em função de como é organizado e desempenhado, produz momentos celebres, artísticos. Acredito ser essa visão pragmática resultado da qualidade das interações que tive com a educação física praticada nas escolas, com as orientações médicas, como torcedor, com as interações sociais nos times de futebol de bairro e com a mídia.
Esta realidade foi confrontada, recentemente, pela grata e inusitada fala do treinador do Internacional, de Porto Alegre, Falcão, sobre o aceite para voltar aos gramados como técnico. Ele que supostamente não precisa daquilo por salário e reconhecimento falou em leveza, que futebol é alegria, não uma guerra, que futebol é conseguir resultado com alegria e que quer ir para o campo com a certeza de que vai ver um espetáculo. Com responsabilidade e consciência do desafio, um dos resultados possíveis para ele, e não menos importante, é se divertir.
Até a fala dele, confesso, eu não havia alcançado esse nível de leitura sobre o fazer e praticar exercícios e esportes. Falcão foi além do iminente que satisfaz a paixão e rivalidade dos torcedores, a muitos jornais e jornalistas e aos gestores dos clubes. Falando do futebol, ele nos abriu a porta para uma significação maior, para uma relação mais humana, nobre e instrutiva entre nós e os diversos fazeres e experiência que se nos apresentam conforme nos embrenhamos pela vida. Ele falou em produzir alegria, divertir-se no trabalho, colocando este como parte fundamental de um viver com alegria. Falcão ensina que essa é a meta, o resultado amplo e possível de ser alcançado quando se abre mão da obtusidade inerente a ação pontual e pragmática.
Até a fala dele, confesso, eu não havia alcançado esse nível de leitura sobre o fazer e praticar exercícios e esportes. Falcão foi além do iminente que satisfaz a paixão e rivalidade dos torcedores, a muitos jornais e jornalistas e aos gestores dos clubes. Falando do futebol, ele nos abriu a porta para uma significação maior, para uma relação mais humana, nobre e instrutiva entre nós e os diversos fazeres e experiência que se nos apresentam conforme nos embrenhamos pela vida. Ele falou em produzir alegria, divertir-se no trabalho, colocando este como parte fundamental de um viver com alegria. Falcão ensina que essa é a meta, o resultado amplo e possível de ser alcançado quando se abre mão da obtusidade inerente a ação pontual e pragmática.
Enquanto corria pelo bairro, notei o fato natural de que eu chamava a atenção dos adultos, perturbava a rotina, dado que era desconhecido. Algumas crianças brincavam na calçada e com elas deu-se um momento interessante. A figura estranha passava várias vezes correndo e elas comentavam, discretamente, procurando chegar, em suas trocas de impressões e informações, a um contexto que explicasse ou desse conta daquele pequeno inusitado: um estranho correndo em nossa rua. Tímido, não tive coragem de fazer os acenos que cumprimentam e pedem passagem.
Em uma das voltas, ao final da rua Boa Esperança, uma das crianças, uma menina perto dos seus 3 anos de idade, parou de brincar, olhou para mim, levantou-se sorrindo e perguntou: “moço, por que você fica correndo pra lá e pra cá?”. Pego de surpresa, algo que por si só justificava que eu parasse e desse atenção, resumi-me a dizer, e sem parar: “eu corro para suar”. Ela ficou olhando para mim. A frente, seu pai, atento, disse-me: “um dia ela vai entender que isso é saúde”. Continuei meu passo e percebi quão objetivo, pragmático, pobre, eu fora: “corro para suar”.
Eu, o estranho, tendo a oportunidade de fazer-se ameno e amigável, preferi fechar a porta, ignorando a grata surpresa, o inusitado saudável que abria as portas daquelas crianças para novos saberes e aprendizagens. Eu deveria ter parado e dito: “corro porque isso me deixa feliz ou porque isso me diverte, faz parte da vida que eu quero para mim”. Eu ampliaria meu resultado para este dia, pois, além de ganhar saúde, eu ganharia sorrisos gratuitos e verdadeiros e outras perguntas que, talvez, expusessem-me a novos inusitados e aprendizagens. Certamente conversaria com o pai dela, tornaria-me familiar e este episódio, visto pelos outros da rua, chancelaria de vez meu passar pelos domínios do dia-a-dia que eu havia perturbado.
Decidido a recuperar-me, fiz a volta na esperança de ainda reencontrá-los para poder dizer que corro para me divertir como fazem todas as crianças. Quando cheguei as crianças estavam saindo para suas casas. Aquele pai não estava mais lá. Vi a garotinha e, no tempo que me foi possível, tentei reabrir a porta à sensibilidade, e disse: “olha, eu corro porque isso me deixa feliz”. Ela sorriu com o meu inusitado retorno.