sexta-feira, 3 de junho de 2011

Do quanto deixamos de alimentar nossa alma

Seropédica, 4 de novembro de 2010, manhã. Céu claro, correria na rua, promessa de mais um dia comum: quente, úmido, sem vento, ou algo como uma breve mensagem do que os moradores da cidade poderiam esperar para o verão. Fecho o portão da garagem, após ter tirado o carro. Neste instante passa uma jovem na esquina, no encontro das ruas 7 e do Hotel, provavelmente uma estudante da UFRRJ em direção a um dia de aulas. É a esquina onde moro há anos.

Seria mais um anônimo transeunte em um dia comum não fosse o fato de para ela ser comum o que para nós que moramos na esquina é extraordinário. Alheia a desordem que domina a paisagem de qualquer esquina de Seropédica, ela olha para um dos cantos, avista um cachorro e vai em direção a ele, sorrindo, gesticulando, falando docemente, como se falasse com uma criança. Começou a acariciá-lo, aumentando o sorriso e as falas afáveis, dando mais carinho. O cão, ainda deitado, responde com alegria cada vez mais incomum aos humanos quando se encontram. Levantou-se, balançou fortemente o rabo, lambia sua benfeitora, rosnava de alegria, pulava. Seria uma cena ordinária não fosse o fato do cão ser portador de um problema na parte dianteira que mal o deixava caminhar.

Tratava-se de cão um que havia feito daquela esquina a sua casa, e que não chamava muita atenção das pessoas, principalmente a minha, que sabia da sua existência por levar o cão da minha filha para passear pelas manhãs. Por ele eu apenas passava. Quando ele apareceu ou de quem ela era, ainda não me era sabido. Realizei que devido aos problemas físicos, ele não saia dali para muito longe, fazia pequenas incursões por metros de ruas e calçadas naquela esquina. Na maior parte do tempo ele ficava deitado. Naquela madrugada, recordei-me, ele havia apanhado do cão de um vizinho próximo. O episódio fora barulhento, muitos gritavam, despertador desagradável. Quando me levantei pude ver apenas o cachorro em sua posição comum: corpo sobre um degrau e a cabeça sobre o outro degrau da calçada em frente a minha casa, ofegante.

A cena é mesmo extraordinária. Leva-se a vida corrida de quem, por ser de Seropédica, está sempre saindo dos boxes, atrasado diante o mundo. Em Seropédica, cidadão é quem tem carro ou moto, são os senhores das ruas e calçadas. Fato este que faz das esquinas as vitrines da agonia do cidadão diante a opressão dos carros e motos. A cada ano que passa os antigos moradores dão lugares a alunos da UFRRJ, nem sempre próximos, disponíveis. Mais do que isso: a cena mostrava a miséria de sentimentos que erroneamente cultivamos. É raro darmos aos vizinhos mais do que um cumprimento ou um breve fio de prosa. A jovem, alheia ao espetáculo de medo e insegurança que experimentamos todos os dias nas esquinas de Seropédica, nos presenteava com uma demonstração inequívoca de um sentimento que precisamos reaprender e de um hábito que precisamos cultivar: dar a alma o que lhe é essencial, a simplicidade.

Já em meu carro, em minha confortável miséria, assisto a cena que prossegue. Outras pessoas também assistem a atuação da jovem, impregnada do sentimento que sinaliza o que seria um dos melhores marcadores da nossa condição de humano: amar de maneira pura, sincera, desprendida. Gratuita, simples, sem deixar de ser intensa, ela ensinava como usar deste sentimento que nos dá autonomia para agir de maneira mais leve, cativante, positiva e sem a necessidade de ficar preso a retribuição ou ao que vão pensar da nossa manifestação. Em cena o amor que não é marcado por ser destinado a alguém especial que por ventura tenha aparecido em nossas vidas, como aprendemos desde cedo em família ou na TV. Alguém este a quem vamos cultuando, afastando-o do cenário comum, subtraindo sua naturalidade. Em cena o amor que não dá presente, aquele que se faz presente pela autonomia, consistência e beleza no acabamento da sua mais simples manifestação. Bonito, simples, natural, gratuito: a maneira de quem o faz todos os dias, a qualquer hora. Um ato comum de quem não experimenta a miséria da alma.

A moça tirou do ostracismo o cão esquecido por não ser belo ou que chama a atenção pela deficiência que carrega, pela dificuldade com que deambula. Ela é capaz de fazer aquilo por outro ser humano, pois a gratuidade chama mais atenção que a intensidade da sua atuação. A cena me atingiu em cheio: passo por ali quase todos os dias e o cão apenas me observa, sequer chega perto para cheirar a cadela que levo para passear. Enquanto observo, outra surpresa: uma senhora, moradora de outra rua, vem da sua caminhada matinal e traz pedaços de pão para o cão. Depois deixa, anonimamente, um saco de pão no portão de uma família humilde que habita na esquina. Feito com a naturalidade de quem o faz todos os dias, anonimamente.

É a silenciosa operação dos que levam seus dias sob o ritmo da gratuidade do sentimento que faz crescer e amenizar as dores dessa nossa passagem pela vida. Confortável em minha miséria, realizo que pouco tenho dado de atenção a todos os meus vizinhos. O tempo está passando, estamos envelhecendo, levamos para os lares o que trazemos do mundo e que tratamos como muito valioso, indisponível. Vamos as igrejas, ostentamos nossas bíblias e imagem de fé, mas sequer nos abraçamos. Naquela esquina, mais nos protegemos do que nos projetamos. Não nos disponibilizamos para o outro, para lidar com a nossa vida comum, como se divida fossemos contrair ou menos passassemos a ter. Miseráveis, pouco nos pedimos, quase nada nos damos, como se só tivéssemos corpos a alimentar.