sábado, 31 de dezembro de 2011

O ano novo é você quem faz

Se você quiser conhecer a felicidade, empreenderá uma solitária e desafiadora jornada que o levará ao encontro de uma palavra que funciona como senha de entrada para acessar o fantástico mundo de um sentimento capaz de transformar qualquer indivíduo.  Ao contrário da maioria das jornadas, esta começa em direção ao mundo das coisas e, subitamente, muda seu rumo para o mundo que habita o interior do viajante.

Em sua jornada, você primeiro encontrará felicidade no dicionário. Abra este precioso livro e continue a viagem. Nesta parte da jornada que, recomenda-se, seja gradual, moderada, você aprenderá que alegria vem antes de dor, que felicidade sempre antecede tristeza. Você também aprenderá que ela, ele, elas e eles sempre aparecem antes de você, e que juntos com você, somados, esses monossílabos transformam-se surpreendentemente em nós, um monossílabo também poderoso. 

Ao encontrar a felicidade, você verá que ela pode ser lida, escrita, e, principalmente, que deve ser vivida, pois, como ensina o precioso livro, felicidade é um paroxítono que denota, de maneira acentuada, ventura, bem-estar, contentamento, um estado de espírito surpreendentemente revolucionário.

Lida ou escrita, verá você que felicidade é um polissílabo, um grupamento de sílabas, composto este de quatro consoantes e três vogais, onde algumas se desdobram para apresentar aos luso-brasileiros um sentimento que pode ser vivido a um - sozinho -, que é gostoso demais quando vivido a dois, mas que deve ser sabiamente aprendido a viver em grupo - mesmo que esse seja apenas de três -, mas que seja essencialmente um grupo. Soletrando este caprichoso encontro de sílabas, compreenderá você um pouco da força dessa senha que, conforme será verificado mais a frente, jamais deve ser falada da boca pra fora.

Ao fechar o dicionário e olhar para os lados, encontrará você um dos primeiros mistérios dessa jornada: existem aqueles que, mesmo não sabendo ler ou escrever, são felizes, vivem a felicidade. É assim porque felicidade, um substantivo feminino, devido a sua inerente fecundidade, tem o poder da luz que identifica e qualifica, em qualquer lugar, o indivíduo que mantém a preciosa substância da bem aventurança. A felicidade empresta luz ao sujeito que a contem e, principalmente, a elabora.

Ao ver como mesmo os não doutos podem ser felizes, você naturalmente sentirá a necessidade de mudar o rumo da jornada. Subitamente, a resposta sobre a felicidade deixará de estar no mundo das coisas e nas coisas do mundo, mostrando-se estar inscrita no interior do indivíduo, dentro das pessoas, de onde emerge a luz que as torna imprescindíveis. Ao partir em direção ao outro, ao dirigir sua jornada para desbravar o interior alheio para descobrir sobre a felicidade, você logo verá que dificilmente chegará a algum lugar. Sozinho, constatará você que melhor fará se se dirigir ao próprio interior para continuar a jornada para aprender o caminho da luz.

Seguindo o caminho que leva a luz, você aprenderá que felicidade não se compra, empresta ou dá, que ela é produzida. Ao saber mais sobre você, lembrará que um dia, quando não falava e tampouco escrevia, você respondia, gratuita e generosamente, ao mundo que experimentava. Quando criança, independente da nossa aparência e da do mundo que nos rodeava, exalávamos bem-estar, contentamento, tínhamos um estado de espírito surpreendentemente revolucionário, pois a todos contagiávamos. Porem crescemos, saímos para o mundo, seguimos em direção ao mundo das coisas e às coisas do mundo, atrás de respostas, sem mesmo ter aprendido a fazer perguntas.

De posse da senha, estará você de frente para a fábrica de felicidade que todos nós trazemos internamente. Você logo perceberá que a chave da fábrica da felicidade está com você próprio, e que jamais deve negligenciar sua guarda, deixando-a em qualquer lugar ou confiando-a a qualquer pessoa. Você verá que é sua a responsabilidade pela produção do bem-estar, contentamento e estado de espírito surpreendentemente revolucionário capaz de contagiar as pessoas que o rodeia. Principalmente, você aprenderá a duvidar, afastar-se e proteger-se de toda pretensa felicidade, de tudo que não tem a simplicidade como essência, enfim, de todo projeto de ser feliz que o leve justamente ao caminho contrário a jornada que empreendeu.

Assim, ao final da jornada, solitário, sabendo-se mais rico do que nunca, aprenderá você que, por mais que ame outra pessoa, apenas poderá compartilhar as vibrações desse labor fundamental. Labor que vivido internamente, transforma o indivíduo que o pratica e o mundo que o rodeia. Então, mãos a obra, pois um novo ano, uma nova vida, começam agora! Vá, experimente saudavelmente o mundo, aprenda novas coisas, melhore ainda mais essa substância que você encerra, deixe o mundo mais feliz!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

“Curiosar” - descobrir mais sobre a vida e o mundo; manter as origens, ter onde pousar.

Rio de Janeiro, manhã, 14 de maio de 1998. Em mais um interessante capítulo da minha vida, fui ontem com minha namorada ao Museu do Índio, em Botafogo. Ela foi entrevistar o índio Carlos Tucano, para uma matéria da revista onde trabalha. No fim, o que seria mais um momento para fugir do ócio desse desemprego que já dura cinco meses, tornou-se outro momento de lição e aprendizagem sobre nossa passagem pelo tempo. Foi a primeira vez que estive frente a frente e que pude conversar com um índio, a base da sociedade brasileira, enfim, os primeiros brasileiros.

Ficamos quarenta e cinco minutos ouvindo Carlos Tucano contar sua história, a do seu povo e as lutas para a sobrevivência e preservação de sua cultura. Abri mão das minhas apreensões de ser urbano, desempregado, para ouvir o índio discursar sobre a importância da preservação dos valores, rituais e costumes de sua gente. Gente que, segundo ele, não deixa registros, apenas vivem. O índio não escreve, filma ou pinta, mas planta, caça, faz artesanato e, agora, absorve e é absorvido pela civilização, disse ele.

Carlos Tucano falou de suas raízes, da interferência dos missionários, da demarcação de suas terras, dos seus deuses e do mundo. Em um momento chegou a falar sobre a globalização e de como inserir sua gente nesse contexto! Um povo que luta pela demarcação de suas terras, preservação da sua história, e com o desafio de viver em um mundo globalizado, sem fronteira. Um índio falando da importância de resgatar a sua história em um mundo onde o tempo não pára.

Um dos grandes momentos da entrevista foi quando Carlos Tucano falou com sua calma, aparentemente inabalável, que o que ele mais gosta de fazer é “curiosar”. É importante “curiosar” para descobrir mais sobre a vida e o mundo, disse o índio, mas sem perder de vista as origens e as lutas pela sua preservação. Ele falava da fragilidade do ser indígena pulverizado pelo mundo, deslumbrado, encantado pelo “mundo das coisas”, mas que, se não se cuidar, não terá terra para pousar.

Ouvindo estas palavras, voltei-me imediatamente para a história da minha família, boa parte sedimentada em algumas cidades, mas que não se cuida e está pulverizada pelo Brasil desse fim de século. Somos muitos, mas atualmente estamos distantes, banalizados pelo consumo e pelo trabalho, apenas acompanhando, e sem deixar qualquer registro, o tempo que não pára. Somos muito semelhantes ao índio: meus familiares não escrevem, filmam, caçam ou pintam, poucos ainda plantam, trabalhamos isoladamente, sem compartilhar conhecimentos e aprendizagens; absorvemos e somos absorvidos pela vida econômica.

Existem poucos registros dos meus antepassados, sequer temos a posse de algum pedaço da terra de onde vieram meus avôs. Os parentes mais velhos estão falecendo e com eles vão, sem registro algum, as lembranças de quando tudo começou, em Pedro Teixeira e Muriaé. Meus avôs paternos e maternos já estão mortos; os primos e irmãos que ainda vivem estão longe de nós, mas perto das terras de onde viemos, morrendo no anonimato. Ironicamente não temos registro algum, apesar de terem tantas histórias para contar.

Levei as lições do Índio para o apartamento onde moro, na Tijuca, atual quartel general das minhas angustias e estranhamentos com a vida. Aqui estou mais longe ainda da nossa “mineiridade”, distante inclusive de Seropédica, onde meus pais se encontraram após suas famílias terem deixado as Minas Gerais. Em Seropédica estão meu pai, tios e primos, todos envelhecendo sem que sejam feitos registros, levando com eles os fragmentos de nossas raízes. Família que só sobreviveu às primeiras ameaças porque seus membros estavam juntos, somaram forças, compartilharam a sabedoria da "lide" na roça e que, depois que saíram de Minas, aprenderam novas “lides”, como a da mercearia e a de dar aula.

Aqui estou, homem urbano, desempregado, desbravando o tempo, querendo aprender nova "lide" longe das minhas raízes da roça, da mercearia e da lousa. Aqui estou, homem urbano, aprendendo com o índio sobre ir ao mundo sem perder os rumos de casa. Desse novo verbo, humildemente colocado, tirei mais uma lição e força para enfrentar esse momento de aflição: é preciso “curiosar” para descobrir mais sobre a vida e o mundo, sem perder de vista as origens e, principalmente, tendo onde pousar.