Parecem invisíveis, até. Mas elas
existem e sempre esbarramos nelas, que servem como sinalizadores de que
percorremos essa estrada chamada “Vida” não somente para conquistas materiais,
sociais, mas também para conquistas espirituais, morais. Todas as vezes que
esbarramos nelas, em algum evento ou dimensão significativa da vida, é como se tocasse
um sino. Sino cujo som nos leva – automaticamente e por imagens –, a um evento
ocorrido no passado e faz surgir na face ou o sorriso de quem apreciou a
situação ou a lágrima ou desconforto de quem ainda a traz entalada na garganta
ou com dificuldades para digeri-la. Essas linhas e badaladas existem para ilustrar,
delimitar e pontuar se, como e quanto um indivíduo aprendeu moral e
espiritualmente em sua trajetória; quanto ele chega a uma nova fase trazendo no
olhar, linguagem e comportamentos, os frutos dessa aprendizagem essencial.
Em minha trajetória, muitas foram (e ainda são) as vezes em que toco nessas linhas, em que ouço badaladas de sinos
que marcam o ritmo em que ocorre minha evolução moral e espiritual, ou o quanto
aprendi e ainda preciso aprender nessa vida. Uma delas, relativas aos meus
afetos, tem forte relação com o meu aprendizado de soltar pipa, ocorrido lá na
infância.
No relacionamento amoroso,
casamento e em organizações em que interajo para trabalho, formação escolar,
lazer e professar da minha fé, estão as principais instâncias em que os sinos badalam
para mim. Automaticamente, ou nos momentos em que paro para refletir sobre essas
instâncias, veem à mente as imagens de quando eu aprendia a soltar pipa. Chama atenção
a maneira com que faço e o quanto invisto de emoção e afeto nas relações e
contextos vividos. Geralmente crio muito expectativa, espero demais das outras
pessoas envolvidas, e uso o que é natural para mim para fazer as avaliações.
Como resultado: sempre me vejo em situações desconfortáveis, sangrando no
coração, quando tudo poderia ser mais fácil e alegre. Muitas foram as vezes em
que sofri e fiz alguém sofrer; em que alimentei demais uma esperança, elevei as
expectativas, cobrei demais do outro, no que para ele era uma troca gratuita,
fortuita, sem maiores investimentos de emoção.
Mas se olharmos detidamente,
veremos que essas situações ilustram que aquilo que chamamos de relação
afetiva, de amor ou amizade, conforme vai evoluindo – ganhando dias, contextos
e produtos da nossa emoção –, assumem o formato de um complexo novelo de fios
que se amontoam e se acomodam na sensível área demarcada por nossos egos e pela memória.
Por ter muito do que nos é muito
caro, é tão belo quanto precioso esse novelo; também é muito sensível, pois é a
maturidade que explica a densidade, integridade, firmeza e maneira com que
dispomos os fios nesse emaranhado simbólico de afetos e emoções, essencial à
nossa condição humana. Quando ocorre de termos que mexer nos novelos, ou mesmo
de desfazê-los, devido às circunstancias da vida, tomam relevo não apenas os
fatos geradores, mas a maneira como os envolvidos retiram seus fios, isto é,
como negociam movimentos e palavras ao desfazer o complexo emaranhado de fios
de afeto e emoção que dispuseram e os deixavam ligado um ao outro. Se feito de
maneira brusca, machuca a área, arrebenta a linha - que ganha um nó, uma parte
fragilizada do fio. É da vida acontecer isso, ter que desfazer o novelo.
Também é esperado que cada envolvido traga seus fios intactos para seu carretel
com vistas a um momento em que novamente dará linha a seus desejos, carências
ou imaginação, em que formará mais um belo e precioso novelo de emoções e
afetos.
A vida me mostrou que não aprendi
a fazer corretamente o emprego dos fios do afeto e da emoção, qual era a hora
certa de fazer, tampouco a maneira mais correta e oportuna para começar a retira-los
dos novelos. E não faltaram lições sobre como lidar com fios, em minha vida. Principalmente,
de quando saltava pipa na rua onde passei minha infância.
Soltar pipa – enquanto uma
gostosa brincadeira –, tem todo um ritual para acontecer: início, meio e fim
são muito bem marcados, interligados, e precisam ser respeitados. Do contrário,
ou a pipa não sobe, ou, ao subir, corre logo o risco de estancar, o que marca o
fim da brincadeira, se você não tem uma sobressalente, mas que ainda sim, deixa
muita tristeza.
Empinar uma pipa requeria muitas
habilidades, que iam do preparo da rabiola à arte do debico, passando pelo
ajuste do cabresto, envergadura e do soltar e enrolar a linha com firmeza na
lata ou carretel, este para os mais experientes. Dias a fios de umas boas
férias eram necessários para formar o pipeiro. O bom pipeiro não ocupava mais
do que o espaço necessário para seus movimentos, e nunca deixava a linha dele
embolar ou embolar com a dos outros. Às vezes aconteciam embolos, mais
explicados pela quantidade de meninos por m2, do que pela falta de
habilidade deles. Desembolar linha era aprendizado fundamental, e marcava o fim
do dia.
Confesso que nunca fui um bom
pipeiro – talvez tenha sido o pior de todos os meninos da minha rua –, e as
maiores provas do meu pouco honroso título, eram os constantes embolos em
minhas linhas e a frouxidão da linha enrolada em minhas latas. Eram marcas
registradas da minha chegada, permanência e saída daqueles trechos mágicos que
ocupávamos da rua em nossas férias. Lembro-me que Marcio Pena, meu inseparável
amigo, alertava-me sobre aquilo: “você precisa enrolar direito a sua linha na
lata, senão vai atrapalhar a gente aqui ou vai prejudicar a sua vez.
Quando o vento estiver forte, o nó não vai aguentar, e você vai estancar;
quando a pipa agarrar, o nó vai atrapalhar você trazer a pipa de volta ou é
nele que a linha vai arrebentar”.
Muitos foram os fins de tarde em
que tive a chance de aprender o precioso ofício de desembolar linhas de pipa,
mas negligencie bastante essa lição. Dei voz ao meu nervosismo, que facilmente
emergia quando mexia nos embolos, ao invés de ficar pacientemente sentado
desembolando a linha para que não tivesse que arrebentar e fazer nó para
continuar enrolando na lata. Assim que era vencido por um embolo, eu arrebentava
e fazia um nó na linha, e a enrolava: frouxa e cheia de nó. Marcio ficava
pacientemente desembolando, e só terminava quando vencia o embolo.
Apropriadamente, os sinos
badalaram todas as vezes em que estanquei, que machuquei a área do ego onde
formava os novelos de emoções e afetos: "aprendi a dar linhas, nela deixei muitos nós; poucas vezes a retornei segura ao carretel, sem embolo. Mas no elo mais fraco da linha, a emoção e o afeto arrebentam".