quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Proteja seus sonhos

Usando linguagem que me é peculiar, e tentando relacionar a escolha profissional com o desafio de edificar uma trajetória de vida digna, ofereço uma leitura desses 20 anos de formado em Administração.

Há 20 anos administrador formado, 43 anos de idade, mas ainda em processo de consolidação para desempenhar decentemente as atribuições dessa carreira e função. Ser um bom tomador de decisões ou um grande estrategista, por exemplo. Em uma dessas atribuições preciso e muito melhorar o desempenho: gerir o complexo de atributos cognitivos, culturais e emocionais que todo grupo encerra.

Todos os dias acordo e durmo com a sensação e a certeza de que ainda tenho muito a aprender. Porque é imanente à função de gestão que todo bom gestor desenvolve e protege os ativos ou principais recursos de uma organização, evitando uma gestão temerária. Como desenvolver e proteger ativos sem conhecimento? Gerenciando aprende-se muito, principalmente que não existem ganhos sem que se incorra em custos e sacrifícios.

Não tenho mais os 19 anos de quando deixei o Colégio Técnico da Universidade Rural (CTUR) para entrar na UFRRJ e ainda assim continua extremamente delicado pensar na gestão dos ativos que podem constituir ou fazer parte da trajetória de uma pessoa por esta vida.

Olhando com cuidado, vemos que uma vida implica, com o passar do tempo, num misterioso e desafiador processo de transformação de ativos extremamente delicados (sentimentos, valores, atitudes,  comportamentos e sonhos) em ativos não menos delicados, como conhecimento técnico e profissional, sabedoria, reputação, redes relacionais e patrimônio material ou ser economicamente ativo.

Entendo que envelhecer seja isso: transformar sonhos e sentimentos – o que temos de maior valor na juventude – em todos os outros ativos sequenciais, até chegar à fase em que constatamos que tudo o que temos, de fato, é sabedoria, lembranças e saudade. Ativos estes que ainda podem ser corroídos pela inexorável dinâmica da realidade biológica quepor vezes nos traz, antes do perecimento absoluto, o esquecimento total.

Admitidas algumas exceções, passamos boa parte desse processo de envelhecer alavancados, isto é, dependendo e muito dos imperiosos aportes que só os outros podem prover. Quando jovens, temos muitos sonhos e sentimentos, mas quase nada dos outros ativos, dependendo bastante das constantes negociações de tempo e espaço inerentes ao que nomeamos "busca por oportunidades (ou seria aquisição de crédito?)". Quando amadurecidos, ainda que tenhamos sido felizes ou muito tristes, estudados ou não, que sejamos ou não capazes de ensinar ao outro, temos sim bastante sabedoria, toda ela devidamente tatuada no que brejeiramente chamamos “lombo”. Ao final, todos os créditos que amealhamos são imobilizados no "lombo". 

Aos 43 anos, levo comigo a certeza de que sei muito pouco, o que por vezes me assusta, dada a frenética produção de conhecimento. Mas isso não me desanima, pois se há o muito que não sei, não existe o que eu não possa saber. O sopro de vida para manter-se aprendendo é outro ativo que devemos proteger.

Os títulos que amealhei, se por vezes afagam o ego e garantem alguma liquidez, na maioria das vezes não me são uteis – nem deveriam ser – para lidar com o constante desafio de gerenciar os ativos imanentes à trajetória. Há uma fase da vida em que o título que lhe confere bom acesso a crédito não é o de doutor, mas o de confiável, de bom pagador.

A profissão de professor, esta sim, uma grande provedora de momentos felizes. Mas sou um mero professor, um dos que, num semestre desses da vida e numa disciplina específica, cruza a trajetória de muitos outros administradores.

Aos trancos e barrancos, tentativas e erros, aproveito a dádiva de ter a rede relacional – formada de amigos, colegas e parentes – que me deu suporte nesta vida. Se não fossem essas pessoas, eu não teria cumprido o pouco que andei. O que tenho de material, aprendo, não é motivo de orgulho, e, se é para ter orgulho, que seja da saudabilidade e vigor transformador dessa rede relacional. Orgulho-me de tê-los por perto e a eles muito admiro, pois continuam fazendo muito.

Apesar dos meros 43 anos, por vezes a sabedoria dá sinais do seu processo de consolidação. Por exemplo, às vezes surpreendo-me com algumas soluções que apresento para problemas que me criam ou que eu mesmo crio para mim e com os desafios que coloco-me para encarar os dias que chegam. Sim, é sim sinal de alguma sabedoria sendo tatuada no lombo. É o que tenho a dizer sobre alguns sorrisos que trago estampados no rosto em situações em que outrora estaria chorando ou amarrando uma cara de assustar. O feedback que recebo de minha filha, Maria Luiza, é o melhor certificado dessa consolidação, e com ele protejo a riqueza que é esse amor que sentimos um pelo outro.

Lá atrás, em 1988, quando entrei no CTUR, queria ter logo uma profissão para ser independente do meu pai. Enquanto estudante, conheci a área de marketing e comecei a sonhar intensamente em ser profissional de marketing ou de propaganda. Fui para o curso de Administração pensando em ser um executivo de marketing. Inclusive escrevi num diário que eu jamais seria professor. Sim, gastei nessa escrita muitos dos créditos que temos para dizer coisas sem se preocupar com o impacto do que estamos dizendo sobre nossas próprias vidas.

Cheguei à UFRRJ com muitos sonhos, mas com algum dinheiro e conhecimento que amealhei no ultimo ano do CTUR, quando vendi algumas coisas da horta escolar e, junto com um primo, comecei a vender peixe em Seropédica. Fiz um concurso público e tornei-me servidor de nível de apoio da UFRRJ. Formei-me Administrador sem muitos sustos, pois tinha uma reserva.

A semana que culminou no dia 24 de setembro de 1994 foi intensa e desafiadora. Eu era puro amor e sonhos, os caros e delicados ativos intangíveis que eu tanto sentia. No dia 23 de setembro, na rua onde morava, fui surpreendido pelo pedido de noivado mais espetacular que experimentei. A aliança nos dedos intensificava a conexão entre os sonhos de ser executivo de marketing e o desafio de ir morar em BH. Na formatura, lembro-me, apesar das apreensões com o futuro, eu era um homem experimentando gostosa e verdadeira alegria. Passaram-se vinte anos.

Os vinte anos culminaram num administrador, professor de marketing, pai, irmão, colega de trabalho, amigo, cidadão, em busca da edificação de uma trajetória de vida digna. Foi-se o executivo, mas a arte do possível fez-me professor. Aqui estou, 43 anos, cada vez mais atento à responsabilidade de continuamente transformar e proteger ativos ou, lido de outra maneira, de esmerar-me para que seja o menos oneroso possível a meu corpo e minha alma transformar sonho e sentimento em alguma sabedoria.

Portanto, se há algo que eu possa dizer para alguém, a título de conselho ou advertência, é: proteja seus sonhos. O desafio de protegê-los vai dar um toque a mais de sabor à sabedoria que lentamente vamos acumulando.

Marco Souza

24-9-1994 --> 24-9-2014

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Aprendizagens que não cabem mesmo em uma embalagem

“A vida é uma escola”, ouvi há bastante tempo. Eu que já tinha lá minhas diferenças com a escola formal, fiquei ainda mais assustado. “Se aqui na escola está assim, imagine quando eu sair daqui para enfrentar a vida”. Diziam-me para estudar e ser alguém na vida e isso me era assustador.

Àquela época também me diziam que só havia uma vida. Era ‘vai ou racha’, ‘tudo ou nada’, ‘aqui se faz aqui se paga’. Também tinha uma apavorante, mais ou menos assim: ‘aprende agora, se não é o mundo quem vai te ensinar, e sai mais caro, às vezes pagamos com a própria vida’.  Que horror ouvir aquilo. A coisa era difícil de ser apreendida, pois tinha escola, mundo e vida e toda aprendizagem tinha que caber na mesma embalagem, numa mesma vida e eu não sabia se daria conta.

Durante algum tempo achei que foi a escola que não me ofereceu oportunidades e experiências que ajudassem a ter uma compreensão mais consistente sobre o que era a vida e o mundo; depois é que entendi que eu é que não tinha consistência para entender o que a escola me mostrou sobre o que eram a vida e o mundo.

Sobre o tempo ou a passagem dele, na escola eu só lidei em Física – quando sofria para entender que o tempo tinha relação com a velocidade e a distância –, em Língua Portuguesa – quando esclareciam sobre os tempos verbais – e no campo – quando ensinavam sobre o preparo do solo, escolha e plantio da semente ou da muda e sobre tratos culturais e colheita. Não tive laboratório para aprender sobre o tempo de ou numa reação química. Mundo era Geografia, vida era Biologia.

Recentemente, ao ler meu diário de 1996 – ano que batizei como ‘o que demoraria para acabar’ – tive uma demonstração de como passei onerosamente pela vida, de quanto desperdicei, de energia mental e física, para lidar com os desafios da embalagem única. É um diário de quase 600 páginas onde demonstro uma ansiedade louca para lidar com o tempo, querendo acelerar coisas para chegar logo ao ‘próximo prato’, mas sem viver plenamente o que tinha para comer no ‘prato à minha frente’. Após a leitura, decidido, disse a mim mesmo: “Relaxa, vá devagar, dê tempo ao tempo. É hora de ser sábio e saiba que você está envelhecendo”.

Hoje, quando saia de casa e fechava o portão, tinha à frente dois vizinhos, dois senhores de idade, experientes, que conversavam alto e anunciavam que iam à feira. Pensei: “Que legal, esses já fizeram suas vidas, cumpriram seus compromissos; são escolados, senhores do seu tempo e agora caminham tranquilos para fazer a feira”. Comecei a acompanhá-los, tentando ouvir a conversa, mas ainda estava bem distante.

Quando chegou no primeiro cruzamento, eles pegavam à esquerda e seguia direto. Vi que eles pararam e começaram a gesticular um para o outro. Quando cheguei mais perto, um deles olhou para mim e disse:

─ Tô falando para andar mais rápido e ele diz que a feira não vai sair do lugar. Humm, quem não tem pressa é porque não precisa chegar a lugar algum.

O outro senhor, contrariado com a fala do amigo, virou para mim e disse: 

─ E quem disse que pressa é garantia de chegar a algum lugar? O que você acha que devo dizer para esse velho chato e apressado?

Surpreso com o que me mostravam ‘os dois professores’ cheios de vida e mundo em suas costas, logo relacionei a situação com o que tenho pensado sobre como vivi e vivo. Esbocei um sorriso amarelo e caí no lugar comum, poderia ser mais profundo:

─ É, tem que negociar direitinho as vontades de vocês aí.

Os amigos foram resmungando e gesticulando rua afora e segui meu rumo pensando na resposta miserável que dei e que sequer refletia algum aprendizado que carrego nas costas dessa embalagem. Afinal, como eu negócio as diferentes vontades que tenho, com as diferentes maneiras que se pode aprender nessa ‘escola-mundo-vida’ e com o que, afinal, deva ou não caber numa mesma embalagem?