segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Fomos pipeiros



Seropédica, 28 de julho de 2018. Sábado. Despertei perturbado por um som insistente e desagradável que, embora não me fosse desconhecido, dele não recordava com facilidade. A memória falhou, mas a curiosidade falou mais alto. Desisti de voltar a dormir, levantei-me, abri a porta da frente e, da sacada, deparei-me com uma marcante em minha vida: uma pipa agonizando na rede elétrica de alta tensão bem em frente. Fui tomar café.

À mesa do café, um outro ângulo me permitiu mais alguns instantes de contemplação, pela janela, da cena que muitas vezes vi no tempo em que ficava os dias de férias escolares olhando para os céus soltando ou correndo atrás de pipas voadas, escalando muros e árvores para apanhá-las e retornar à brincadeira, tempo que se estende entre 1979 e 1985.

'Que cena desoladora!', informou imediatamente os sentimentos de pipeiro. Também sou visitado por lembranças recentes e antigas relacionadas ao soltar pipas. Vem à mente o ano 2007, quando uma médica que atendia minha filha, que à época estava muito ansiosa, disse com seriedade que Malu precisava soltar pipas, ter uma vida menos assoberbada com a atividades extraescolar ao invés de tomar remédios para ansiedade, atenção, depressão e coisas parecidas (Não só ela, claro, mas crianças, adolescentes e adultos, dizia a médica sobre a vida que levamos e que conflita com nossas condições fisiológicas e psíquicas). Também vem à mente imagens e noticias recentes sobre incidentes envolvendo pipas e atropelamentos e mortes de motociclistas feridos pelas linhas com ceróis.

Acesso distintos e intensos sentimentos enquanto realizo o irônico e o contraditório de vermos uma atividade tão significativa imbricar-se com dores morais, físicas e psíquicas que podem ser experimentadas em nossas trajetórias.

Visitam-me reflexões que misturam e o alerta do médico com mudanças no nosso mundo e na maneira como entendemos e exercemos nosso viver. Penso nos conflitos e consequente desconfortos e dores físicos, morais e psíquicos que estão associados aos elementos visíveis e invisíveis à cena: a pipa perdida na rede elétrica; a urbanização crescente e desorganizada e a correria para dar conta de necessidades e desejos sem fim e, atrelados a eles, um jeito de viver que equivocadamente prescinde do estar na rua; o sufocamento e marginalização de uma atividade lúdica e terapêutica como o soltar pipas; e, consequentemente, o acirramento dos conflitos entre pipeiros, motociclistas, motoristas, ciclistas e proprietários de casas e lojas.

Como estou de férias, sei que enquanto o vento, a chuva e o sol não destruírem essa pipa, conviverei diariamente com o chato som que faz a sonoplastia dessa cena desoladora. Ela me conduzirá a diversos e diferentes momentos da minha vida. Nesse exato instante, a cena e o som me conduzem direto a diversos e marcantes momentos, muitos que se deram na mesma rua.

Em 2007, saí do consultório bastante impressionado e a primeira coisa que fiz foi comprar linha, pipa e rabiola para, no dia seguinte, ir com Malu aos gramados da Embrapa e da UFRRJ e começar o saudável tratamento. Primeiro, fomos à UFRRJ, mas logo fomos afugentados: a todo instante vinham pipas querendo cruzar e aquele não era o nosso propósito, nem cerol tínhamos. Só conseguimos soltar pipa em paz em frente à Pesagro. Ironicamente, após termos conseguidos bons momentos de distração e alegria, houve mudança da direção do vento e, ao tentar ajudar Malu com a pipa dela, acabei agarrando-a na rede elétrica de alta tensão que fica na entrada entre a Pesagro e a UFRRJ. Com a minha eu fiz algo que há muito desejava, embora até hoje não entenda bem o por quê: dei linha até o final do carretel, deixei a pipa subir bastante e, junto com a Malu, depois de muito debicar, subindo e descendo, indo de um lado para o outro, deixei a pipa ir e se perder no horizonte. À Malu, uma vez perguntado, disse a ela que alguém pegaria a pipa e a brincadeira continuaria.

Com relação ao meu passado, sei que pelo tanto que tem ventado desde ontem eu o visitarei bastante, remontarei aos meus saudosos anos de pipeiro, que reconheço não terem sido tão gloriosos como o de muitos amigos, mas que foi muito rico em ludicidade, uma vida vivida mais do portão de casa para a rua do que o inverso e com quase nenhum remédio a ser tomado, exceto analgésicos, vermífugos, antitetânicas, antirrábicas e os biotônicos da vida para despertar apetite.  

Quando a rede de alta tensão chegou à essa rua, essa cena foi ficando comum e praticamente forçou a migração do soltar pipa dessa parte aqui da esquina com a rua 7 para o fim da rua, e, vale a menção, ainda não havia a minha casa e o colégio à frente, onde ficava a casa da dona Edméia. Foram os primeiros conflitos mas, embora nos anos seguintes ficassem comuns os conflitos entre essa prática lúdica e bastante saudável e a maneira como nossas famílias progressivamente estruturavam nossas vidas, vivenciamos mais as dores morais comuns à rotina de um pipeiro do que as dores físicas (sim, tínhamos dedos das mãos cortados, pés e canelas machucados), e sofrimentos psíquicos.

Sobre as dores morais, sei de uma leitura mais otimista e que depõe contra o agonizante que a minha leitura retrata dessa cena. Esta diz que no final da temporada de férias as pipas nas árvores, antenas e redes elétricas tornam-se memória, provas irrefutáveis de que adultos e garotos viveram intensamente seus dias de ócio nas férias escolares e que para cada uma dessas pipas haverá um depoimento de alegria e dor vividas com dignidade e altivez. Entretanto, uma pipa agonizando na rede elétrica significa que muita frustração foi vivenciada em algum dos instantes mágicos da vida de um pipeiro. Alguém certamente perdeu essa que agora observo enquanto a empinava ou arrastava para cruzar com alguém ou tentava aparar outra pipa ou perdera a rabiola dela e tentava trazer para o chão ou, o que é a situação mais chocante, enquanto estava a poucos metros e segundos de pegá-la voada e dar o homérico, terapêutico e libertador grito “É minha! Tá na mão!”. Existem outras maneiras de calar esse grito, mas uma pipa voada ir direto à rede elétrica e lá ficar encabrestada é a pior, pois, além de todo risco e lendas que circulam sobre fatalidades, com a rede elétrica “não tem negociação” e prevalece a dor moral que se acentua com o calar desse grito. Bem, se por ventura alguém pegar a pipa quando você vai dar o grito libertador, ainda há chance de negociar ou de lutar para minimizar essa dor. 

Embora conheça bastante dos relatos heroicos que uma temporada de pipas produz, sei bem que, para quem solta pipa, ver uma pipa na rede elétrica é uma das cenas mais horríveis de se ver. Em termos de dor moral, no meu tempo de pipeiro, que foi dos 8 aos 14 anos, ela se equiparava à de ver a pipa estancar e se perder no horizonte ou parar na mão de alguém que não vai lhe entregar, o que também era avassalador. A despeito de toda dor que essa última cena enseja, dado que pode ser uma alma sebosa que ficará com sua pipa e linha, do fundo da alma de um verdadeiro pipeiro emergirá um pensamento bastante oportuno que lhe dirá para erguer a cabeça e superar essa dor, pois, pelo menos, a brincadeira irá continuar e, quem sabe, o jogo vira como o vento muda de direção, e ele reaverá a pipa ou cruzará e cortará a alma sebosa que ficou com sua pipa. 

Essa dor moral reside no complicado que se torna o resgate da pipa na rede elétrica. Devido à histórias de gente que fora eletrocutada – algo que felizmente nunca presenciamos na rua Albertina Rosa ou simplesmente rua do Hotel (atual Rua Iná Nascimento de Souza) –, tentar resgatar pipas nas redes elétricas nunca foi uma ação simples ou isenta de riscos e medos. Além disso, ela inibia toda engenharia coletiva para resgate de pipas que tão bem exercíamos quando elas estavam agarradas em árvores ou antenas e, consequentemente, fazia com que deixássemos para trás os bambus, marimbas e demais artefatos tecnológicos nos quais o tempo de traquinagem nos tornava peritos.

Nos dias que seguem, graças a esses oportunos cena e barulho, revisitarei com carinho meu passado e irei contrastá-lo com o presente que a pouca molecada que vive nessa rua enfrenta. Lamentavelmente, essas férias estão acabando e não vi ninguém soltar pipa por aqui. Está tudo bastante mudado, a começar pela minha casa e pelo colégio â frente que, pela altura que têm, tomam considerável parte do espaço para empinar pipas. Os lotes vazios escasseiam, bem como as árvores; aumentam o número e o tamanho das casas, bem como o de estranhas e complexas antenas de tv e internet; o soltar pipa exige ainda mais habilidade, perícia e audácia. Também mudou o acesso às pipas, linhas, rabiolas e cerol; no nosso tempo, uma pipa e uma linha eram caros e tinham que durar muito; na maioria das vezes, quando o Marco Cocota não estava fazendo pipas, nós tínhamos que fazê-las, bem como às rabiolas.

Irônico, lamentável e desconfortável é constatar o quanto estou envolvido nessa dessa dinâmica de fazer e se acostumar com que as dores físicas e o sofrimento psíquico superem em quantidade e intensidade as dores morais que acima menciono. Ao fazer essa casa desse jeito, bem alta, eu contribui para esse acirramento do conflito, preenchi a paisagem da rua com obstáculos às pipas, fiz do mesmo que atualmente transforma pipeiros em verdadeiros inimigos de motociclistas, ciclistas e donos de antenas. Ao viver do jeito que vivo, ajudo a emergir figuras como a que encerro, cheias de dores psíquicas e físicas, e a pôr no limbo o pipeiro, sua mítica trajetória e seus desafios com alegrias e dores morais.

Ainda à mesa do café, mudo o ângulo de visão e fico a pensar nos pipeiros famosos da minha rua, como o Marcio, o Basa, o Sergio, o Zezé, o Jô e muitos outros. Após uma tarde movimentada, cheia de cruzamentos, estancamentos, sobe e desce de peões, pipas e gerecos, o ápice de um pipeiro era ser ele o único a sobrar no céu da região onde ele estava soltando sua pipa; é bem verdade que ele não estava, como eu sempre estava, entre os que sempre eram cortados ou que estavam correndo atrás de pipas voadas para continuar a brincadeira; mas todos nós estávamos envolvidos com as dores, alegrias e aprendizados inerentes ao dar ou tomar cabresto, cortar ou ser cortado na mão, embolar de linha e evitar fazer nós nela, nos dramas dos dias sem vento, dos roubos de linha, das perdas das rabiolas, dos dilados que impediam as pipas de subir e ficar no ar.

sábado, 2 de junho de 2018

Reencontros marcados

Rio de Janeiro, 26 de abril de 2018. Cinco horas da manhã. Como de costume, cheguei adiantado a mais um encontro (bem adiantado, por sinal), revelando a ansiedade que jazia nas entrelinhas. A alguns metros de mim, o Hospital Servidores do Estado – HSE, com quem terei o desafio de um reencontro lá pelas 8:00.

Há trinta e cinco anos não nos vemos e o escuro da madrugada me impediu de ver como ele está atualmente. Como só encontrei lugar para estacionar à rua do Livramento, pouco pude notar da silhueta do gigante que marcou minha vida. Inseguro sobre o local onde parei, resolvi ficar por ali até que o dia clareasse e tivesse mais segurança para deixar o carro e ir para o grande momento do dia. Fiquei na companhia do senhor que vende água de coco e faz ponto em frente ao Mercadinho 2001, esquina com a rua do Livramento.

Às 7:00 saí para tomar café no bar e restaurante Cantinho dos Servidores. Durante duas horas fiquei sem nada que, por ventura, trouxesse as lembranças dos muitos e, em sua grande maioria, dolorosos encontros que eu e o ‘Servidores do Estado’ tivemos entre os anos de 1978 e 1983. No restaurante, enquanto saboreava a média e o pão na chapa, pude contemplar detalhes da sua lateral e constatar que muita coisa mudou.

Em verdade, exceto por um breve contato visual com a Rodoviária Novo Rio e pelas dependências do Moinho Fluminense, não houve nada de familiar em mais essa chegada à Sacadura Cabral, 178. Nada de Perimetral, trens de carga, navios, viagem em ônibus da empresa Eval, Praça Mauá, cheiro forte de café, ônibus das empresas Magelle, Evanil, Reginas ou Jurema, nem mesmo tinha o famoso 222 parado ali por perto. Também pudera: nosso último encontro se deu em 21 de fevereiro de 1983, às 9:00, e muita coisa mudou na nem tão maravilhosa cidade que faz o cenário dessa controvertida relação que o destino, esse ilustre senhor, criou a partir do adoecimento e tratamento da minha mãe, a partir de 1980.

Sobre o reencontro, durante anos desejei e agi como se tal relação tivesse acabado, embora soubesse que havia faltado a importantes reencontros previamente marcados para os anos seguintes, em especial ao do dia 24 de março de 1983, conforme marca o velho cartão rosado. Tal ausência implicou em deixar para traz preciosas sessões de psicoterapia, oportunidade ímpar que eu tinha para mudar a dolorosa impressão que fiquei dos encontros que tivemos e sobre a vida que conheci durante o longo período de internação e após o falecimento da minha mãe, em 17 de setembro de 1981. Depois daquele fevereiro de 1983, meu reencontro com a psicoterapia se deu em 2003, ainda perdura, mas não dediquei muita atenção nas sessões para elaborar essa complicada relação que me foi imposta e os marcantes motivos e consequências da falta ao reencontro de março de 1983. Entretanto, quis o mesmo destino — esse ilustre senhor especializado em encontros, reencontros e desencontros feitos à revelia de nossas vontades — que em abril de 2018, aos 47 anos, e como aluno de Psicologia, eu fizesse uma visita técnica ao 'Servidores do Estado', como usávamos chamar esse hospital.

Nos dias anteriores, fiz o que aprendi com a vida nos demais encontros, reencontros e desencontros marcados que o ilustre senhor me presenteou: entendi que o (re)encontro era necessário, passei a desejá-lo; tentei controlar a ansiedade e não criar expectativas, não fiz planos. Preparei-me, claro: mantive-me austero e não dediquei às magoas uma posição preponderante. Sem sinais de contrariedade me dispus a entregar no reencontro o que de melhor haveria em mim após tanto tempo. Para segurar a pressão da ansiedade, durante a viagem começada em Seropédica, fiz alguns áudios sobre esse dia.

Embora me sobrasse tempo, notei que fiquei parado no restaurante Cantinho dos Servidores por muito tempo, que me segurava por ali, retardando o (re)encontro. Decidi sair e testar o que aconteceria conforme entrasse em contato com o gigante de concreto. O granito marrom e as grades mostravam que sua frente continuava a mesma. Não entrei, apenas observei a silhueta. Lembrei-me da entrada da rua Venezuela, dos ambulatórios e decidi pelo primeiro reencontro.
A entrada continuava a mesma: as fontes d'água à direita, o guichê lotado, muita gente entrando e saindo, as primeiras escadas rolantes que vi em minha vida e onde, depois de perder o medo, adorava ficar subindo e descendo. Emocionei-me. Em busca de banheiro, entrei num corredor que me levou direto ao ano de 1983. Mais emoções. Estava tudo praticamente igual àquela época — a mesma disposição das salas, consultórios e cadeiras, as cores em tom de creme e ocre e o perfil das pessoas: gente simples, envelhecidas, trazendo nas faces à agonia de quem mais uma vez acordou muito cedo e saiu atrás de uma boa notícia. 

Peguei água num bebedouro perto do banheiro e me sentei, deixando as lembranças conduzirem o momento. As lágrimas desceram rápida e fortemente, não conseguia segurar. Como previ nos áudios que fiz na viagem para cá, aquele garoto de 12 anos tinha ficado naquele corredor à espera da psicoterapia que tanto lhe fazia bem e o ajudava a elaborar toda transformação que sua vida sofreu em praticamente três anos. Ao Marco de 47 anos caberia retirá-lo de lá e levá-lo de volta para casa. 

Imagens da época vinham com rapidez no angustiante trabalho de reconstruir aquelas memórias, de dar uma lógica ou sequência a coisas que aconteceram há mais de trinta anos e chegar aos porquês do rumo que a história tomou. Uma dessas imagens reclamou atenção naquele momento: o dia em que ficou decidido que meu pai não me levaria ao encontro de 24 de março de 1983. A lembrança me dizia que foi por algo que era importante para ele, uma pescaria, apesar dele próprio saber que tudo tinha que ser marcado no Hospital e com antecedência. Essa doída lembrança, que sempre me acompanhara, veio numa intensidade mais forte do que de costume, experimentei raiva bastante desagradável e que trouxe à tona os questionamentos que, embora fossem óbvios, nunca entraram na pauta de uma conversa séria entre nós: “Por que, àquela época, eles não se mobilizaram para me levar à terapia? O que aconteceu para que todo processo fosse esquecido, pois o cartão marca que não houve mais retorno meu ao hospital?”. 

Chorei muito, mas recobrei a consciência de que minha missão ali não era destilar ódio ou raiva, de que à frente eu certamente viveria mais momentos fortes e precisava estar preparado. Prontamente, desculpei meu pai e minha madrasta pelo o que tenha acontecido à época, pois o que importava naquele momento era o que eu iria fazer dessas lembranças e emoções, o que eu iria fazer com o garoto de 12 anos que eu resgatei e que não tinha mais aquela casa de 1983 para nela voltar, lá se recolher e, enfim, ocupar o espaço em branco na história da sua própria vida. Simbolicamente, segurei nas mãos do menino e disse: “Vem comigo, vamos para vida, Marquinho, sai da condição de vítima, perdoe as pessoas”. Abracei e levei-o para me acompanhar durante o resto da visita técnica.

Antes de encontrar meus amigos de turma, fui ao arquivo saber da possibilidade de resgatar os prontuários dos atendimentos dados a mim e minha mãe. Passei em frente ao local onde ficava a cantina que tanto gostava de frequentar quando ia ao HSE, onde normalmente pedia um suco de maracujá e um misto-quente ou coxinha de frango. Ela estava fechada, a fachada era a mesma.

Às 9:45, começamos a visitar a parte do hospital onde as pessoas ficavam internadas, onde eu vi minha mãe pela última vez. Attila, que lá trabalhava, nos conduziu num roteiro que só podia mesmo ter sido preparado por aquele ilustre senhor especializado em encontros, reencontros e desencontros feitos à revelia de nossas vontades: começaríamos pelas partes de baixo, depois iríamos ao último andar e desceríamos até o sétimo andar, local onde ele trabalhava como técnico de enfermagem e onde minha mãe ficou, entre 1980 e 1981. Como quem livremente consentia com aquele reencontro, fiquei me controlando o tempo inteiro, conforme Attila ia (re) apresentando àqueles locais algo já conhecido por mim: a recepção, os elevadores, o local de alta, o local de radioterapia etc. Ao chegar ao sétimo andar, ficou decidido que primeiro visitaríamos a Neurocirurgia e Neurologia — onde ele trabalhava e onde faríamos as perguntas-chave do trabalho — para depois visitar a Ginecologia, onde minha mãe ficou. Lá da Neurologia fiquei contemplando o corredor que dava à Ginecologia, ansiando e temendo o reencontro. Tudo foi tão estranhamente preparado que acabamos por visitar todas salas do sétimo andar no intuito de conhecer a realidade operacional do local, as condições de trabalho das equipes médicas e dos pacientes e visualizar onde e como os psicólogos da saúde podem atuar.

Acabei voltando ao quarto onde há quase 37 anos, no dia 15 de setembro de 1981, vir minha mãe pela última vez, recebi seu último abraço e perguntei quando voltaria para casa e mais uma vez estranhei o estado em que a doença a deixou; lugar onde, na verdade, ela só ficava deitada porque já não andava mais, onde eu ficava encantado pelo rádio que tinha na cabeceira e sempre estava sintonizado na rádio-relógio e eu atentamente ouvia os contínuos tique-taque de um relógio, a voz anunciando a hora certa a cada minuto, os locutores dizendo “Você sabia que tal coisa é assim ou assado. Você sabia?” e a anúncios como o de uma determinada empresa que cantava de galo com o preço de milho picado. A cama onde ela ficava era perto da janela e de onde se podia ver o morro em frente ao hospital, uma paisagem que não me pareceu nada familiar. À época eu ficava olhando para baixo, para a entrada, para o movimento na Sacadura Cabral.

Curiosamente, não chorei ao rever tudo aquilo, embora estivesse notoriamente afetado, falando bastante para compensar a emoção vivida. Talvez, pelo fato de estar acompanhado daquele garoto de 12 anos ou pelo fato de meus colegas de turma não terem a menor noção de que o que para eles era uma novidade era para mim uma delicada reprise, um reencontro especial, meus comportamentos e reações tenham passado desapercebidos. De lá fomos ao prédio dos ambulatórios e passamos no setor de psicologia onde tivemos a chance de conversar com a psicóloga Eleonor Elizabeth, que entrou pouco depois de 1983 no setor e onde uma vez mais fui visitado por imagens do passado e por emoções que mexiam profundamente comigo.

Ironicamente, após mais uma ida ao ‘Servidores do Estado’ voltei para Seropédica. Estava de carro e não precisei andar até a Praça Mauá para pegar o Tarifa A da Eval – demorava a passar, mas rápido chegava em Seropédica – nem precisei ir até a Central do Brasil para lá pegar um Tarifa B – passava mais vezes e sempre demorava a chegar ao seu destino final. Acompanhado dos meus amigos e daquele menino de 12 anos, fomos à UFRRJ para tentar assistir uma aula de Ética na Psicologia e onde horas depois estarei dando aula até as 22:00 horas. Outros reencontros nos aguardam, pois pretendo resgatar os prontuários dos atendimentos que eu e Dona Tininha tivemos e espero que essa relação finalmente acabe. 

Às 22 e 30, cheguei à casa onde atualmente moro e que será a nova casa e lar do Marquinho que resgatei no ‘Servidores do Estado’. Ironicamente, parei o carro justamente em frente à velha casa onde ele morou e de onde, simbolicamente falando, ele saiu há trinta e cinco anos para uma sessão de terapia e por lá ficou. Outro reencontro marcado acontecia.