Seropédica, 23 de setembro de 2020. Relembro aqui o momento bem crítico em que, numa festa de criança, conversava com um conhecido sobre a nossa realidade e a mundial. Aconteceu assim que o Temer assumiu, que o golpe parlamentar contra o governo da Dilma procedeu.
Na ocasião, meu interlocutor disse que eu não podia falar ‘mal’ do governo, que não havia nada de golpe, e que, sendo um acadêmico, um intelectual, eu era um ‘teórico’, um ‘eterno estudante’, alguém que vivia fora da realidade ou numa realidade à parte. Infelizmente, no calor da hora, não me ocorreram as palavras que agora me acorrem com facilidade e alegria.
Ele, um ‘empreendedor’ do varejo Seropedicense, continuou falando e não conseguiu explicar-me o que seria tal realidade e como e porquê dela eu distava ou a desconhecia. O impacto daquela atitude tamanha em burrice arrefeceu severamente meu ânimo e ideias, pois só consegui dizer: "Estou curioso para saber qual é o papel que você desempenha na criação e produção da realidade em que vive e que lhe permite o luxo de conversar com um estranho de uma outra realidade".
Sem responder, a figura – um desses que crê estar ao lado de um banqueiro na produção da realidade brasileira – preferiu partir para as tradicionais frases feitas e derivações delirantes que o afastaram abruptamente do tema. Típico panfletário do “você trabalha ou só dá aula?”, ele conseguiu a façanha de colocar o ‘só dá aula’ numa realidade à parte da que ele cria estar e na qual parecia desfrutar de condição privilegiada, pois sentia-se autorizado não apenas a desconstruir ou desabilitar alguém que com ele não se parecesse, como a também subtraí-lo da realidade.
Esperando a hora de ver aquela interação findada, pensava não apenas na desabilitação do professor que sou, mas principalmente na figura do estudante, no encarceramento dele no não-lugar chamado ‘eterno estudante’; ironicamente, lembrava que não fazia muito tempo que o nobre carcereiro havia se formado num curso superior. Lamentavelmente, como muitos outros, ele realmente não sabia ou esquecera do mundo de competências ou habilidades que um estudante intuitiva e tacitamente aprende e desenvolve em sua viagem rumo à toda aprendizagem formal que lhe proverá outras competências e habilidades (codificadas); que tais qualificações e habilidades prévias somam-se às dos professores na viabilização da aprendizagem por meio do processo ensino-estudo; que todo estudante labora um bocado, pois aprender, por mais lúdico que deva ser, ‘dá trabalho’.
Abro nesse momento as comportas das lembranças dos 45 anos em que estou fora da realidade, já que desde os quatro, quando comecei, jamais parei de estudar. Diante as imensas dificuldades de compreender de maneira linear e ainda devidamente representar em minha mente os conteúdos de matemática, línguas, ciências etc., lembro que precisei de muitas soluções incomuns e improvisadas para chegar a algum aprendizado. Lembro-me com prazer de quando comecei a usar de metáforas, associações criativas de palavras e símbolos, de exercícios de imaginação e visualização e de construção de esquemas e estruturas para acessar melhor os conteúdos.
Como foi prazeroso pra mim colocar-me na posição de um montador ou construtor ou design ao combinar elementos para construir textos ou dar conta das desafiadoras análises sintáticas e morfológicas da Dona Inácia e da Maria da Penha. Não menos prazerosa foi a condição de sentir-me um decifrador ou investigador ao deparar-me com a necessidade de solução para problemas matemáticos: “Pistas, precisamos achar as pistas que levam às soluções; não tem só uma”, ensinou-me o primo Fernandinho. Quantas vezes estive na intuitiva e misteriosa condição de alquimista antes de encarar os desafios de física e química: eu tentava visualizar como ocorreria cada interação de elementos antes de enfrentar as transformações químicas e físicas solicitadas no papel à frente. Por fim, que dizer da criteriosa e detalhista condição de cartógrafo e desenhista ao traçar os mapas necessários para lidar com tanto informação espacial e temporal que geografia e história mobilizavam?
Toda essa informação não foi encarada de maneira linear, nem foi lógica e convenientemente acomodada em nebulosos endereços de memória de curto ou longo prazo; fizeram-se necessários mapas, esquemas, estruturas, setas para lá e para cá e pontos-chave depositados em folhas em branco para depois serem devidamente lidos e relidos. Precisei e muito ver-me nessas condições para enriquecer e potencializar as aprendizagens necessárias à minha caminhada à margem da realidade.
Destaco também o que aconteceu quando comecei a superar os dramas da gagueira, na sexta-série; eu e Márcio Pena costumávamos voltar à pé aos sábados do Colégio Fernando Costa e, numa dessas caminhadas, ele disse que o Beto Guedes era gago e cantava e que eu deveria tentar ‘falar cantando’ ou ‘encarnar uma personagem’ para superar o problema e dar conta das leituras exigidas pelos professores; nos sábados seguintes, ele pedia que durante a caminhada fôssemos interpretando personagens num teatro improvisado. Assim, com a ajuda de um estudante de 14 anos, comecei, aos 15 anos, a vencer a gagueira, a melhorar meu desempenho social e de estudante.
Ironicamente, lembro-me também de como precisei ser 'empreendedor' e 'inovador' no pensar e agir para lidar com a frustração de não ter conseguido falar corretamente inglês com o presidente de uma empresa em que trabalhei. Nesse mesmo dia, assistia à noite um programa sobre a ida do homem à lua quando pensei: “se o homem foi à lua na década de 60, por que não vou falar inglês em 1997? vou falar!”; disse a mim mesmo: “existe o que eu não conheça – que aliás é muita coisa! –, mas não existe o que eu não possa conhecer”. Desliguei imediatamente a TV, fui a um curso de inglês e me matriculei num intensivo de cinco dias por semana. Terminei esse curso em onze meses, com apenas três faltas e muita aplicação de velhas e novas habilidades e competências intuitiva e tacitamente obtidas.
Bem, não foi o pensamento utilitário e o incentivo – o respeito dos que me viram falhar ou a redução da vergonha – que explicaram e responderam por isso; foi pensamento substantivo, consciência acurada da realidade, determinação e motivação intrínsecas comuns àqueles que respeitam e admiram o conhecimento, a sua produção e o trabalho que dá aprender, que me levaram ao insight de que não existe o que eu não possa estudar, compreender, aprender, por mais trabalho que isso dê.
Atualmente, eu e meu carcereiro-empreendedor só nos encontramos pelas redes sociais e não trocamos mais que o indispensável para uma convivência digital vazia e protocolar; todo comedimento faz-se necessário para que não descambe em infrutíferas discussões em uma timeline. Ele se encontra na fase de assumir em suas postagens que o governo atual é um fracasso, embora não assuma que embarcou ingenuamente na grande fantasia de que viraríamos uma nova América. Segundo ele, o país precisa estar na 'ponteira das tecnologias' para ser mais produtivo e eficiente.
Tecnologia, como sabemos, precisa de gente que estuda e ensina com incentivo, motivação, prazer e competência; gente que, segundo ele, geralmente vive à margem da realidade em que ele se encontra. Creio estar chegando o momento em que nos reencontraremos e poderei lhe falar tudo o que só me ocorreu quando não precisava mais dele me defender. Terei a obrigação de reivindicar o reconhecimento dele do devido e imperioso lugar ocupado pelos que ensinam e estudam na produção dessa realidade que a todos desafia.