terça-feira, 23 de novembro de 2021

Coração e mão X Cérebro e garganta

Um conhecido faleceu e no dia seguinte fui me solidarizar com os filhos, principalmente os ‘especiais’, um menino e uma menina totalmente dependentes dele. Quando cheguei, duas pessoas discutiam intensamente. Assim que dei meia volta, a voz de um dos envolvidos soou alto: 

─ Marquinho, vem cá ajudar na solução de um problema! O insensível aqui tá insistindo num absurdo.

─ Isso! Precisamos de mais uma pessoa coerente para resolver essa questão.

Pensei em fingir que não ouvi, mas a amizade com o falecido era de longa data. Decidi entrar sabendo que seria o mediador do intenso duelo entre ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’. Duelavam a filha do falecido e o esposo da irmã. O motivo era o que fazer com os ‘filhos especiais’ já que o falecido era viúvo.

A irmã defendia que nada mudasse na rotina deles, que permanecessem em casa para serem visitados, fossem abastecidos pela pensão de pai e mãe e que demais irmãos e famílias se revezassem na gestão. Por sua vez, o cunhado defendia que custos fossem priorizados e reduzidos, que se reduzisse o número de visitas a eles ou do que era oferecido aos visitantes e, por fim, que estudassem uma futura colocação dos irmãos numa instituição onde recebessem atenção especial, o que amenizaria para todos os encargos do revezamento.

Explicadas as posições, ambos falaram: “É tão óbvio e ela(e) não quer ver”. 

Em nenhum momento me coloquei como simpático a uma das posições, mas empático a elas: todos queriam o melhor, mas não conseguiam perceber como pintavam o óbvio e o transformavam no quadro. Isso me permitiu compreender que, ao pintar o quadro para análise, cada um colocava como figura ou óbvio o que sua experiência e habilidades e competências alcançavam, o que, logicamente, deixava as do outro como fundo no quadro da obviedade.

Não demorei para decifrar a senha por trás daquele código do viver: precisam se conhecer como virtudes, não como ‘insensibilidade’ e ‘incoerência’. 

Irmã mais velha, a ‘incoerência’ esteve próxima aos pais nos cuidados desde que os irmãos nasceram; sabia quanto que as visitas eram caras para eles, o que a permitia olhar aquela realidade e planejar com facilidade o ambiente, os próximos passos e onde cada um da família entraria nos cuidados, faltando apenas ajustes para o revezamento. Compreendi que nela predominavam afeto e expediente ou coração e mão. 

Casado com a irmã mais nova que ela, a ‘insensibilidade’ era professor universitário, estudioso de gestão e estratégia. Morava longe dali e tinha informações precisas sobre custo de vida e o que ficaria como pensão, sabia que uma pessoa precisaria ser contratada para ficar durante o dia, enquanto os demais revezariam toda noite e temia pela subsistência do projeto. Sua habilidade para argumentar era impressionante, o que certamente fez a ‘incoerência’ gritar por minha ajuda. Compreendi que ele era pensamento e comunicação poderosos ou cérebro e garganta.

O óbvio ao que cada um fazia menção era as competências, habilidades e crenças que explicavam o melhor jeito que ambos encontraram para estar nessa vida e produzir suas virtudes. Logicamente, faziam uso disso no duelo e o resultado não estava bom para ninguém, principalmente para os dependentes que a tudo escutavam e de bobos não tinham nada. “É da gente que estão falando, Marquinho?”, me perguntaram quando fui cumprimentá-los.

Quando finalmente falei, procurei mostrar o que via como quadro e relação figura x fundo: concordava com tudo o que disseram, mas lá no quarto estavam ‘as figuras’, aqueles que deviam ser priorizados para escuta, entendimento da realidade e busca por solução; os sentimentos e pensamentos dos dois deveriam ser figura e não fundo no quadro. Falei para ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’ que elas começavam a pintura por suas virtudes, ao invés de usá-las para dar conta do desafio que a pintura do quadro demandava e que dificilmente chegariam a qualquer conclusão se não reconhecessem que o obvio é mais relativo do que se imagina e se vê. A ‘insensibilidade’ resolveu parar e fazer como sugeria e os irmãos foram trazidos à sala e ouvidos.

Gastei tempo apresentando coração e mãos ao cérebro e garganta, finalmente se conheceram como virtudes e não como ‘insensibilidade’ e ‘incoerência’. Fiquei sabendo depois que optaram por manter as crianças em casa.    

Guardei o precioso insight que me veio de, ao invés de julgá-los, lê-los e representá-los como dimensões predominante e por onde as virtudes se enunciam: num predominava o afeto, o fazer pragmático, o expediente; noutro a reflexão, a estratégia, o cálculo, a facilidade para construir e expor argumentos. 

Ficaram lições: somos coração, mãos, cérebro e garganta, mas um predominará na viabilização das virtudes que podemos produzir e aprender a negociar seu uso ou aplicação; esta aprendizagem é fundamental, pois as razões do coração nem sempre são compatíveis com as do cérebro e as mãos estão sempre mais próximas da realidade do que a garganta; por fim, o óbvio é sempre o que escolhemos como figura nos quadros da vida e sempre estará associado aos que nossas experiências, competências e habilidades alcançam.

(23 de novembro de 2021)


terça-feira, 2 de novembro de 2021

Encontros, despedidas, rememoração e recriação.

Finados sempre foi um dia especial para mim. Eu não sabia definir com precisão por que era assim, mas a experiência me trouxe as dicas que precisava para o entendimento desse delicado código do viver. Onde celebrávamos a morte eu via uma celebração da vida: o dia de finados é pura criação e recriação. Começava de véspera a arte de pegar as memórias dos que se foram e criar o cenário para o famoso dois de novembro, quando íamos ao cemitério, o culminar do pesaroso ritual. É criação e recriação constantes e a danada da memória, chegada a uma atualização, é quem faz isso.

Atualmente não vou ao cemitério visitar os túmulos de meus pais, mas assim que abro os olhos vou direto para o ateliê das lembranças e começo a criar e recriar. Não sou dado às artes da gastronomia e da hospitalidade, mas sou filho de mineiros, ponho a mesa, preparo o lugar de cada um na mesa, cuido de cada detalhe. Só saio de lá quando todos se vão ao final do dia. Deixo a bagunça para arrumar nos dias que seguem e vou para a cama descansar.

Antigamente era diferente. “Prepare-se, é dia de celebração dos mortos”, dizia-se solenemente ao me acordar. Eu respeitava a ausência de vida nos olhos de todos. “Hoje é dia de finados”, comunicava-se e tudo mudava na casa: introversão, lágrimas, frases feitas, poucas palavras: “Ponham uma roupa boa, demonstre seu afeto”, “Você leva as velas e vê se não esquece o fósforo”, “Você leva as flores”, “Já falei com o rapaz que vai capinar em volta do túmulo”, “Vamos cedo porque não quero pegar o cemitério lotado e temos que passar no Orlando Cocó para levar um frango para o almoço”, “Fecha o olho na hora da oração, seu demente”.

Na hora do almoço, palavras praticamente cassadas, lágrimas contidas. Mas pensamentos são discretos e pensar, ainda que gere muito barulho dentro da gente, é ato de ousadia e resistência às cassações. “Como finaram se o que fizeram foi uma passagem? Se saíram daqui para ali, pra lá ou acolá, vivos estão, ora. Como morreram, se não há um dia em que deles não me lembre, em que a memória não os traga ou nos leve para lugares e momentos especiais?”, pensava calado enquanto olhava para a cadeira de dona Tininha vazia na mesa. “Se deixamos a cadeira, por que não pusemos o prato e os talheres dela?”, continuava a reflexão. Um pouco mais de ousadia na imaginação e lá estava dona Tininha nos fazendo companhia, piscando o olho para mim, sorrindo discretamente, orientando a respeitar o silêncio.

A experiência chegou e ousadia e resistência tiraram a imagem da mesa da cozinha e a levaram para o ateliê das lembranças. Começo os preparativos, deixo as portas abertas e aos poucos todos chegam. Começa a tocar Trio Parada Dura, seu Antônio sorri feliz. À dona Tininha, por força do tempo e recriação da memória, preparo uma playlist da Clara Nunes. Ela gosta quando toca Feira de mangaio, aceita com elegância o possível lapso em 40 anos de saudades. O tempo passou, as coisas melhoraram e hoje tem quase de tudo: frango, peixe, salada, fruta, cerveja e vinho, refrigerante e sobremesa. Atualmente pode exageros. Mônica pede uns louvores, Cris traz uns toques de atabaque do seu terreiro e eu não vejo a hora de tocar Milton Nascimento. Malu, Leo e Mariana, que chegaram zoando a todos, nos abraçam, pegam seus lugares e começam a falar das novidades de suas vidas profissionais e afetivas.

Tudo muda a cada ano para esse dia. Dona Tininha, artista da costura, exige que ninguém repita roupa e estamos todos no fino do traço e do ponto. Seu Antônio não gosta de tirar aquela camisa surrada do Botafogo do brasileirão de 1995, mas faz a parte dele; reclama, mas dona Tininha o provoca com aquelas sonoras gargalhadas. Algumas coisas não mudam, é claro, precisam permanecer, são elas que nos guiam no passar do tempo. Mas louças, talheres, temperos, quadros, tinta da parede e das madeiras e do piso são todas novas a cada ano. Mônica faz a oração, eu e Malu somos os únicos de olhos abertos. É serve aqui, pega ali; é festa e a gente se refestela.

Quando me dou conta o ateliê é só alegria. Já estamos no café da tarde. Chegou a hora do Milton Nascimento, está tocando Encontros e Despedidas. Paro de comer a broa de fubá e então me permito um instante de silêncio. Contemplo com contentamento Mariana, Malu e Leo discutindo as coisas do seu tempo, Mônica reclamando com o pai a demora dele fazer uma visita à casa dela, enquanto mãe e Cris falam sobre a melhor maneira de cuidar das samambaias choronas. Maya, Joana D’arc, Cléo e Freud estão à porta latindo, querem atenção os safados. São quase dezoito horas, está na hora da ave-maria. Colocamos dois copos com água sobre o rádio, Júlio Louzada solta a sua voz e a agua está benzida. Pai serve da benzida para mim, Cris e Mônica, é muito solene. Mãe, brincando com Léo, Mariana e Malu, mede a golada de cada um e pede para não para babujarem no copo. “Se não sobrar para mim é pecado, hein”, diz ela sorridente.

A folhinha na parede informa que amanhã é dia 3 de novembro. Milton Nascimento informa que “E assim chegar e partir/São só dois lados da mesma viagem/O trem que chega é o mesmo trem da partida/A hora do encontro é também despedida”. Abraços trocados, sorrisos e lágrimas, recomendações e nas faces de cada um uma enorme gratidão. Fechos os olhos, todos se vão.

(2 de novembro de 2021)

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Uma Rural todinha em mim

A Rural faz 111 anos. Recebo algumas perguntas para expressar minha relação com ela. Vejo-me diante do desafio de em poucas palavras e à queima roupa falar dos sentimentos e do que me marca na experiência de ruralino, do que a UFRRJ representa para mim e da atual percepção que tenho dela.

Aceito o desafio, falo e ao mesmo tempo ouço imaginariamente Um girassol da cor do seu cabelo, de Lo Borges. A sensação é a mesma de quando ouvi essa música pela primeira vez, lá na casa Rosada, graças ao amigo Fernando Duque: o corpo ficou todo arrepiado no encontro entre mim, a música e o vento que só venta na Rural.

Falar do que a Rural representa para mim não é fácil, dá choro e risadas em proporções absurdas. São 50 anos de idade e 50 anos de Rural. Tirando pouquíssimos anos em que estive distante daqui, todos os outros anos são Rural, são ruralinos. A Rural é definitiva em tudo o que me constitui: afetos, memórias, encontros, valores e sonhos.

O que falar dos sentimentos? Lembro que sou filho de funcionário e que residi aqui dentro, que estudei na escolinha do IZ quando ela era de fato no IZ, que fui aluno do CTUR, duas vezes aluno de graduação e uma de doutorado, que fui técnico-administrativo e estou docente. São muitas as emoções e sentimentos envolvidos na minha relação com a Rural. A Rural atravessa e marca definitivamente minha história.
 
As ligações são muitas e descrever meus sentimentos de ruralino não é tarefa fácil. É tudo muito denso e tenso nessa relação, são muitas memórias, desde a do momento de criança em que comi ao lado do meu pai no bandejão onde ele um dia foi garçom até o momento em que você docente assiste lá de cima a alegria dos formandos e das famílias na formatura, passando por uma cirurgia no antigo hospital no IF (ou por andar num ônibus dirigido pelo senhor Modesto, por estar conversando com o João, porteiro do Clube Social, por estagiar no plantio do arroz e na ranicultura, por ser do CPD e particpar da informatização e da implantação da internet na Rural, por plantar árvores ou hortaliças no CTUR, por ter vivido amores aqui, por ter conhecido pessoas sensacionais.. a lista é grande). Ah, sem falar no sentimento de ciúme do meu pai, que amava e vivia a Rural numa proporção assustadora.

É tanta coisa que me marca, minha memória ilustra as diferentes posições ou lugares em que estive por aqui. Mas tem algo que deixou marcas profundas. Meu pai, o saudoso Antônio Goulart ou Mineiro, trabalhou nos alojamentos e, nas datas de natal e ano novo, eu fazia-lhe companhia para levar alimentos e cumprimentos aos alunos que não tinham recursos. Ele fazia pequenas ceias, distribuía abraços e palavras de apoio, convidava as pessoas para irem lá para casa. Minha casa sempre foi cheia de pessoas da Rural, elas passavam natal, ano-novo, aniversários e outras datas conosco. Vi meu pai chorar abraçados a muitos nos seus piores ou melhores momentos, como no dia, em plena ditadura, em que ele chegou em casa após ser testemunha de defesa de um aluno preso por supostos atos criminosos; ele chegou e começou a chorar: chorou pela injustiça, pelo mal que faziam ao aluno -- que estava em péssimo estado -- e chorou porque achava que o aluno morreria e não podia fazer nada. Meu pai também tinha uma memória impressionante, conhecia todos pelo nome e sabia os cursos que faziam, os alojamentos em que viviam e das cidades de onde vinham; várias foram as vezes em que visitávamos as famílias de alunos e ex-alunos nas férias em suas cidades de origem. Meu pai acolhia, ajudava e orientava como podia as pessoas e exigia que eu respeitasse alunos, professores e técnicos, sempre ilustrava as qualidades e esforços que faziam para levar suas vidas.
 
Passados os anos, que percepções tenho da UFRRJ? Sem exageros, não tenho apenas percepções da Rural, como se estas fossem impressões que ficam após um encontro involuntário ou passageiro. Tenho vivência dela, nela, com ela e por ela. Minha experiência com a Rural é involuntária, pois fui filho de funcionário, mas é principalmente voluntária, pois nela fiquei, nela estou. A influência da Rural na minha estrutura identitária e produção da minha subjetividade é da ordem do inexorável e do indelével, é punk, submete-se apenas às artimanhas da demência. É tanta coisa! Conheço o que o aluno de secundário, graduação e pós-graduação experimenta. Conheço o que o morador experimenta, o que o técnico-administrativo experimenta, que o docente experimenta (dei aula em todos os campus) e o que aquele que tem cargo ou função de coordenação ou executiva experimenta.

Sim, hoje tenho uma visão diferenciada da UFRRJ, pois preciso transcender os afetos mais ingênuos e ter em mente que ela é um organismo complexo: é uma universidade, uma cidade e uma organização ao mesmo tempo. E isso exige modelo de gestão ou de lida e esquemas de observação e interpretação diferenciados. Se chama UFRRJ, mas ela é universidade nos institutos, campus e na biblioteca, onde se produz produtos e serviços de alto valor agregado, como ensino, pesquisa e extensão; ela é inteirinha uma cidade e todos os desafios de se produzir uma vida coletiva; e ela é uma organização, um nexo de funções e recursos que existe para abastecer a si própria e à universidade e à cidade do que é fundamental à existência. É todinha Rural.

A Rural é única, imensa em todos os sentidos e desafiadora. E ela, de uma maneira bem peculiar e figurada, está toda em mim. Lamento, mas essa história não cabe aqui.

domingo, 23 de maio de 2021

Chão manchado de cabelo e pelo de barba

Saía de casa quando minha vizinha parou, reclamou da minha barba a fazer e ainda disse “Está deprimido, meu filho?”. Curiosamente, vieram à mente imagens da última vez em que deixei o chão de uma barbearia manchado de cabelos e me deu imensa vontade de falar sobre o tema. De volta ao momento, contive o impulso de falar sobre o tema e de dar uma resposta moleca, deixei um sorriso de boa vizinhança e saí educadamente. Ainda que mais velha e bem-intencionada e mesmo sendo eu careca, ela não entenderia o significado que um chão manchado de cabelo tem para mim, não acessaria as delicadas senhas aí inscritas e pedindo decifração.

A última vez foi na barbearia do Zé João, em 1988. Ele ainda avisou: “Ratinho, seu cabelo é fraco, nunca mais vai ficar do jeito que está. Passa a zero mesmo?" Como tinha 17, ainda falou: “Seu pai sabe que você vai fazer isso?”. Lembrou que cortava o meu cabelo desde que eu era criança, que meu pai sempre me levava lá, que aquela era a última vez em que ele efetivamente teria cabelo em minha cabeça para cortar com tesoura e que dali para frente seria só máquina. Acertou.

À época, muita coisa se alinhou: algumas pessoas de referência para mim tinham passado a zero no cabelo e eu queria aquela onda; era uma fase rebelde, de confronto com meu pai, de complexa reafirmação do édipo mal finalizado, éramos puro conflito. Conflito e ondas me embalavam sim. Ondas com aquela de usar bonés de roupas de marca. Para além das ondas e do édipo, o que queria mesmo era me ver diferente: não me contentava em me ver o mesmo a cada dia, sempre queria me ver diferente, um outro eu ou eu num outro lugar. Creio que nem tinha cabelo quando essa inquietude fez morada especial em mim. Sintoma do édipo e de algo que ainda preciso elaborar quando o espelho responde ao meu olhar.

Quando Zé João falou “Pronto, Ratinho, veja se tá do jeito que você quer”, me virei lentamente para o espelho e ele, com aquele sorriso lindo que sempre teve, falou: “Seu futuro vai ser assim. Vai ser engraçado ver você assim depois de tanto tempo cortando o seu cabelo”.

Quando me vi careca fiquei meio assustado, mas não tive arrependimento; tive a breve alegria de alguém que fazia algo que tinha um grande significado, pelo resultado e pelo ato em si. Olhei para o chão e o vi todo manchado do meu cabelo. Foi a última vez. Lembro-me que não tive coragem de olhar o processo de corte, fiquei de costas para o espelho e o Zé João, rindo de minha covardia, brincava: “Ué, Ratinho, você é homem ou um rato?”. Ria porque eu era filho do Ratão, o carismático Antônio Mineiro, o Antônio Goulart, e ele só me chamava de Ratinho, dificilmente de Marquinho.

Quando cheguei em casa e tirei o boné, meu pai disse: “Porra, você é demente, gosta de me provocar mesmo”. Tremi feito vara verde. Não falou mais nada, sequer teve a típica reação de quando via que entre nós as coisas não fluíam bem. Também pudera: o tão esperado filho homem vivia em conflitos com ele, não convergia a ponto dele orgulhosamente dizer “esse é meu sucessor”. Eu não vivia o futebol na intensidade que ele queria, troquei o Botafogo pelo Vasco, a música caipira pelos Beatles e a MPB; não jogava cartas, não pensava a política como ele e, principalmente, não tive a humildade de captar como ele pensava a vida e suas surpresas. Em vida, passados alguns bons momentos da infância, fomos só amor e conflito. Hoje, evidentemente, é fácil perceber que os conflitos foram uma das maiores burrices que juntos cometemos e, mesmo inteligentes, sensíveis e criativos, nos amamos muito pouco.

Horas antes da última vez que manchei o chão com cabelo, Roninho, meu amado primo e com quem eu vivia a onda do cabelo enrolado e do uso do neutrox, disse para eu não cortar com máquina; disse que jamais faria no dele, poupando-me de ouvir que meu cabelo era ruim. Antes dele, quando estive em suas barbearias, Mamede avisou sobre meu uso de bonés, que eles enfraqueciam os fios e tal, e Jairo, que via a situação que se desenhava, nada falou. Sempre fui impaciente, se não tinha vaga no Zé João, ia nos outros dois e assim puderam eles fazer ou não o vaticínio: meu futuro sem a chance de manchar o chão com cabelos.

Passados 33 anos, não tive paciência para explicar à minha preocupada vizinha que não estava deprimido, que deixar o cabelo e a barba crescerem tem muito significado para mim, que toda vez que o faço e desfaço estou reelaborando e ressignificando muitas coisas na minha história.

Ela não teve a sensibilidade de perceber que ao assim fazê-lo busco certa proximidade com meu amado pai, que cultivava uma bela barba e tinha forte e invejáveis fios de cabelo. Toda vez que estou barbudo, recebo alguns adoráveis comentários de que estou a cara dele. Entenderia ela que barbudo o Ratinho vira, ainda que por poucos dias ou semanas ou meses, o Ratão? Não, ela não entenderia que nesses desencontrados momentos, já que ele faleceu em 2005, todo conflito entre nós acaba: já não se faz mais necessário ao Ratinho afirmar que ele não é o Ratão, que quando ouço esses comentários é como se ele estivesse me abraçando e dizendo que me ama.

Ela não acessaria que deixar barba e cabelos crescerem, de me esvaziar das demandas narcísicas, é uma das maneiras que uso para visitar o vale das minhas sombras, das mazelas de minha alma. É lá que me sento sob árvores pouco folhosas e contemplo os momentos em que estou ou fui ruim, em que não estou ou não fui tão bom quanto penso e desejo; é lá que choro com mais liberdade as dores de ser alguém que ainda não aprendeu a lidar direito com as perdas e os laços afetivos mal resolvidos. Ela não acessaria que sigo pela vida tentando entender o que Milton Nascimento canta em Travessia e Caçador de Mim, pois ainda vivo a me procurar e do nada a me caçar, me abater e que também do nada uso me cassar dos lugares em que mais bem estou e em seguida saio soltando a voz nas estradas. Cada vez mais cansado disso, já que no espelho vejo e começo a aceitar o homem de 50.

Ela não entenderia se dissesse sorrindo e otimista que deixar barba e cabelo crescer para ver o chão manchado de cabelo e pelo de barba é uma maneira simbólica de lidar com a terrível dor da alma do dia em que cortei meu rosto tentando ser igual ao pai que contestei édipo afora. Ah, embora tenha doído apenas na alma, que agonia foi aquele dia: aos 12 anos, escondido no banheiro, fiz todo ritual que ele fazia: primeiro, pus um pouco de Bozanno no pincel e enchi de espuma a cara que só tinha poucos pelos; depois, peguei o aparelho de barbear de metal, pus cuidadosamente a gilete na parte de cima, enrosquei bem a parte debaixo do barbeador e fechei a parte superior; então, olhei-me no espelho e tentei fazer como há anos o via fazer; fiz a primeira passada e logo veio o corte e o sangue a escorrer pelo canto da boca e a manchar a pia bege escuro.

Sangrando, assustei-me, chorei, sujei muitos pedaços de papel higiênico para não deixar rastros na toalha de rosto e tomei a infeliz decisão de, como fazia meu pai, por álcool no rosto. Ao meu jeito fui às alturas com a ardência e ao chão com a bronca que me deu quando viu o corte no meu rosto. Minha vizinha não entenderia que ao me ver homem no espelho, barbudo e com um pouco de cabelo para cortar, eu olho para aquele menino de 12 anos a chorar, o abraço e o acolho, já que o pai dele não o fez, apenas falou duro e o criticou.

Por fim, ela não entenderia que deixar barba e cabelo crescer para depois ver o chão manchado de cabelo e pelo, ainda que jamais como da última vez, é um ato de resistência contra o passar do tempo: tenho 50, mas ainda resisto à presença dos rostos dos meninos de 12 e de 17, do meu pai, do Zé João e do Mamede apenas no espelho da lembrança (não sei do Jairo). Também é uma insistência para resolver o terrível dilema de que vira e mexe me inquieto, creio que preciso mudar e então movo o mundo que me cerca e por vezes me assusto com o resultado, como aos 12 anos. Talvez seja o dilema de que ainda não fiz meu os lugares em que estou e que, mesmo me sabendo forte, contabilizo apenas o muito que ainda tenho para falar.

Dilemas de ainda percorrer solitária e desajeitadamente os desertos do édipo. Ela não entenderia isso, não acessaria as senhas desse código do viver.

23-5-2021

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Foi um Martin Freire que passou em minha vida

 


Em Setembro de 1990, apaixonado por uma menina, fui à casa da sua avó, lugar onde costumava ficar em alguns finais de semana. Era semana do aniversário dela. Para declarar minha paixão, preparei todos argumentos possíveis, pus a melhor roupa que tinha. Ao chegar, sou informado de que ela estava na casa do Martin Freire: “Ah, ela vai demorar por lá. Ela adora ele, são grandes amigos”. “Esse Martin está indo longe demais”, pensei à época.

Martin Freire marcou definitivamente a minha vida e, mesmo tendo sido informado disso, não se permitiu saber quando, como e quanto. Curiosamente, o não-dito ficará como a marca do nosso encontro nessa vida. Para mim, o pouco dito foi surpreendente, restaurador, reparentalizador, apaziguador. Martin chegou onde só os que têm muitos dons chegam, e, por mais que não cresse nisso, foi um homem de realizações.

O final dos anos 80 e início dos 90 foram definitivos para minha história e Martin Freire é uma importante personagem dela. Não mais que de repente ele emerge nas crônicas diárias da vida que eu levava entre o km 49, o Ecologia e a UFRRJ. Emerge e assume uma centralidade que, somada a outros fatores, provocará uma das maiores inflexões em minha história. Não foi coisa qualquer: foi coisa grande, imensa e intensa, como ele era. Foi da ordem do como eu mudo a maneiro como me compreendo, me defino e me enuncio ao mundo. Foi da ordem do identitário, do desenvolvimento, realização e consolidação da minha identidade pessoal e social, do autoconceito pessoal. Foi o processo de saber quais eram os meus dons e como eles deveriam informar o meu viver. Processo que passa pela emergência do Marco Bauhaus, da minha conexão com o ideário urbano e cosmopolita, ao marketing e à propaganda, em contraposição à escolha de ser da área de agropecuária e que me conectava ao CTUR, e que culmina no Marco Souza que estou e ainda reinvento. Processo que passa pela minha identificação com a criatividade, a literatura, a escrita, o jazz, o chorinho, arte... cultura, e que me fez dizer: é isso o que eu quero para mim.
A passagem do início do texto é uma inúmeras aparições dele na crônica da minha vida. Ele já pairava e muito nas falas de amigos do CTUR (1988-90) e de amigos do km 49: era Martin Freire aqui, ali, lá e acolá, figura fácil e destacada em todas as narrativas sobre o que era feito e podia ser feito naquela época: “Fomos à casa do Martin”; “Estivemos com o Martin”; “Fizemos um churrasco, aí o Martin chegou”; etc. Só dava Martin Freire e aquilo me incomodava: o cara era insaciável, articulado, polivalente, brilhante, quase imanente, um furacão que passava em paralelo a minha vida. As narrativas sobre aquela figura eram as mais ricas e interessantes possíveis e eu vivia, à distância, a mapear seus dons. A dinâmica da aparição dessa personagem ganha em volume com o passar do tempo: presença no teatro, na política, nos grupos da UFRRJ, nas noites em Seropédica. Marcas da avassaladora vida de Martin Freire.
Quem era afinal a figura cuja presumida onipresença e onipotência me incomodava tanto? Por que me incomodava tanto? Onde ficava a mágica casa que todos amavam estar nela? Que jogos eram aqueles que envolvia a todos? O que fazia ele para ter desempenho social tão marcante? Por que tantos e fantásticos dons?
Eu não assumia os sentimentos que emergiam em mim até o dia em que finalmente eu vi quem era Martin Freire, numa peça de teatro, no Gustavão. Quando o vi antes da peça, pensei assim: “É esse aí o encantador das multidões de jovens, que rouba a atenção e o coração dos meus amigos e colegas? Essa figura extravagante e ruidosa que tem passe livre para incidir sobre os grupos e rodas, para do nada se jogar nos colos, dar gritos etc.?”. Começa a peça, ele dá um show, cresce ainda mais. Adorei a peça e a personagem dele. A senha do viver estava clara: “Assume que você tem inveja. Você inveja Martin Freire, Marco”.
Foi chocante o dia do teatro. Fisicamente, ele não tinha nada a ver com a figura que eu imaginava e projetava ser, mas em termos de espírito, aura, energia, ah, estava tudo confirmado. Eu fantasiava ser ele metido, arrogante, soberbo etc. e ele não era nada daquilo. Um pouco mais à frente, vem o período da rendição e a providencial atualização da senha: assumo minha admiração por Martin Freire. Ele continuará a fazer parte da crônica. Estará no histórico dia em que um grupo de amigos pega a caixa de cerveja no alto de um pau de sebo numa festa em frente à sala de estudo (Aliás, este grupo não demorará para apresentar uma das safras mais ricas de profissionais e cidadãos que a UFRRJ já formou. Que grupo!). Depois vem mais teatro, parceria com Nogueira, KIHU pra lá e pra cá, Seropédica e as noites, as conexões políticas, e por aí vai se estendendo a força mobilizadora da presença de Martin Freire.
Por anos nutri gratuita e silenciosamente um ingênuo desafeto pelo Martin, enquanto ele cumpria o importante papel de ser a referência marcante e ruidosa que eu usaria para pautar decisões importantes que tomei sobre o quê e quem eu poderia ser nessa vida. Na maior parte do tempo, isso deu-se de maneira 'inconsciente', pois ele não constava nos meus diários, não foi pauta de resenhas com amigos, nem assunto em setting terapêutico, onde eu poderia lidar com o por que e como seus dons me afetavam. Invejei Martin Freire e o usei como referência para definir o percurso que seguiria para conscientizar-me dos meus dons e estabelecer-me, e o fiz sem saber como ele era, sem jamais ter interagido com ele, baseado apenas nas narrativas, nas reações das pessoas quando falavam dele e de estar com ele. No fundo, eu não queria ser igual a ele, pois meu querer ser alguém passava pelo autentico e o original, mas eu queria ser tão interessante, intenso, arrebatador ou criativo quanto ele.
Eu morria de inveja de uma personagem com quem só tive a primeira conversa pessoal em 2011, no trailer do Marcelo. Estava sentado à espera do Ricardo Oliveira para beber cerveja e falar da nossa candidatura a diretores do ICHS. Martin aparece, vai até minha mesa, me cumprimenta e do nada começa a falar: “Ó, estou apoiando a chapa de vocês, pedindo voto. Vocês vão ganhar. Ricardo é um cara muito bom dessa safra nova do Reuni. E, para mim, Marco Souza, você é uma das pessoas mais inteligentes da Rural. Eu concordo com suas falas nas reuniões e tudo o que você fala nos seus blogues. Se você vier candidato a alguma coisa na Rural, eu voto em você. É sério tá, pois vou começar a beber agora”. Ouvir aquelas palavras direto de Martin Freire foi surpreendente, contagiante. Eu queria dizer que o que ele via em mim também era reflexo do que ele fora para mim, mas ele saiu, foi para o balcão e lá ficou bom tempo conversando com outras pessoas, sempre chamando atenção, sempre marcante. Depois aproximou-se da nossa mesa. Na ocasião, tentando dizer tudo o que ele significava para mim, confessei minha inveja e a importância que ele tinha e sua reação foi: “Ah, para Marco, um professor com inveja de mim? Quem sou eu?”. Tentei explicar que era verdade e ele não deixava eu continuar. Eu dizia que ele estava atualizando a conversa, que a coisa era mais pretérita e longeva, mas ele não deixava: “Outra hora a gente fala disso”. Algo o incomodava e ele não me deixava acessar.
Voltamos a nos encontrar outras vezes e ele passou a me cumprimentar com um abraço gostoso, acolhedor e validador que sempre encantou a todos. Ele sempre me reforçava, elogiava, incentivava. Descobrimos ter a mesma idade. Falávamos de Seropédica, da UFRRJ, da vida, de filhos, de tudo o que acontecia nas rodas em que estávamos, mas quando eu falava sobre ele ter sido importante em minha vida, ele sempre dizia: “Ah, lá vem você com essa história...um professor com inveja de mim...cara, fiz muita loucura nessa vida, algumas coisas podiam ser diferentes...ainda tem a porra da tese...etc. etc.”. Falava como se tivesse que dar para mim explicação sobre como viveu, o que fez ou deixou de fazer, mas não deixava que falássemos do que ele sentia e talvez precisasse por pra fora. Nunca falamos abertamente de que ser alguém mais pleno, original, intenso e denso era mais importante do que ter o título de professor ou coisa parecida. Não consegui realmente conhecer Martin e a mítica casa dele, como meus amigos conseguiram.
Sua passagem deixa escancarada a cratera que jaz sob todo não-dito das relações humanas. Não-dito que em parte agora segue escrito. Obrigado por tudo, Martin Freire. Invejei você e aprendi que mais gratificante e transformador era admirar e ser o máximo possível parecido com você: um viver informado pelos dons, não pelos medos. Você foi rico em dons, pleno, absoluto, intenso, denso, possível e realizador. Seu viver dispensava justificativas, explicações ou esclarecimentos.