Manhã de 22 de abril de 2022. Estava subindo o Belvedere a caminho de Paracambi. Pedalava devagar, em marcha leve; contemplava a beleza da mata por trás do Posto de Gasolina no Belvedere e ouvia Together, uma música relaxante*. Momentos antes eu me questionava se deveria colocar uma marcha um pouco mais pesada e imprimir esforço condizente com quem tem planos para pedalar grandes distâncias. Como decidi há alguns anos que após os cinquenta eu iria fluir pela vida e fruir bem mais dela, resolvi o dilema num oportuno pensamento: siga seu rumo e escreva sua história na velocidade que seu lápis e papel permitirem.
De repente uma pessoa atrás de
mim faz o som de um pigarro. Defini que era outro ciclista, não dei atenção e
esperei que ele me ultrapassasse. Novamente o pigarro e logo me dou conta de
que a pessoa está chamando minha atenção. Continuei olhando para frente, mas pensativo
sobre o porquê dela não me ultrapassar ou se, afinal, era um conhecido. Momentos
depois uma voz de criança soa no ar: “sua garrafinha d’agua está quase caindo”.
Pus a garrafa no lugar e resolvi olhar para trás e agradecer. Um menino pedalava
sorridente, duas alças pretas indicavam que estava com uma mochila em suas
costas. Agradeci, continuei pedalando, agora com mais atenção porque a pista
estava afunilando e chegávamos ao encontro com a Rodovia Presidente Dutra, um
lugar muito perigoso e sem muito espaço entre a pista de acesso e a defensa metálica.
Quando acessávamos a entrada do
posto do Belvedere, o menino começou a me ultrapassar e sorridente disse: “passei
você e com o pneu furado, hein!” Além de bem humorado, o danado era competitivo, me chamava para uma disputa. Fingi que competi, mas desde o início compreendi que estávamos juntos e que ele era o vencedor do dia. Ele me ultrapassou fazendo muito esforço com
sua velha bicicleta e o pneu da frente estava realmente furado. Perguntei onde ia e ele respondeu que iria vender cocada na porta da pastelaria, que estava
atrasado. Perguntei nome e idade, e Júlio, sempre sorridente, respondeu que
tinha 12 anos.
Perto da pastelaria ele parou,
tirou a mochila das costas, abriu e a mostrou para mim, que parei a alguns metros dele. A
cena era marcante: encostado na velha bicicleta com pneu furado e com a mochila
à mão, o bravo menino de 12 anos contempla sorridente o homem de 51 anos,
devidamente paramentado (roupa, capacete etc.), ofegante, sem sorrir, segurando
entre suas pernas o quadro da moderna bicicleta, bebendo água na garrafinha e
em sua caixinha de som continua tocando a música together.
Júlio deixou a bicicleta e começou
a ocupar o posto de trabalho. Logo me dei conta de que estava sem dinheiro e
não tinha como ajudar o bravo e simpático menino. Despedi-me dele chamando-o de
Júlio das Cocadas e desejando boas vendas. Parei depois da pastelaria para
pensar em tudo o que tornava a situação inusitada e marcante. Primeiro, estava eu
aproveitando a vida, acreditava estar sozinho, curiosamente ouvia uma música
chamada together, mas silenciosamente e a caminho do trabalho me fazia
companhia na subida do morro um menino de 12 anos, que só se anunciou quando
viu que minha garrafa d’agua estava caindo. Segundo, lembrei imediatamente de
quando tinha a mesma idade dele e ganhei uma velha bicicleta de meu pai: à
época eu reclamei dela não ser nova, como a dos colegas, embora fosse toda cromada. Por fim, minha sorte foi diferente da de Júlio, pois, mesmo que tenha
andado várias vezes com o pneu furado, a velha bicicleta cromada me servia
para curtir a vida, não para trabalhar. Ainda mais importante: quando usava a velha cromada para ir à escola, era ‘lápis
e papel’ que eu levava, não cocadas.
Quando montei na bicicleta e
continuei as pedaladas, ouvi a voz de Júlio perguntando para onde eu iria e me
desejando boa viagem. Ele ia em direção ao bebedouro do posto de gasolina. Respondi que ia para Paracambi e perguntei onde ele morava.
Humoradamente, expondo toda meninice dos seus 12 anos, disse que morava no São
Miguel, segundo ele, “um bairro longe, que sobe morro e desce morro com pneu
furado para chegar lá”. Como logo produzo imagens com as falas das pessoas,
imaginei como seria o desenho que Júlio produziu em sua mente ao falar de onde
vinha para trabalhar. Continuei meu caminho até Paracambi fazendo em minha
mente uma pintura simbólica dos morros que subi e desci, traçando um mapa
diferente dessa jornada que semanalmente faço para aproveitar a vida. Juntos escrevendo essa história estavam Júlio das Cocadas, eu e o menino de 12 anos que só deixarei de ser quando minha história tiver um ponto final.
* https://www.youtube.com/watch?v=gEb_BB-OTxQ&t=522s
Parabéns, estamos na Semana Das misericórdias, foi uma Graça.
ResponderExcluirVerdade
ExcluirSempre excelentes reflexões.
ResponderExcluirSuas lembranças nos remete a um estado de poesia e esperança, gratidão!
ResponderExcluirPedalar é refletir, se superar e ter hostorias pra contar. É imprimir momentos exclusivos, únicos em nossas vidas. Experiências que jamais se repetem a cada nova jornada 🚴♀️
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirOportunamente, compre umas cocadas do Júlio.
Concordo. Aposto q ele vai se lembrar de vc
ExcluirMelhores contos! Você ARRASA!!! Sempre me emociono! Parabéns!!!
ResponderExcluirVocê é simplesmente o melhor, sempre atento as situações que a vida o oferece e tirando de cada uma delas o melhor aprendizado, parabéns primo por ser esse ser tão iluminado!!
ResponderExcluirEsse anônimo anterior tem nome e sobrenome, Amarildo Luiz Nogueira da Silva, um eterno admirador desse ser expendido!!
ResponderExcluirCom certeza os dois "ciclistas" estavam de bem com a vida.
ResponderExcluirAbraço
Parabéns! Mas sugiro que passe a carregar alguns tostões pra ajudar os "Júlios" da vida a consertar o pneu da bicicleta! Kkk
ResponderExcluirOlá Marco, muito interessante.
ResponderExcluirOlá Marco, muito interessante. Lição de vida.
ResponderExcluirBelo texto para se refletir e repensar a vida. Parabéns, Marcos.
ResponderExcluirSHOW VC E SUAS ESTÓRIAS MUITO BACANA...
ResponderExcluirQue experiência incrível! Saber vivênciar momentos simples em algo muito especial e prazeroso. Sua sensibilidade é sensacional.
ResponderExcluirBoa trilha sonora para uma leitura agradável sobre surpresas e aprendizados "gratuitos". Abração
ResponderExcluirMuito bonito e sensível está perspectiva que você escerve e que nos faz refletir da importância de estar "presente" e viver aquele momento único e que se torna especial por compartilhar com um desconhecido e num breve momento,onde há uma chance de interagir e olhar, com os olhos de ver. Neste momento precisamos tanto deste olhar. Gratidão por nós lembrar o que realmente importa
ResponderExcluirBoa tarde! Tenho certeza que ele vai gostar de te ver novamente. Esse menino é aluno da Escola Municipal Atílio Gregio
ResponderExcluirTenho orgulho de ser sua irmã!!!! Você é simplesmente um ser humano maravilhoso e com certeza já fez diferença na vida dessa criança. Ele ficará feliz em te ver novamente. Bjosss Mônica Souza
ResponderExcluirQue história incrível
ResponderExcluirObrigado por compartilhar esse seu momento, que com um pouco de sorte todos nós teremos a felicidade viver um dia.
ResponderExcluirAbraços grande amigo, que um um dia eu tive a honra de ter como mestre.
Inspirador! Me sinto até com vontade de também narrar algumas das passagens cotidianas por que passei todos estes anos. Muito bom!
ResponderExcluirTextos sempre profundos e emocionantes! Parabéns
ResponderExcluirObrigado por ter conhecido meu filho Júlio trabalhamos vendendo cocadas a mais de 5 anos na pastelaria da serra esse é o nosso único justento o Júlio Cesar estuda de manhã obrigado agradeço por ele pelo seu carinho
ResponderExcluirNossa muito emocionante parabéns mesmo e muito obrigado pelo oque fizeram pelo meu irmão ele merece o mundo ,muito feliz com tudo isso e por ler também este texto .
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