Em 22 de junho de 2009, à noite, estava no forró no Arsenal de Marinha,
em Recife. Percebo um alvoroço, fico surpreso e logo sou informado de que é
antevéspera do dia de São João e que as pessoas estão ansiosas e se preparando
para 24, ‘o grande dia’.
A movimentação é intensa e não demorei a compreender que dançar
é uma questão de sobrevivência, de preservação da espécie, fator de seleção
natural. Quem sabe dançar chega mais longe, é mais competitivo.
Apesar do meu preconceito com o forró, alimentado durante toda a
minha vida devido a um trauma, acabo parando, junto com colegas que participam de
um congresso científico, em uma tenda de forró montada pela prefeitura. O som é
contagiante e o ritmo inigualável: todos estão balançando o corpo. A
sensualidade de um casal dançando um forro quase em câmera lenta me desperta
uma grande inveja. Com a chuva fina que cai teimosamente e o vento frio, tudo o
que queria naquele momento era estar com o meu amor e como aquele casal: corpos
germinados, a minha perna invadindo o meio das pernas dela que se escora no meu
joelho e coxa. As nádegas arrebitadas dela, balançando gostoso, dirigem meus
pensamentos e, de tanto que ela mexe, dão mais consistência à mistura de
imagens e sensações que experimento.
Toca um forró atrás do outro e as mulheres ficam olhando para os
estrangeiros, quem, afinal, não deixamos mesmo de ser. Poucos de nós reagem aos
olhares desejosos delas, a maioria fica na observação. Os homens de lá avançam
sobre as mulheres que acompanham os estrangeiros. Elas se rendem ao molejo
deles, que mudam de cara a todo instante. Nós não somos páreos para eles,
apesar do bom humor ou qualquer presumido atributo que nos diferencie. Eles têm
molejo, requebrado, chamam atenção. A situação me incomoda: “Como assim ceder
espaço sem reagir? E o perder dignamente, lutando o bom combate, onde fica?”.
Denise, uma bela recifense que dançava sozinha e que me recebeu com um largo
sorriso quando cheguei já está rodeada por três estrangeiros e muito feliz com
a disputa por ela. Perdi a luta e não considerei um bom combate minha única e lastimável
ação de ter ido até ela e perguntado o nome.
Reajo, abordo uma mulher bem requebradora e, sem perguntar seu
nome, proponho a dança. Ela aceita, mas não demoro a perceber que reagi sem
pensar direito: ela nota que não sei dançar, resmunga, peço para me ensinar e
ouço o pior vaticínio de toda a minha vida de homem reativo: “Quero um homem
que me conduza, não quero conduzir ninguém”. Ela me deixa na mão no meio do
salão. Um recifense bom de dança a agarra e a conduz. Não fico para ver os dois
apertadinhos, coladinhos um ao outro, encaminhando, quem sabe, um ‘felizes para
sempre’. Um recifense que nos acompanha analisa calmamente meu ocaso: “Ela está
certa, é a noite dela, é a chance para encontrar o amor que pode ser o da vida
dela. Para uma pernambucana isso não rola com um homem que não sabe dançar”.
A senha do viver emerge requebradora à minha frente: dançar é
código de vida, seleção natural, fator de sobrevivência e evolução da espécie
para os desafios da condução do outro pela vida. O homem reativo está
drasticamente exposto à extinção, não conduzirá ninguém. Captada a lição, paro
reflexivo contemplando o gingado dos dançarinos patrocinados por uma marca de
cachaça que animam outra tenda. Feito bobo, fico contemplando e desejando as
lindas dançarinas profissionais. De repente, os dançarinos improvisam uma
quadrilha e logo circundam as pessoas que os observavam. “Quadrilha de São
João!”, avisa o locutor enquanto os dançarinos vão nos envolvendo formando um
quadrilhão imenso.
Fico tenso, a música em Recife é gatilho para incômodas
lembranças da minha puberdade, em 1982, quando vizinhos organizaram uma festa
junina e uma quadrilha. Lembro que à época não me saí bem naquele instante
coletivo: não suportei não ter jeito para a coisa, as críticas e esporros de
quem nos treinava e as zoações de colegas e, como consequência, não dancei, fui
trocado por alguém que certamente não achou bobo se fantasiar de caipira, se
pintar com um falso bigode e usar aquela roupa toda costurada, traços da
péssima representação que guardei de festa caipira. Desde então, me esquivo
dela. Fui um grande babaca, pois só um apresenta essa justificativa para a
falta de humildade em ser mais um em mais um episódio comum da vida comum que
temos, a falta de molejo ou jogo de cintura e de um espírito de festa.
Em Recife, tinha como fugir, mas resolvi encarar: estava envolvido pela quadrilha improvisada na tenda e onde a adesão à dança é feita de maneira espontânea e muito bem-humorada. Dezenas de casais se acumulavam, enquanto observava e a música tocava nervosa. A quadrilha deu a partida e a temperatura aumentou bruscamente. Fico olhando o fenômeno até que uma morena sorridente aparece em minha frente. “Você faz par comigo?”. Não penso duas vezes, faço par com Josiane, exponho minha falta de molejo, meu fator de exposição à extinção. Ela nota e diz: “Relaxa”. Fazemos as evoluções e, numa delas, leio tatuado perto da sua nuca: “O tempo muda e nós mudamos com ele”. O porquê da frase me é logo explicado: tatuou após separação traumática do seu grande amor, que a deixou, largou o casamento. E complementa: “Essa frase resume o meu aprendizado: agora quero viver, curtir a vida”. A dança continua, ela pergunta se estou gostando e defino: “Você não sabe o bem que me faz, dancei a primeira quadrilha de minha vida. O tempo muda, né?”.
Marco, lembro dessa noite lá no Recife.
ResponderExcluirFoi no 3E's, e lembro bem do forró e da quadrilha.
Confesso que não tenho todo o molejo necessário à dança, mas me esforço para não fazer tão feio...heehehe
Ainda há tempo para aprender a dançar, para se apresentar numa quadrilha junina/julina.
Como estava escrito na tatuagem, o tempo muda e nós mudamos com ele...
abs