Um
dia ouvi que uma simples e despretensiosa mensagem pode mudar
significativamente o rumo de um dia ou mesmo da vida de uma pessoa. Isso está acontecendo comigo,
aumentando ainda mais a excepcionalidade desses dias de isolamento que
enfrentamos com o pandemia do covid19.
Em 20 de março, recebi mensagem
privada de alguém que há muito não via e com quem nunca tive muito contato,
embora estejamos conectados via aplicativo. Conhecemo-nos pelos idos dos anos 90
e nos vimos poucas vezes desde então. A pessoa queria saber o porquê do
afastamento que eu vinha mantendo da rede social. No mesmo dia, manifestei
minha surpresa pela visita virtual e informei que afastei-me porque estava
ficando cético em relação à possibilidade de virarmos o jogo contra essa
polarização que embrutece-nos e piora a qualidade das interações nas redes sociais virtual e física; também confessei indignado que estava me sentindo numa
bolha e procurei fazer algo para não ficar com a crença de que os problemas
estavam nos outros e não em mim, optando por sair da ilha que vira a timeline
de uma rede social e onde nela nos refugiamos; por fim, disse que estava
priorizando a rede social física, aplicando mais compaixão e empatia, assumindo
que o problema também está em mim, procurando rever valores, atitudes e
comportamentos e enfrentando mudanças que me impus e atualmente implicam em
plena reelaboração de mim. Também no mesmo dia, confessou-me ela sentir o
mesmo, embora não use muito a rede social digital e prefira a física e,
procurando ser empática, escreveu: “Vi
você poucas vezes, mas você me passa certo conforto no trato, acho que por
isso, quando vi que você tinha se afastado, ainda mais nesses tempos de quarentena,
resolvi “visita-lo”, e ainda reconheceu que poderia ter ficado estranho o
“certo conforto no trato”.
No dia seguinte, agradeci e manifestei que ficara mesmo curioso com “o certo conforto no trato”. No dia 22, e com visível cuidado na construção da resposta, ela disse: “trocando em miúdos, acho que quis dizer que você parece uma pessoa delicada e com quem é fácil conviver”. No dia seguinte, muito mais surpreso, respondi que estava em busca de uma resposta ideal para aquelas palavras, que até tinha começado uma digressão; reforcei que estava muito feliz com a surpresa do contato e com a restituição, via percepção e palavras dela, do delicado à minha vida, ao meu jeito de estar no mundo; assumi que a delicadeza fazia parte sim da minha vida e que dela eu muito me afastara ou pouco de atenção a ela dera, e que com a fala dela janelas para muitas ideias havia sido abertas. No mesmo dia, ela respondeu: “então, devo dizer que restituí a você o que você sempre me deu, independentemente das intenções que pudessem movê-lo. Que bom que pude fazer isso”.
No dia 26, com uma resposta aquém da ideal que buscava, mas pressionando-me para logo tê-la, consegui dar continuidade à nossa conversa, que após essa mensagem terminou: “Você me reparentalizou, pois não tive necessidades emocionais atendidas referentes a ser mais soft, light...delicado. Cresci ouvindo do meu pai: “Filho meu não pode ser gay, ladrão drogado ou comunista”. A forja que me fez homem não me deixou ser o homem que eu queria ser. Foi na marra, na rebeldia, na sublevação, que eu me lancei à transformação, ao questionamento do que queriam de mim e do onde eu chegaria sendo aquele homem que de mim fizeram. Foi na experimentação, no corpo da política e na política dos corpos, que adotei algumas postura, novas ideias”.
No dia seguinte, agradeci e manifestei que ficara mesmo curioso com “o certo conforto no trato”. No dia 22, e com visível cuidado na construção da resposta, ela disse: “trocando em miúdos, acho que quis dizer que você parece uma pessoa delicada e com quem é fácil conviver”. No dia seguinte, muito mais surpreso, respondi que estava em busca de uma resposta ideal para aquelas palavras, que até tinha começado uma digressão; reforcei que estava muito feliz com a surpresa do contato e com a restituição, via percepção e palavras dela, do delicado à minha vida, ao meu jeito de estar no mundo; assumi que a delicadeza fazia parte sim da minha vida e que dela eu muito me afastara ou pouco de atenção a ela dera, e que com a fala dela janelas para muitas ideias havia sido abertas. No mesmo dia, ela respondeu: “então, devo dizer que restituí a você o que você sempre me deu, independentemente das intenções que pudessem movê-lo. Que bom que pude fazer isso”.
No dia 26, com uma resposta aquém da ideal que buscava, mas pressionando-me para logo tê-la, consegui dar continuidade à nossa conversa, que após essa mensagem terminou: “Você me reparentalizou, pois não tive necessidades emocionais atendidas referentes a ser mais soft, light...delicado. Cresci ouvindo do meu pai: “Filho meu não pode ser gay, ladrão drogado ou comunista”. A forja que me fez homem não me deixou ser o homem que eu queria ser. Foi na marra, na rebeldia, na sublevação, que eu me lancei à transformação, ao questionamento do que queriam de mim e do onde eu chegaria sendo aquele homem que de mim fizeram. Foi na experimentação, no corpo da política e na política dos corpos, que adotei algumas postura, novas ideias”.
Findou a troca de mensagens, mas não
findaram as inquietudes deste contato tão especial com o delicado em mim, com a
experiência de acessar uma representação minha bem distinta da que normalmente
uso para me definir e de acessar o material trazido à tona por minhas próprias palavras.
Emergiu a grande senha: até aquele inusitado 20 de março eu não havia invadido
esta seara tão cara à minha história de vida: a conexão entre o delicado/a
delicadeza e o meu vir-a-ser homem (tampouco tenho como saber se um dia aconteceria).
A oportunidade, respeitados todos os seus detalhes, tornava providencial aquela restituição; enfim, tinha que ser naquele instante e daquele jeito.
Palavras. Quantas e fortes emergiram na troca de mensagem e em minha mente.
Até 23 de março, diziam-me elas que eu não me reconhecia na delicadeza nem a ela
devidamente reconhecia; que refazer-me homem fôra na marra, na rebeldia, na sublevação. Processo
este que agora entendo demandar sensibilidade ou autoconhecimento ou
experiência ou coragem para se ir além do enfrentamento ao dolorido e extenuante
que ele produz e alçar o saber-se delicado, assumi-lo, nele se confortar,
a ele proteger e com ele objetiva ou intuitivamente contar para enfrentar a
vida.
Tal restituição abriu-me não
apenas à compreensão do impacto, mas da necessidade de uma consistente restituição
do delicado à minha vida, de modo que ele seja parte evidente e assumida do meu
jeito de estar no mundo e de como continuamente me redefino, me reconstruo, me
reelaboro. Fortalecido, procurei então compreender como se dera minha relação
com o delicado, os nossos encontros e desencontros, o que minhas palavras iniciais não deram conta. Foram muitos e profundos os
pensamentos e lembranças que somaram forças para que a partir dali eu
revisitasse os pontos de contato e de atravessamento entre mim e o delicado.
Como não perguntei à pessoa o que
seria este delicado que eu a entregava, os atributos que o comporiam, acessei as
representações que atualmente tenho do delicado ou da delicadeza: mulheres,
flores, cristais, relações e o psíquico, e onde se inscrevem o soft e o light. Baixíssimo repertório de associações e
representações, confesso, dignas mesmo de uma pessoa que ouvia que homem não
chora, que ele tem que se impor e que jamais deixa-se ser um réu confesso de qualquer coisa que faça ou sinta. Considerando
peculiaridades da minha trajetória de vida, entendi bem que esse repertório não
poderia ser muito rico, embora agora saiba haver alguma efetividade, pelo menos
com uma mulher.
Mulheres. Revisitei o passado e
logo encarei minha relação com elas, que, além de não ter sido fácil, foi deveras
complicada por causa de algumas vontades do destino. Minha mãe morreu quando eu
tinha dez anos e, embora ainda tivesse tido três mulheres perto de mim por um
bom tempo, não houve com duas irmãs mútua cumplicidade e empatia sobre os
dramas de vir-a-ser gente, nem mútua proximidade e afetuosidade com minha
madrasta que pudesse viabilizar uma outra forja de vir-a-ser. Nas ruas,
aprendizados comuns de meninos sobre sexualidade, com acesso a revistas
pornográficas e a compartilhamento de histórias, na maioria das vezes, bastante
exacerbadas sobre paqueras, transas, masturbações, etc.. Aprendizagens não sobre a
inteireza, integralidade e delicadeza dos nossos e dos corpos delas, mas sobre órgãos
genitais e seus excêntricos nomes, tudo muito localizado e resumido,
embrutecido. Continuada a revista ao que me permitiu a memória, constatei que,
naquela fase, dificilmente reagiria ao embrutecimento ou rusticidade que caracterizava
aquele projeto de vir-a-ser homem que nos impunham, aquela dura forja: aos onze ou
doze anos lidando com uma criação que diariamente informava que “filho meu não
pode ser gay, ladrão, drogado ou comunista”, que também nessa fase me colocara
num inferninho para, sob olhares ávidos de tios, ter uma mulher no colo para
que ela certificasse que o “pau subia”, que aos catorze ano, quando assistia
Gilberto Gil cantar Refazenda, desligava abruptamente a TV e informava que
naquela casa não se assistiria a um gay e comunista cantando.
Foi um doloroso e
delicado-em-si de abrir janelas para no passado entrar, tendo à mão apenas a luz
da coragem e sem dispor do mapa e experiência de um bom analista. Bem mais do que mudar meu dia, essa
simples e despretensiosa mensagem produziu efeitos que, bem sei, impactarão meus
dias que seguem, mesmo que o fato de não ter sido de uma mulher com que tive
relacionamento próximo e intimo ponha tudo isso sob ampla suspeição. A coragem acompanhou
a extensão da rememoração para expor detalhes densos da minha história de vida. As janelas estão devidamente escancaradas e tudo isso vai continuar
reverberando, repercutindo, atravessando a dolorida e contínua reelaboração da minha própria
identidade ou subjetividade. Entretanto, por mais surpreendente e inquietante que
esteja sendo, não há estranhamento, negação ou repulsa: há um delicado em mim e
ele está restituído à pauta da minha vida.
Denso, profundo e humano.
ResponderExcluirOi! Muito obrigado pela leitura e interação. Não consigo ver seu nome. Por favor, deixe-me saber quem você é.
ExcluirEstamos às vésperas de um tempo de delicadezas. E vc se antecipou!
ResponderExcluirRosa! Sedento por este tempo eu. Que ele logo venha. Obrigado pela leitura e interação.
ExcluirMuito profundo e sincero,parabéns.
ResponderExcluirOi! Muito obrigado pela leitura e interação. Não consigo ver seu nome. Por favor, deixe-me saber quem você é.
ExcluirMarco... Que mergulho! Tocante, necessário e contagiante. Nos leva a um desejo de mergulharmos juntos em tantas inquietações/reflexões
ResponderExcluirOi! Muito obrigado pela leitura, interação e mergulho. Não consigo ver seu nome. Por favor, deixe-me saber quem você é para mergulharmos em mais leituras.
ExcluirVc é um homem gentil e delicado, e que bom que alguém te lembrou disso e te mostrou que não há contradição nisso. Que suas janelas deixem bons ventos chegarem, te sacudam e te ajudem nessa sua (nova?) subjetividade.
ResponderExcluirTatiana, que gostoso ver seu comentário aqui. Você que como poucos consegue misturar delicadeza, gentileza e a firmeza para enfrentar as desigualdades da vida. As janelas estão abertas e você entrou e aqui ficou. Obrigado
ExcluirDe uma profunda delicadeza. Parabéns!
ResponderExcluirOi! Muito obrigado pela leitura e interação. Não consigo ver seu nome. Por favor, deixe-me saber quem você é.
ExcluirSábias palavras e quão profundo e sincero. Obrigada por compartilhar conosco!! 👏🏻🥰
ResponderExcluirFaber!!! Obrigado, Aline, por sua contribuição, participação nesse momento tão importante para mim. Diariamente você me ajudava nas aulas, me deixando comer das suas guloseimas, tomar do seu café, e agora me alimenta de carinho por aqui.
ExcluirGrande mestre, a ternura na vida é fundamental para ser bem vivida. Precisamos blindar nosso cotidiano da dureza do mundo o máximo possível.
ResponderExcluirAquele abraço.
Luis!!! Bacana ler você aqui. Espaço bom para pessoas sensíveis e humanizadas como você. Venha mais e espero logo ter algo para por aqui que tenha você e atenda ao objetivo desse blog: compreender os códigos do viver,
ExcluirCreio que essa delicadeza foi algo que também tive o prazer de perceber no meu primeiro contato com você, o fato de ser uma pessoa aberta ao próximo, faz com que a gente se sinta a vontade para estar próximo e compartilhar momentos e ideias, e também, de se manter com "janelas abertas" para enxergar melhor a humanidade ao nosso redor.
ResponderExcluirExcelente texto.