sábado, 31 de dezembro de 2011

O ano novo é você quem faz

Se você quiser conhecer a felicidade, empreenderá uma solitária e desafiadora jornada que o levará ao encontro de uma palavra que funciona como senha de entrada para acessar o fantástico mundo de um sentimento capaz de transformar qualquer indivíduo.  Ao contrário da maioria das jornadas, esta começa em direção ao mundo das coisas e, subitamente, muda seu rumo para o mundo que habita o interior do viajante.

Em sua jornada, você primeiro encontrará felicidade no dicionário. Abra este precioso livro e continue a viagem. Nesta parte da jornada que, recomenda-se, seja gradual, moderada, você aprenderá que alegria vem antes de dor, que felicidade sempre antecede tristeza. Você também aprenderá que ela, ele, elas e eles sempre aparecem antes de você, e que juntos com você, somados, esses monossílabos transformam-se surpreendentemente em nós, um monossílabo também poderoso. 

Ao encontrar a felicidade, você verá que ela pode ser lida, escrita, e, principalmente, que deve ser vivida, pois, como ensina o precioso livro, felicidade é um paroxítono que denota, de maneira acentuada, ventura, bem-estar, contentamento, um estado de espírito surpreendentemente revolucionário.

Lida ou escrita, verá você que felicidade é um polissílabo, um grupamento de sílabas, composto este de quatro consoantes e três vogais, onde algumas se desdobram para apresentar aos luso-brasileiros um sentimento que pode ser vivido a um - sozinho -, que é gostoso demais quando vivido a dois, mas que deve ser sabiamente aprendido a viver em grupo - mesmo que esse seja apenas de três -, mas que seja essencialmente um grupo. Soletrando este caprichoso encontro de sílabas, compreenderá você um pouco da força dessa senha que, conforme será verificado mais a frente, jamais deve ser falada da boca pra fora.

Ao fechar o dicionário e olhar para os lados, encontrará você um dos primeiros mistérios dessa jornada: existem aqueles que, mesmo não sabendo ler ou escrever, são felizes, vivem a felicidade. É assim porque felicidade, um substantivo feminino, devido a sua inerente fecundidade, tem o poder da luz que identifica e qualifica, em qualquer lugar, o indivíduo que mantém a preciosa substância da bem aventurança. A felicidade empresta luz ao sujeito que a contem e, principalmente, a elabora.

Ao ver como mesmo os não doutos podem ser felizes, você naturalmente sentirá a necessidade de mudar o rumo da jornada. Subitamente, a resposta sobre a felicidade deixará de estar no mundo das coisas e nas coisas do mundo, mostrando-se estar inscrita no interior do indivíduo, dentro das pessoas, de onde emerge a luz que as torna imprescindíveis. Ao partir em direção ao outro, ao dirigir sua jornada para desbravar o interior alheio para descobrir sobre a felicidade, você logo verá que dificilmente chegará a algum lugar. Sozinho, constatará você que melhor fará se se dirigir ao próprio interior para continuar a jornada para aprender o caminho da luz.

Seguindo o caminho que leva a luz, você aprenderá que felicidade não se compra, empresta ou dá, que ela é produzida. Ao saber mais sobre você, lembrará que um dia, quando não falava e tampouco escrevia, você respondia, gratuita e generosamente, ao mundo que experimentava. Quando criança, independente da nossa aparência e da do mundo que nos rodeava, exalávamos bem-estar, contentamento, tínhamos um estado de espírito surpreendentemente revolucionário, pois a todos contagiávamos. Porem crescemos, saímos para o mundo, seguimos em direção ao mundo das coisas e às coisas do mundo, atrás de respostas, sem mesmo ter aprendido a fazer perguntas.

De posse da senha, estará você de frente para a fábrica de felicidade que todos nós trazemos internamente. Você logo perceberá que a chave da fábrica da felicidade está com você próprio, e que jamais deve negligenciar sua guarda, deixando-a em qualquer lugar ou confiando-a a qualquer pessoa. Você verá que é sua a responsabilidade pela produção do bem-estar, contentamento e estado de espírito surpreendentemente revolucionário capaz de contagiar as pessoas que o rodeia. Principalmente, você aprenderá a duvidar, afastar-se e proteger-se de toda pretensa felicidade, de tudo que não tem a simplicidade como essência, enfim, de todo projeto de ser feliz que o leve justamente ao caminho contrário a jornada que empreendeu.

Assim, ao final da jornada, solitário, sabendo-se mais rico do que nunca, aprenderá você que, por mais que ame outra pessoa, apenas poderá compartilhar as vibrações desse labor fundamental. Labor que vivido internamente, transforma o indivíduo que o pratica e o mundo que o rodeia. Então, mãos a obra, pois um novo ano, uma nova vida, começam agora! Vá, experimente saudavelmente o mundo, aprenda novas coisas, melhore ainda mais essa substância que você encerra, deixe o mundo mais feliz!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

“Curiosar” - descobrir mais sobre a vida e o mundo; manter as origens, ter onde pousar.

Rio de Janeiro, manhã, 14 de maio de 1998. Em mais um interessante capítulo da minha vida, fui ontem com minha namorada ao Museu do Índio, em Botafogo. Ela foi entrevistar o índio Carlos Tucano, para uma matéria da revista onde trabalha. No fim, o que seria mais um momento para fugir do ócio desse desemprego que já dura cinco meses, tornou-se outro momento de lição e aprendizagem sobre nossa passagem pelo tempo. Foi a primeira vez que estive frente a frente e que pude conversar com um índio, a base da sociedade brasileira, enfim, os primeiros brasileiros.

Ficamos quarenta e cinco minutos ouvindo Carlos Tucano contar sua história, a do seu povo e as lutas para a sobrevivência e preservação de sua cultura. Abri mão das minhas apreensões de ser urbano, desempregado, para ouvir o índio discursar sobre a importância da preservação dos valores, rituais e costumes de sua gente. Gente que, segundo ele, não deixa registros, apenas vivem. O índio não escreve, filma ou pinta, mas planta, caça, faz artesanato e, agora, absorve e é absorvido pela civilização, disse ele.

Carlos Tucano falou de suas raízes, da interferência dos missionários, da demarcação de suas terras, dos seus deuses e do mundo. Em um momento chegou a falar sobre a globalização e de como inserir sua gente nesse contexto! Um povo que luta pela demarcação de suas terras, preservação da sua história, e com o desafio de viver em um mundo globalizado, sem fronteira. Um índio falando da importância de resgatar a sua história em um mundo onde o tempo não pára.

Um dos grandes momentos da entrevista foi quando Carlos Tucano falou com sua calma, aparentemente inabalável, que o que ele mais gosta de fazer é “curiosar”. É importante “curiosar” para descobrir mais sobre a vida e o mundo, disse o índio, mas sem perder de vista as origens e as lutas pela sua preservação. Ele falava da fragilidade do ser indígena pulverizado pelo mundo, deslumbrado, encantado pelo “mundo das coisas”, mas que, se não se cuidar, não terá terra para pousar.

Ouvindo estas palavras, voltei-me imediatamente para a história da minha família, boa parte sedimentada em algumas cidades, mas que não se cuida e está pulverizada pelo Brasil desse fim de século. Somos muitos, mas atualmente estamos distantes, banalizados pelo consumo e pelo trabalho, apenas acompanhando, e sem deixar qualquer registro, o tempo que não pára. Somos muito semelhantes ao índio: meus familiares não escrevem, filmam, caçam ou pintam, poucos ainda plantam, trabalhamos isoladamente, sem compartilhar conhecimentos e aprendizagens; absorvemos e somos absorvidos pela vida econômica.

Existem poucos registros dos meus antepassados, sequer temos a posse de algum pedaço da terra de onde vieram meus avôs. Os parentes mais velhos estão falecendo e com eles vão, sem registro algum, as lembranças de quando tudo começou, em Pedro Teixeira e Muriaé. Meus avôs paternos e maternos já estão mortos; os primos e irmãos que ainda vivem estão longe de nós, mas perto das terras de onde viemos, morrendo no anonimato. Ironicamente não temos registro algum, apesar de terem tantas histórias para contar.

Levei as lições do Índio para o apartamento onde moro, na Tijuca, atual quartel general das minhas angustias e estranhamentos com a vida. Aqui estou mais longe ainda da nossa “mineiridade”, distante inclusive de Seropédica, onde meus pais se encontraram após suas famílias terem deixado as Minas Gerais. Em Seropédica estão meu pai, tios e primos, todos envelhecendo sem que sejam feitos registros, levando com eles os fragmentos de nossas raízes. Família que só sobreviveu às primeiras ameaças porque seus membros estavam juntos, somaram forças, compartilharam a sabedoria da "lide" na roça e que, depois que saíram de Minas, aprenderam novas “lides”, como a da mercearia e a de dar aula.

Aqui estou, homem urbano, desempregado, desbravando o tempo, querendo aprender nova "lide" longe das minhas raízes da roça, da mercearia e da lousa. Aqui estou, homem urbano, aprendendo com o índio sobre ir ao mundo sem perder os rumos de casa. Desse novo verbo, humildemente colocado, tirei mais uma lição e força para enfrentar esse momento de aflição: é preciso “curiosar” para descobrir mais sobre a vida e o mundo, sem perder de vista as origens e, principalmente, tendo onde pousar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Caprichosas, irônicas, insensatas e sempre marcantes remontagens de cenas da vida

Rio de Janeiro, 12 de Novembro de 2011. Por vezes a vida nos faz relembrar os diferentes papeis que nela desempenhamos, quando tínhamos a fala e o domínio da cena ou quando fomos apenas coadjuvantes ou figurantes neste fantástico teatro. Caprichosas, irônicas, insensatas, às vezes trágicas, mas sempre marcantes, são as remontagens que o viver patrocina.

Hoje, 14 meses depois que experimentei, pela primeira vez, um pouco da violência urbana há muito em cena por aqui, vi-me novamente envolvido nesta que é uma das piores produções que temos. Mudaram o cenário, meu papel, alguns personagens e parte do enredo. Mudança última esta que, não fossem as forças superiores, acredito, daria um desfecho mais tenso a esta segunda montagem, onde eu, minha filha e outros mais, não passamos de coadjuvantes de um espetáculo promovido pelo poder público e esses políticos que nos governam e as custas dos nossos recursos.

O cenário agora é o Rio de Janeiro. As cenas dão-se na Perimetral, e não mais no Morumbi, na opulenta São Paulo. Agora é o Rio de Janeiro, a marca registrada do Brasil, onde “se soma forças”, como diz a propaganda política. A cena se repete e, outra vez, bandidos fecham o trânsito e atacam os carros, destilando e distribuindo terror. Desta vez sou o motorista, não mais o passageiro. Como companhia a minha filha, não mais meu primo e sua família. Outra vez o humilhante contato com o que o poder público chama de estrutura de segurança pública. Um detalhe horrível do enredo, sabido apenas depois que tudo ocorreu: em São Paulo eu fui roubado, aqui eu e minha filha seríamos seqüestrados, para ir a bancos fazer saques, pegar valores em casa.

Eram quase 20:00 quando eu e minha filha passávamos pela Perimetral em direção a Av. Brasil para passar o feriadão juntos. Saí de Vila Isabel, calibrei os pneus na Praça da Bandeira e, na Francisco Bicalho, começávamos a falar sobre como tinham sido os últimos dias dela e dos planos para o feriadão. Ela pôs para tocar um cd com músicas das quais gostamos bastante, uma coleção de rock antigos e atuais. Na perimetral, tivemos o assunto cortado pela imagem de um imenso navio parado no cais, comentada esta com gargalhadas e pequenos palavrões que davam conta do tamanho da embarcação. Antes de chegar a alça que leva a Av. Brasil, noto intensa movimentação de carros atrás de mim, em perigosas ultrapassagens, estou na última faixa da esquerda, sou ultrapassado por quatro carros que se dividem na pista e começam a diminuir a velocidade, o que me chama atenção, fazendo-me frear. Por fim, em cima da hora, sou ultrapassado por dois carros, que ficam entre o meu e os carros que pararam de vez. Freadas buscas. No rádio, Amy Winehouse canta: “They tried to make me go to rehab/ But I said 'no, no, no'/ Yes, I've been black, but when I come back/ You'll know-know-know”. É irônico: em São Paulo, era uma canção da igreja, que dizia: Vem amigo vem /Vem para entregar este coração que Deus te deu/ para amar não para odiar...”.

Dos carros saem bandidos armados e encapuzados. Abaixo o som, ligo as luzes e digo para minha filha que tem um assalto naquele momento e que ela vai fazer tudo o que eu pedir. Libero o celular, mas minha carteira fica presa no bolso, estou nervoso. Os bandidos vem em direção ao meu carro e um coloca duas pistolas apontadas para a cabeça da minha filha. Este diz: “passa tudo de valor, bolsas, celular, tudo, porra!”. Digo que as bolsas estão atrás. Dou o celular e ele pede a carteira, dizendo que vai matar. Muito nervoso, digo que a carteira está em meu bolso de trás, peço calma a ele e para colocar a minha mão para trás e pegar a carteira. A carteira não sai, estou nervoso, temo pelo pior. Ele grita, eu me desespero, dizendo bobamente: “calma, estou pegando a carteira, Senhor, a carteira, não faça nada, por favor”. De repente um tiro para o alto, meu coração gela, e uma correria intensa. Abaixo-me com minha filha numa tentativa de proteção. Ela entra em estado de choque. Começam choro e gritos desesperados de minha filha que durariam, ao final, mais de 15 minutos. Deitados, abraçados, ouço repetidas vezes: “me tira daqui pai, quero a minha mãe, vamos embora!”. Nada pude fazer. Chega um policial e nos aborda.

À pedido do policial, saio do carro. Um pouco mais aliviado, realizo que voltarei a uma delegacia, como foi em São Paulo. Fico ao lado da minha filha, que chora e grita sem parar. A frente um carro parado e quatro homens. O transito começa a fluir. O policial os aborda. Três eram seqüestrados, estavam com os bandidos, que os levaram sem sucesso para caixas automáticos de bancos. Na correria, foram libertados. Um deles me diz: “você deu sorte. Era a sua vez. Estava em um dos carros, que é meu, e eles diziam que era para pegar você, mas o carro dele - apontou para um rapaz -, entrou em cima da hora entre você e eles, e estragou tudo”. Ficou claro que com o tiro, o carro do rapaz é que fora roubado. Ele próprio pensou que fosse morrer, pois cortou e parou em cima da hora, mas os bandidos foram em direção ao meu carro.

Começou a peregrinação. A polícia nos guia e, logo a frente, um policial e um carro roubado. Era o carro que os ladrões levaram! O policial diz que tem uma bolsa preta. Reconheço que era uma das minhas bolsas. Ele diz que a frente, três homens, em uma Kombi, em atitude suspeita, também foram detidos. Com eles tinha uma mochila preta, diz o policial. Peço para ver a mochila e aviso que também é minha. Diferente de São Paulo, os pertences foram recuperados, a exceção do celular. As 21:30 chegamos a 17ª DP, em São Cristóvão. O policial civil adverte: os flagrantes estão sendo feitos na 6ª DP, Cidade Nova. Em função da operação da Rocinha, policiais foram deslocados e houve concentração em algumas delegacias. Em São Paulo também peregrinei, e tive o desprazer de ver mais daquilo que a polícia pode fazer com pessoas de bem.

Chegamos a 6ª DP as 22:10. Aquela altura tinha apenas um caso sendo atendido e o balcão vazio. A nossa vista três policiais e o delegado. Dez minutos depois um policial aparece e fala com os PM. Ele diz que não pode atender, pois o flagrante daquela área é da 17ª DP. Ele desconhecia a mudança anunciada! Os rapazes detidos são levados para dentro da delegacia por outro policial. O Delegado pergunta se reconhecemos alguns dos detidos. Começam a chegar novos flagrantes, a sala fica cheia. As 23:00, o outro policial começa a atender os PM do nosso flagrante. A delegacia continua a encher e a fala com os policiais demora bastante. Aqui no Rio a relação entre policias parece ser mais amena do que a de São Paulo. De repente, com vários PMs no balcão pedindo atenção, o policial que atende nosso flagrante simplesmente levanta-se, liga a televisão e começa a assistir a luta do UFC, deixando sentado os PMs do nosso flagrante. É inacreditável, mas é real. Somos obrigados a vê-lo, feliz, dizer: deu Brasil! Ao seu lado, outros policiais, inclusive PMs, assistem a luta. Irônico, e escorchante, foi ouvir o Galvão Bueno descrever, em um replay, a seqüência de golpes que derrubara o americano: “esquerda, esquerda, direita, ... ai ai ai ....Cigano Venceu!”. Estávamos há mais de quatro horas naquela peregrinação, numa seqüência de eventos que nocautearam nossa cidadania, auto-estima, o emocional e que nos jogou sem piedade na lona que, naquele momento, era o balcão. Aquele policial nos dava mais um golpe. Contrariado, apos discussão com um colega sobre o seu ato, ele volta à mesa. As 1:15 da manhã começo a ser ouvido. O policial ainda pede desculpas pela demora, tenta explicar que só tinham duas pessoas para atender a todos os flagrantes.

Reaproveito e adapto o que escrevi em são Paulo: "em uma delegacia do Rio, as imagens das propagandas que tentam nos vender segurança e progresso assumem contornos que igualam todo e qualquer brasileiro: entramos com muito pouco, cidadania é uma mera aspiração, uma abstração, algo sem valor. E o pouco que nos resta, por aquela estrutura apodrecida, adoecida, nos será subtraído". Ironicamente, estamos numa Delegacia Legal, um factóide criado por um governo que teve o apoio irrestrito do atual governador. Nas paredes, vários certificados de reconhecimento da qualidade dos serviços ali prestados. Um quadro anuncia a missão da delegacia: “buscar o aperfeiçoamento otimizado das atividades desenvolvidas na unidade, desde o atendimento inicial ao público até os atos precípuos de polícia judiciária”. Outra ironia: o programa de qualidade se chamava PQSP – Programa de Qualidade no Serviço Público. Repetidas vezes, aquela delegacia ganhou o prêmio Gestão Nível 1 (100 a 199 pontos). Nos mandaram para a PQSP, sem dúvida alguma.

As 1:50 da manhã deixo a Delegacia, certamente muito parecido com o americano derrotado por Cigano. Nocauteado, nesta remontagem restou-me a irônica e humilhante cena de comemorar que ninguém tenha se ferido, feita solitariamente ao dirigir-me para o carro. Na semana em que o Ministro do Trabalho diz amar a presidente e que só sai do cargo com “bala pesada”, apesar dos escândalos em sua pasta, o policial somou suas forças com o Cigano. É isso: nocautear, humilhar, destruir o cidadão: marca registrada do Rio de Janeiro, marca registrada do Brasil. Espetáculo este remontado a todo instante Brasil a fora. Deu Brasil. Vamos comemorar?  

sábado, 15 de outubro de 2011

Da paixão que me move

UFRRJ, 25 de maio de 2011, prédio do PPG, 22 horas. Acabo de sair de uma das melhores aulas que dei em minha curta vida de professor. Ao menos para mim, os sessenta minutos em que tratei o tema comunicações de marketing foram sensacionais. Em verdade, foi a primeira vez que dei uma boa aula sobre esse tema do qual tanto gosto. Espero que os alunos tenham vivenciado bons momentos de aprendizagem nesses contagiantes minutos em que vivenciei intensamente o bom de ser um educador apaixonado pelo o que faz.

Saio da aula com uma ingênua ambição: se do tema central nada ficar, que da paixão com que atuei venha uma lição. Que a paixão seja o elemento que estimule e oriente mudanças sensíveis e objetivas no comportamento daqueles alunos. Principalmente o comportamento em relação ao envolvimento com o ensino e a postura enquanto aluno. Eles precisam cobrar mais dos professores e deles mesmos. Pois quem dá paixão merece, no mínimo, uma recepção apaixonada, um ambiente que fomente a paixão e seus desdobramentos positivos contagiantes.

O apaixonado é gratuito, generoso, quer a interação e a gostosa experiência do compartilhamento da energia que o move. Ele quer mais: é insatisfeito e não vai medir esforços para descobrir mais do que torna a vida mais interessante. Em sua ingenuidade, ele não verá os pequenos obstáculos convenientes aos pessimistas, o deserto de idéias e sentimentos familiar aos pragmáticos e as pequenas conveniências que inspiram os miseráveis de alma. O apaixonado vai acreditar que algo novo será produzido e vivenciado, que valerá a pena doar-se para essa busca que inevitavelmente leva a uma nova realidade, esta pedindo para ser aprendida, ensinada, compartilhada, transformada e experimentada.

Foi essa ingenuidade inspirada - e espero inspiradora - que me lançou hoje em direção ao que para mim torna a vida mais interessante: ver e ajudar o outro a crescer. Entendo ser este o meu papel enquanto educador. É uma experiência que ajuda a tornar o mundo melhor. Acredito muito nisso: no crescimento humano resultante da força transformadora do conhecimento. Foi assim que transformei as realidades que tive para experimentar, que plantei os sonhos e esperanças que empolgaram minha caminhada até aqui. Mais: foi pelo conhecimento que me apresentaram, ainda que dele pouco tenha apreendido, que mudei a mim, que jamais serei novamente aquilo que um dia fui. Mudei minhas atitudes e comportamentos em relação ao meu devir e a minha posição em relação aos outros, os objetos e ao planeta. Aprendi que viver é percorrer e preencher, com o que temos de melhor, o lapso de tempo e espaço entre a vida e a morte.

Contagiante e oportuno este dia de aula, esta sublevação da paixão. Sim, sublevação.  Pois apesar da minha vontade e consciência de que devemos lutar pela imanência do nosso sopro de vida, minha atual fase de professor anda seca, morna, insossa. Ando muito exposto a força negativa do meu coletivo de trabalho, com reflexos claros sobre meu desempenho. Ambiente de trabalho este marcado pelo pragmatismo, oportunismo e miséria de alma. Não vejo brotar do nosso fazer diário as boas idéias, nem reflexões responsáveis sobre o papel da educação e da universidade para a transformação social; não vejo emergir projetos coletivos ou pequenos e breves consensos de que devemos responder a altura o gasto do dinheiro público para manter nossa estrutura. Minha sensação diária é a de que para o nosso trabalho levamos e deixamos pouco, que de lá pouco extraímos, e que lá quase nada compartilhamos.

Hoje a paixão subverteu as regras da minha apatia e reivindicou a aplicação do estatuto da imanência. Ela ditou as regras e, quando percebi, apenas deixei-me levar, apenas consenti àquele assalto que, oportunamente, distanciou-me do cativeiro em que se transforma o dia a dia de uma universidade pública onde as pessoas estão orientadas para o seu próprio umbigo, que se aprofundam em suas ambigüidades, veleidades e narcisismos. Rendi-me a paixão. Lancei-me com força ao ato de doar-me para, uma vez exaurido, como encontro-me agora, abrir as portas para um outro dia em que algo novo será produzido e vivenciado. Ou melhor, aprendido, ensinado, compartilhado e transformado.

domingo, 25 de setembro de 2011

Dos riscos de acelerar as águas do rio

Vila Isabel, 24 de setembro de 2011, noite. Estudo matemática com Maria Luiza, uma rotina que se repete por apuros e não para confirmação de um percurso natural na formação de um estudante. Aula extra às que tem com professor particular. No sexto ano do ensino fundamental, onze anos recém completados, ela periga não mudar de série, ainda que tenha todo potencial de raciocínio lógico e matemático a ser explorado. Suas notas não avançam e os resultados mostram os efeitos drásticos da desatenção, falta de concentração, ansiedade e de um comportamento particular de não dar o braço a torcer quando alguém aponta que ela está equivocada.

A dinâmica do nosso momento hoje revela, caprichosamente, os problemas a serem enfrentados. Frente a um exercício de medição de área de uma superfície, ela não consegue fazer uma conversão de medidas. Paralisa. Abaixa a cabeça. Pergunto-a sobre o conceito: “quando ele foi estudado? Em que aula havia sido dado?”. Ela mexe no caderno pra trás e pra frente, numa busca tão desorganizada quanto inútil. Pego o livro, localizo a lição, datada e com exercício feito. Ela senta no chão, dobra os joelhos junto ao peito e fala: “queria que o ano estivesse começando de novo. Ano passado eu era desatenta, desorganizada, fazia tudo do mesmo jeito que faço, e dava certo. Esse ano não está dando certo. Está tudo muito rápido. Eu não sei o que está acontecendo”.

Penso nos detalhes de uma dinâmica de sala de aula que, distante, nem meu coração alcança. Calmamente deixo a mesa, deito junto aos seus pés, seguro suas mão e digo: “pronto, filha, chegamos a uma das respostas de que tanto precisamos para vencer esse desafio: você sabe matemática, apenas tem que mudar seu jeito de estudar. Pare de resistir a necessidade de mudança de comportamento. Você precisa mudar, aprender um novo jeito de fazer as coisas. Que tal tentar, a partir de agora, prestar mais atenção na aula, deixar as pessoas lhe ajudarem, e lutar para fazer bonito nesse restinho do ano? Não dá para voltar atrás. É para o futuro que devemos olhar”. A minha frente estava a mesma menina que, aos cinco anos, pedia aos pais para ir para um colégio para poder aprender a ler. Naquela época, pedia que lêssemos todos os outdoors, cartazes, letreiros, capas de revistas; dizia que queria aprender a ler. Levantei e deixei que ela se recompusesse e ditasse o ritmo do estudo.

Imediatamente lembrei-me dos pedidos da dona da creche onde ela estudava, em 2005, para que não acelerássemos a alfabetização. Nesta fase da vida, um ano faz muita diferença, dizia ela aos pais, vaidosos e otimistas com o desejo da filha de ler. Lembrei-me também dos dizeres de Brechet, presentes em uma placa que li há bastante tempo. Ensinava a placa que das águas bravas de um rio que, ao passar, tudo arrastava, muito se falava, mas nunca se falava das margens que comprimiam este rio.

Aceleramos as água do rio quando não havia quaisquer margens comprimindo-as. Então, conforme diminuem as margens a cada ano que passa, a cada cobrança de uma nova série, anseia minha filha por voltar o tempo. Ela não dá conta da situação. Erramos. Desde que um rio nasce, as águas não param, não retornam a nascente, seguem seu curso até desaguar em outro rio ou em um mar. É como a criança: cresce, deságua em um adolescente, que deságua em um jovem, que deságua em um adulto, que deságua em um idoso e que, por sua vez, deságua em um mar. Fica o aprendizado: como pais, devemos respeitar a topografia do leito, isto é, da vida e de seus percalços, e proporcionar as margens que acolhem as águas plácidas. Uma pequena contribuição para criar crianças saudáveis que desaguem em cidadãos saudáveis.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O caminho do coração e o do vento

UFRuralRJ, 21 de fevereiro de 2009, sábado. Eu e Malu, minha filha, passeávamos pela UFRRJ, de bicicleta, quando ela me proporcionou um momento inesquecível. Ao chegarmos numa encruzilhada, perguntei-a sobre o rumo que seguiríamos, se voltaríamos pelo mesmo caminho da ida ou se seguiríamos outra direção. Estava nublado e o horário avançado chamava-me atenção. Sorridente, disse ela: “Bem, vamos ver. Tem o caminho do coração e o do vento”. Em seguida, pôs o dedo na boca, encheu de saliva, o ergueu, dizendo: “vamos seguir o caminho do coração”. Ela definiu o caminho do vento como sendo o que já estávamos. "Esse a gente já conhece", disse ela. Seguimos o caminho do coração.

Instantes muito bonitos, inesquecíveis, mesmo sabendo que aos 8 anos de idade uma criança não segue outro caminho que não o do coração. Como uma doce e tenra criança, o mundo dela é o da imaginação, das brincadeiras, das mais puras emoções. É o mundo onde se cai, machuca, assopra a ferida e recomeça-se tudo de novo. É o mundo da magia. O mais belo dos mundos, porque sai direto do coração.

Naquele instante, o caminho do vento era o caminho da razão, aquele que já fora percorrido ou que se está percorrendo. Sim, uma leitura que foge ao senso comum do que seja o caminho do vento, o de ir sem rumo certo. Naquele instante, o caminho do vento era o da não surpresa, do revisitar o conhecido, do não surpreender e do não ser surpreendido. Malu deu ao vento a cara da razão e perpetuou no coração a cara da emoção.

Comecei a pensar nos rumos que sigo em minha vida, nos que segui e nos que devo seguir. Visualizei que, na maioria das vezes, havia seguido o caminho do vento, que havia negligenciado o caminho do coração. Pelo mais puro medo de sofrer, acabei sofrendo por ter faltado na trajetória que empreendi o mais gostoso da emoção. Quantas vezes fugi da surpresa, revisitando o conhecido! O medo da emoção, de experimentar decepções, levava-me a querer controlá-la, aprisionando-a. Pura ilusão. Aprisionado estava eu. E também perdido: conforme fui pelo vento, mais me senti perdido, sem chão, pois fui atrás de quem eu jamais seria: um homem movido basicamente pela razão.

Naqueles instantes, com a ajuda da Malu, eu chegava à encruzilhada da qual mais precisava. Decidi reaprender a caminhar pelo caminho do coração, que é o caminho que sempre me gerou o senso de pertencimento a algo que seja confortante neste mundo. Pois, definitivamente, estou onde meu coração está, onde meus afetos mais caros e fortes se manifestam. Estou professor, pois adoro aprender e contribuir para que o outro cresça. Estou em minha família, pois sinto muito orgulho e admiração pela trajetória deles. Estou na literatura, pois adoro o caminho das palavras e as palavras do caminho. É nesse estar que, apesar das decepções, mais vivo e feliz estou.

Seguirei o caminho do coração, que não é o da inconsequência, como me ensinou minha filha. É o caminho da emoção que anima, que nos torna mais humano, que nos dá a noção correta da nossa fragilidade e finitude, permitindo-nos uma doce alforria da ilusão de que podemos controlar tudo. Vou sem pressa, feliz, consciente de que não posso mais me submeter aos caprichos da ilusão de querer ter o controle de tudo.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A primeira morada

Muriaé, 7 de Fevereiro de 2010. Aproveitei que passava pela cidade, retornando de uma viagem a trabalho, para visitar, brevemente, parentes e amigos. Algo que faço com muito carinho por aqui é passar na casa da Hérika, amiga de longa data, onde aproveito de uma recepção sempre muito agradável. Nessa época, o clima de sua família fica ainda mais gostoso, pois sua irmã, cunhado e filhos, costumam ficar lá nas férias.

Seus pais sempre me receberam com muita distinção. Com sua mãe, Marli, tenho abertura para boas conversas, estas que abordam família, profissão, vida econômica, história da família do meu pai e detalhes do cotidiano da cidade. Se deixarmos, conversamos por horas, pois somos bons de prosa. Também gosto muito de ficar naquele quintal, com uma mangueira que torna bonita a divisa do lote com a Rio-Bahia, e que compõe uma bela visão daquela casa diferente, pois ela acompanha o formato da esquina ao final da rua Eucário Godinho, para quem segue do Centro em direção ao bairro Dornelas. 

Em determinado momento da visita, a última antes de continuar a viagem em direção ao Rio de Janeiro, Marli perguntou-me sobre minha vida. Ela queria saber mais sobre mudanças que, em outra conversa, eu mencionara querer fazer. Mudanças como a de retornar à UFF, Volta Redonda, movimento que fiz em 2008 e que acabei não levando a frente, retornando à UFRRJ, Seropédica, no início de 2009. A realidade que criei com a mudança foi tal que não consegui sustentá-la, disse a ela. Retornei para repensar e refazer com calma aquele movimento, procurando dar sentido à bagunça em que se transformara meu cotidiano. Sobre a retomada desse projeto, contei-lhe sobre o que queria alcançar no futuro, como a construção, juntos com os colegas de trabalho, de uma escola de negócios diferenciada. Esta que seria um estímulo a mais para usar de minhas energias, coisa que o ambiente da UFRRJ e do meu departamento não propiciavam. Falei do quanto estava difícil ficar trabalhando num local onde não se fala em projetos para o futuro nem se demonstra algum envolvimento com a lide de educadores. Disse a ela que o concurso nos dava a condição de professores, mas que não buscávamos ser educadores. Por fim, em tom de pesar, falei da casa que deixaria em Seropédica caso materializasse a escolha, e reforcei a necessidade que tenho de encontrar um lar e, enfim, fixar meu pouso.

Vendo minha euforia -- e nesses dias eu estava de fato exasperado -- e meu discurso, que me transformava numa insatisfação ambulante, Marli falou-me de duas moradas: a da alma e a do corpo. Com seu jeito calmo, didático e franco, ao mesmo tempo em que levava sua mão à altura do meu peito, falou-me que eu só irei encontrar essa morada, lar, ninho, pouso, etc. se tiver encontrado a morada da minha alma, indicando com um dedo o meu peito. ─ Primeiro encontre essa morada para repousar ─, disse ela. Pediu para que eu repousasse minha alma para ter a paz, harmonia, força, fé necessárias para enfrentar a vida, seus desafios e desdobramentos. Via-me afoito, nervoso, ansioso, querendo fazer as coisas, mas não sentia em mim a plenitude para realizar o que queria. ─ Esta plenitude só se alcança com a alma acolhida, protegida, alimentada ─ complementou.

─ Quando sua alma estiver na morada dela, as coisas ficarão menos difíceis do que realmente são, e, quem sabe, não encontra a outra morada? ─, disse ela. Sem mudar seu tom, finalizou lembrando que quando a morada da alma está bem alicerçada, somos capazes de enfrentar qualquer intempérie, qualquer mudanças, que somos capazes de viver mesmo na morada física menos remediada. ─ Todos precisam dessa primeira morada ─, finalizou.

Não foi preciso mais conversa. Guardei aquela mensagem em meu coração, protegida e reforçada com a força do meu silêncio, enquanto refletia. Além disso, deixei a casa naquele dia com um CD de mantras católicos, dado-me para escutar durante o retorno ao Rio de Janeiro. Deixei a casa e fiquei espreitando-a alguns segundos antes de pegar a estrada. Uma fotografia única. Para quem passa pela Rio-Bahia, em direção ao Nordeste (ou à Itaperuna), logo após a primeira entrada para a cidade, lá estão a casa, a esquina e a Mangueira. Dentro deles, ou abraçando-os, uma morada da paz.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Das rotas e destinos que seguimos, e das pessoas que encontramos

Osasco, 31 de Julho de 1998, 6:00 da manhã. Acabo de vivenciar um importante momento em minha vida, uma densa experiência que começou ontem, as 23:00 horas, dentro de um ônibus, na rodoviária do Rio de Janeiro, e terminou há pouco, aqui em Osasco, numa estação de trem. Mesmo cansado, escrevo para não perder a vividez de tudo o que me foi falado nas sete horas de uma conversa que virou um monólogo.

Ouvi por quase sete horas, calma e atenciosamente, uma pessoa que, ao ver-me posicionando a bagagem, começou a puxar assunto. Eu poderia tê-la evitado, justificando um merecido descanso, mas o rumo que a prosa tomava mostrava-me, por meio de palavras e construções frasais sofríveis, mas tão felizmente proferidas, novos ângulos de observação dessa viagem que faço pela vida e mesmo de como devo conduzi-la. Foi assim que encontrei no caminho, na condução, respostas para muitas das apreensões que faziam de São Paulo o destino ideal para a sua solução.

No corredor, ao meu lado, estava o cearense Valdemar, da cidade de Viçosa do Ceará, 25 anos, que assistia ao meu embarque. Sem nunca ter-me visto, puxou conversa. Falou sobre o tempo, a viagem, mas logo começou a falar dele próprio, abrindo os capítulos e páginas do livro de sua vida, de maneira que, acredito, só os brasileiros sabem fazer. Expansivo, como a maioria dos cearenses que conheço, contou-me sua história durante todo o trajeto, passando pela rodoviária do Tietê até a estação Comandante Sampaio, em Osasco, onde desembarquei.

Sua vida é um constante vai e vem entre Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro. Nessa correria construiu um lar, em Viçosa do Ceará, mas não se adequou. Em são Paulo, um irmão. No Rio, uma irmã.  No nordeste, a mãe, esposa, filha, e a barraquinha de camelô que montou em uma das várias vezes que, nos últimos oito anos, trocou o Rio de Janeiro pelo Ceará em busca de adequação. Não falou de outros irmãos ou da figura do pai.

Não estudou. Ontem ele deixava o Rio de Janeiro para viver em São Paulo. Balconista em um bar, no bairro do Estácio, fugia da semana de trabalho que vai de segunda a segunda, do salário de 200 reais e do quartinho que lá tem para viver. Ia fichar numa empresa de construção civil, em um bico arrumado por sua cunhada. Voltava para a cidade aonde chegou há doze anos, fugindo da vida difícil que levava no nordeste. Voltava para a cidade que deixou há oito anos para se aventurar pelo Rio de Janeiro. Voltava para a cidade onde não cabia quando tinha 17 anos de idade. Simplesmente não se adequou em São Paulo. Para explicar sua sorte ou escolhas que fez, o vai e vem de sua vida, ele simplesmente dizia: “não me adeqüei”, “eu não cabia ali”.

Não se adequou no Ceará e ainda por cima gastou com mulheres e bebedeiras parte do que ganhou, confissão que misturava arrependimento com o sorriso que só os melhores oportunistas sabem soltar. Ainda assim conseguiu juntar dinheiro para poder construir seu lar, no Ceará, enviando todo mês parte do seu salário de 200 Reais. Nem mesmo as desventuras com as mulheres do Rio de Janeiro, frustração fortemente enfatizada, o impediram de atingir sua meta: construir sua casa, seu lar. Poderia ser cozinheiro, mas não agüentou; foi balconista, mas não se adequou a rotina de segunda a segunda. Agora vai tentar ser pedreiro e, se não der certo, vai tentar ser outra coisa, até se adequar.

Voltava, mas ainda falava do mundo a ser descoberto e de trazer a família para São Paulo com a mesma facilidade com que falava das meninas que namorou em Carapicuiba anos atrás. Os olhos brilhavam quando falava daquele mundo chamado cidade, sua fala empolgada não cedia as horas que passavam. No metrô, sacou de um álbum e mostrou em fotos a família, lar, parentes, amigos e lugares de que tanto falou na viagem. Vi as faces das pessoas que compõem o mundo de Valdemar. Em nenhum momento, porém, falou de sonhos. Em nenhum momento falamos do amanhã. As 5:15 da manhã nos despedimos na estação Comandante Sampaio, em Osasco. Ele prosseguiu até a estação Jandira, seu novo-velho destino.

Do Rio até Osasco não falei a meu respeito. Valdemar tomou a palavra e com ela ficou até o fim, conduzindo nosso encontro para bem além do alcance da visão e do espaço demarcado pelo ônibus, vagões e estações. Sua trajetória de vida foi o centro das atenções. Ao seu jeito, fez-me visitar, em imagens, as paisagens que me descrevia de Viçosa do Ceará, Carapicuíba e do Estácio. A única coisa que nos aproximava era a nacionalidade, no mais somos duas pessoas totalmente diferentes, com oportunidades que diferem em quantidade e qualidade. Encerrávamos histórias, até aquele presente momento, totalmente distintas. Coincidentemente, uma vez na vida, seguimos a mesma direção, pegamos as mesmas conduções, e tínhamos a mesma meta de mudar de vida.

Ao lado de Valdemar viajava eu: uma pessoa de 27 anos, pós-graduada, que procura transformar a própria vida. Inquieto, extremamente insatisfeito, acredito não merecer o que tenho vivido. Estou em São Paulo em busca de reconhecimento profissional, recompensa econômica e de um trabalho que seja criativo e desafiador. Para tanto deixei de lado um trabalho que não me desafia ou empolga. Sou alguém que, acima de tudo, carrego comigo um grande estranhamento em relação a vida e tudo o que se me apresenta enquanto passo por ela. O que para mim é estranhamento, para Valdemar é questão de adequação.

Mas a sorte ou escolha de Valdemar, o que se apresenta para ele ou o que ele vai a procura, subtrai muito da importância que minhas inquietações tem. Perto de Valdemar, e da sua sorte, não passo de uma excrescência, de uma improdutiva reclamação ambulante, perambulando pelo mundo de opções que a vida apresenta, sem ao menos dar-me conta de que sou um privilegiado. Sequer levo na face o brilho que deveria ser peculiar, ou mesmo obrigatório, a quem teve as oportunidades que tive e tenho. Minha fala não empolga, nem transcendo pontuais dificuldades que tenho para levar empolgação ao trabalho que tenho, a família remediada que me acolhe, aos amigos que possuo, e a residência confortável que me abriga na Tijuca.

Há muita diferença entre sair do Nordeste ou do Rio de Janeiro para tentar a sorte em São Paulo. Fato visível a qualquer um que, por ventura, fixe olhares e ouvidos as figuras e paisagens que nos apresenta a Central do Brasil, lá no Rio de Janeiro. Mas quis eu, dessa maneira e a este custo, vivenciar essa diferença. Apesar de não ter o controle sobre como será o futuro, o que as condições de vida que se me apresentam reclamam de mim é planejamento, escolha estruturada, não sorte, como se a vida fosse um jogo de azar. Foi de uma ironia sem qualquer legitimidade o pelo menos parecer que eu e Valdemar somos passageiros da mesma agonia. A vida apenas nos colocou na mesma rota. E ela própria, dando a ele a palavra, mostrou que nossas partidas e destinos são bem diferentes. Ainda que nesta vida ele busque adequação e eu a siga amplificando, desnecessariamente, dores que maculam todo e justo estranhamento que todo ser humano venha ter na vida.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Do quanto deixamos de alimentar nossa alma

Seropédica, 4 de novembro de 2010, manhã. Céu claro, correria na rua, promessa de mais um dia comum: quente, úmido, sem vento, ou algo como uma breve mensagem do que os moradores da cidade poderiam esperar para o verão. Fecho o portão da garagem, após ter tirado o carro. Neste instante passa uma jovem na esquina, no encontro das ruas 7 e do Hotel, provavelmente uma estudante da UFRRJ em direção a um dia de aulas. É a esquina onde moro há anos.

Seria mais um anônimo transeunte em um dia comum não fosse o fato de para ela ser comum o que para nós que moramos na esquina é extraordinário. Alheia a desordem que domina a paisagem de qualquer esquina de Seropédica, ela olha para um dos cantos, avista um cachorro e vai em direção a ele, sorrindo, gesticulando, falando docemente, como se falasse com uma criança. Começou a acariciá-lo, aumentando o sorriso e as falas afáveis, dando mais carinho. O cão, ainda deitado, responde com alegria cada vez mais incomum aos humanos quando se encontram. Levantou-se, balançou fortemente o rabo, lambia sua benfeitora, rosnava de alegria, pulava. Seria uma cena ordinária não fosse o fato do cão ser portador de um problema na parte dianteira que mal o deixava caminhar.

Tratava-se de cão um que havia feito daquela esquina a sua casa, e que não chamava muita atenção das pessoas, principalmente a minha, que sabia da sua existência por levar o cão da minha filha para passear pelas manhãs. Por ele eu apenas passava. Quando ele apareceu ou de quem ela era, ainda não me era sabido. Realizei que devido aos problemas físicos, ele não saia dali para muito longe, fazia pequenas incursões por metros de ruas e calçadas naquela esquina. Na maior parte do tempo ele ficava deitado. Naquela madrugada, recordei-me, ele havia apanhado do cão de um vizinho próximo. O episódio fora barulhento, muitos gritavam, despertador desagradável. Quando me levantei pude ver apenas o cachorro em sua posição comum: corpo sobre um degrau e a cabeça sobre o outro degrau da calçada em frente a minha casa, ofegante.

A cena é mesmo extraordinária. Leva-se a vida corrida de quem, por ser de Seropédica, está sempre saindo dos boxes, atrasado diante o mundo. Em Seropédica, cidadão é quem tem carro ou moto, são os senhores das ruas e calçadas. Fato este que faz das esquinas as vitrines da agonia do cidadão diante a opressão dos carros e motos. A cada ano que passa os antigos moradores dão lugares a alunos da UFRRJ, nem sempre próximos, disponíveis. Mais do que isso: a cena mostrava a miséria de sentimentos que erroneamente cultivamos. É raro darmos aos vizinhos mais do que um cumprimento ou um breve fio de prosa. A jovem, alheia ao espetáculo de medo e insegurança que experimentamos todos os dias nas esquinas de Seropédica, nos presenteava com uma demonstração inequívoca de um sentimento que precisamos reaprender e de um hábito que precisamos cultivar: dar a alma o que lhe é essencial, a simplicidade.

Já em meu carro, em minha confortável miséria, assisto a cena que prossegue. Outras pessoas também assistem a atuação da jovem, impregnada do sentimento que sinaliza o que seria um dos melhores marcadores da nossa condição de humano: amar de maneira pura, sincera, desprendida. Gratuita, simples, sem deixar de ser intensa, ela ensinava como usar deste sentimento que nos dá autonomia para agir de maneira mais leve, cativante, positiva e sem a necessidade de ficar preso a retribuição ou ao que vão pensar da nossa manifestação. Em cena o amor que não é marcado por ser destinado a alguém especial que por ventura tenha aparecido em nossas vidas, como aprendemos desde cedo em família ou na TV. Alguém este a quem vamos cultuando, afastando-o do cenário comum, subtraindo sua naturalidade. Em cena o amor que não dá presente, aquele que se faz presente pela autonomia, consistência e beleza no acabamento da sua mais simples manifestação. Bonito, simples, natural, gratuito: a maneira de quem o faz todos os dias, a qualquer hora. Um ato comum de quem não experimenta a miséria da alma.

A moça tirou do ostracismo o cão esquecido por não ser belo ou que chama a atenção pela deficiência que carrega, pela dificuldade com que deambula. Ela é capaz de fazer aquilo por outro ser humano, pois a gratuidade chama mais atenção que a intensidade da sua atuação. A cena me atingiu em cheio: passo por ali quase todos os dias e o cão apenas me observa, sequer chega perto para cheirar a cadela que levo para passear. Enquanto observo, outra surpresa: uma senhora, moradora de outra rua, vem da sua caminhada matinal e traz pedaços de pão para o cão. Depois deixa, anonimamente, um saco de pão no portão de uma família humilde que habita na esquina. Feito com a naturalidade de quem o faz todos os dias, anonimamente.

É a silenciosa operação dos que levam seus dias sob o ritmo da gratuidade do sentimento que faz crescer e amenizar as dores dessa nossa passagem pela vida. Confortável em minha miséria, realizo que pouco tenho dado de atenção a todos os meus vizinhos. O tempo está passando, estamos envelhecendo, levamos para os lares o que trazemos do mundo e que tratamos como muito valioso, indisponível. Vamos as igrejas, ostentamos nossas bíblias e imagem de fé, mas sequer nos abraçamos. Naquela esquina, mais nos protegemos do que nos projetamos. Não nos disponibilizamos para o outro, para lidar com a nossa vida comum, como se divida fossemos contrair ou menos passassemos a ter. Miseráveis, pouco nos pedimos, quase nada nos damos, como se só tivéssemos corpos a alimentar.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Somos todos instrumentos

Pedro Texeira – MG, sábado, 7 de maio de 2011. Pedro Teixeira é a terra natal da família da minha mãe. Cidade pequena onde ficaram muitas das recordações dos membros da família da minha avó materna. Voltar a cidade é, para muitos de nós, um retorno as raízes, algo nostálgico, como se lá fosse o paraíso perdido quando se foi para o mundo tentar a sorte de uma vida melhor. É uma visão romântica que ameniza o fato de que lá se tinha muito pouco, mas muita vontade de viver dignamente. Procuro sempre ir a cidade para ter conta da história da minha família, de toda trajetória que enfrentaram minha mãe e meus tios, um fantástico manancial de lições entremeados em muitas boas prosas com aqueles que lá ficaram. 

Desta vez voltei a cidade para enterrar o Tio Manoel, tio Neca, 86 anos, um dos irmãos da minha avó, Maria Júlia. Saí do Rio de Janeiro apressado, as 12:30, querendo atender ao funeral e para solidarizar-me com os primos. Um forte sentimento impelia-me para fazer a viagem, que competia com a confirmação do batismo que atencedia a primeira comunhão da minha filha. Eu sentia que não podia faltar. Durante o percurso, passando por Juiz de Fora, decidi não parar para almoçar porque não queria atrasar e porque, no fundo, queria comer o arroz e feijão de lá, saboreando a comida e a presença de meus primos. Embora fosse um dia diferente, sabia que não teria comida na casa do tio Neca e pensei na casa do Paulinho e da Gracinha, primos que sempre me tratam bem quando estou lá. Assumi que iria parar lá e pedir um prato de comida.

Estava há uns 40 quilômetros de Pedro Teixeira quando, ao passar por um ponto de ônibus a beira da rodovia, notei de relance a figura familiar de uma mulher. Não reconheci de início, mas dei a ré no carro, e voltei para conferir. No ponto, surpreendentemente, estava Gracinha, em quem havia pensado há pouco. Estava vindo, em uma cansativa baldeação, de Rio Pomba para o enterro do tio Neca. Ao me reconhecer, sorriu generosamente e disse: foi Deus quem te enviou! Assim que entrou, após cumprimentos, falou: “estou cansada, com fome, mas não há nada melhor que o arroz e feijão da nossa casa. Essa comida da rua não vale a pena”. E me convidou para almoçar na casa dela. Continuando, já comentando a perda do tio, sua fala lembrava que somos todos instrumentos de Deus, que não somos nada demais nessa vida, que nela entramos, e dela saímos. Chegamos a poucos minutos do enterro. Em sua casa tive o almoço que imaginei: simples e servido com carinho. Extraí dessa viagem a Pedro Teixeira outro sabor que não o de uma perda.

Durante a missa de corpo presente, uma música, entre outras, dizia:
"Sabes, Senhor, o que temos é tão pouco pra dar. Mas este pouco nós queremos com os irmãos compartilhar. /Queremos nesta hora, diante dos irmãos, comprometer a vida, buscando a união. /Sabemos que é difícil, os bens compartilhar, mas com a Tua graça, Senhor podemos dar. /Olhando Teu exemplo, Senhor vamos seguir, fazendo o bem a todos, sem nada exigir".

Aquela música celebrava a vida. Nós celebrávamos naquele dia as exéquias de um homem que foi instrumento da paz e da generosidade. Prova disso é que lá estavam os doutos e os ignaros, os de posse e os sem posse; as mais diferentes condições e matizes de vida social, cultural e econômica manifestavam-se na igreja e no cemitério de Pedro Teixeira. A roça, que tão pouco conhecemos hoje, saiu para o centro da cidade e mostrou a sua cara simples, chorando a perda de um homem que materializou em sua vida a fé, paz, generosidade e simplicidade cuja falta tanto reclamamos atualmente. Pessoas dos cafundós de Pedro Teixeira e adjacências estavam lá. Em cada roda de pessoas, histórias que certificavam os feitos do Tio Neca e da sua esposa, tia Nair, já falecida. As pessoas contavam, a seu jeito e tempo, como aquele homem e sua família foram importantes para a vida delas; como, naquela vida difícil e empobrecida da roça, a ajuda deles amenizou parte das dores e desolação a que estão condenados os que vivem na roça. 

No cemitério, após o enterro, conversando com primos, uma senhora se aproxima e pergunta quem eu era. Ela, moradora de lá, via que eu não era familiar. Fui apresentado como filho da Tininha, sobrinha do Tio Neca. Ao saber disso, a senhora pediu um abraço e abraçou-me forte. Emocionada, disse que minha mãe fora a melhor amiga dela enquanto jovens. Olhando em meus olhos, disse-me que experimentava naquele momento um pouco de felicidade, e completou: abraçando você eu abracei a sua mãe. Minha mãe faleceu há 30 anos, e com aquele abraço ela celebrava os momentos de amizade que tiveram há 45 anos ou mais. E que hoje só podem ser alcançados pela lembrança, pelos momentos, faces ou palavras que dão carona, em direção ao presente, para as imagens e sensações dos momentos em que fomos mais felizes. No fundo, eu sentia que minha mãe também nos abraçava naquele instante.

domingo, 24 de abril de 2011

Sobre abrir e manter as portas abertas

Muriaé, 21 de abril de 2011, bairro Dornelas, perto das 18:00 horas. Aproveitei o feriado da Semana Santa para descansar e, como de costume, levei na bagagem outros propósitos: tirar minha família da correria e bagunça da cidade do Rio de Janeiro; rever meus familiares mineiros, extremamente caros para mim; e fazer uma nova leitura, agora aos 40 anos, do meu jeito de ser e agir e promover mudanças. Uma releitura do meu modo de estar na vida, dos sentimentos, pensamentos e ações.

Realizo essas releituras com frequência. Produzir novas significações e ressignificações é algo que faço com regularidade, embora não sejam nada fáceis de fazer. É uma prática que sempre se sobrepõe a outra ideia que por vezes me aparece: a de praticamente viver sem fazer leitura ou releitura alguma, de bastar-me o significado básico de estar vivo. Remonta a Clarice Lispector: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Sou capaz de render-me, até tentei fazer em determinados momentos de minha vida, uns por amor, outros por puro pragmatismo, mas ainda não ao modo lispectoriano. Os momentos pragmáticos, apesar dos resultados obtidos, foram duros, empobrecidos, era o resultado pelo resultado, a falácia do atirador de elite, do tiro perfeito, só isso. Faltava substância, algo que desse mais sabor ao desafio de viver e que não se resumisse ao "veja, eu fiz, tá aqui, ó". 

Acredito que o pragmatismo, ainda que gere resultados e que por vezes mostre-se necessário, quando a iminência, a urgência, o solicita, se não for devidamente ilustrado, trabalhadas as suas razões, promove o empobrecimento da realidade e da aprendizagem. Posto que atende a necessidade de produção de resultados e não importa como, quando feita para premiar a vaidade do seu autor — a de ser visto e de se vê como pessoa audaz e resoluta —, a ação pragmática fecha as portas para o inusitado e surpreendente, cerceia a imaginação, inibe a oferta de contribuições e de troca de experiências. Em outras palavras: “é assim e pronto. Vamos aos resultados!” Pronto: a porta está fechada. Se feita assim, essa ação produz resultados na maioria das vezes miseráveis, pois esse tipo de fazer difere do fazer com simplicidade que resulta da sabedoria, da aprendizagem que o passar do tempo nos confere e nos ensina a sempre manter as portas abertas à sensibilidade, imaginação e criatividade..

Programei relaxamento e reflexões para o fim de semana, mas não me descuidei da prática de exercício diário que assumi como fundamental para produzir saúde e melhorar minha qualidade de vida. Coloquei meu tênis e fui correr no passeio à beira do rio Muriaé, lugar onde muitos caminham. Devido a péssima condição do passeio e ao intenso fluxo de carros, que assustam e poluem, fui correr pelas ruas do bairro Dornelas, especificamente na Sebastião Dornelas e na Boa Esperança.

É assim, pragmaticamente posto ─ produzir saúde e melhorar minha qualidade de vida ─ que entendo a prática de exercício. Por outro lado, isso é parte do que me comunicam a prática de exercício e de esportes e todos os atores diretamente ligados a atividades físicas e esportivas. Outra parte é a preparação para a competição, para a superação de rivalidade e de limites, que, segundo algumas leituras, em função de como é organizado e desempenhado, produz momentos celebres, artísticos. Acredito ser essa visão pragmática resultado da qualidade das interações que tive com a educação física praticada nas escolas, com as orientações médicas, como torcedor, com as interações sociais nos times de futebol de bairro e com a mídia.

Esta realidade foi confrontada, recentemente, pela grata e inusitada fala do treinador do Internacional, de Porto Alegre, Falcão, sobre o aceite para voltar aos gramados como técnico. Ele que supostamente não precisa daquilo por salário e reconhecimento falou em leveza, que futebol é alegria, não uma guerra, que futebol é conseguir resultado com alegria e que quer ir para o campo com a certeza de que vai ver um espetáculo. Com responsabilidade e consciência do desafio, um dos resultados possíveis para ele, e não menos importante, é se divertir. 

Até a fala dele, confesso, eu não havia alcançado esse nível de leitura sobre o fazer e praticar exercícios e esportes. Falcão foi além do iminente que satisfaz a paixão e rivalidade dos torcedores, a muitos jornais e jornalistas e aos gestores dos clubes. Falando do futebol, ele nos abriu a porta para uma significação maior, para uma relação mais humana, nobre e instrutiva entre nós e os diversos fazeres e experiência que se nos apresentam conforme nos embrenhamos pela vida. Ele falou em produzir alegria, divertir-se no trabalho, colocando este como parte fundamental de um viver com alegria. Falcão ensina que essa é a meta, o resultado amplo e possível de ser alcançado quando se abre mão da obtusidade inerente a ação pontual e pragmática.

Enquanto corria pelo bairro, notei o fato natural de que eu chamava a atenção dos adultos, perturbava a rotina, dado que era desconhecido. Algumas crianças brincavam na calçada e com elas deu-se um momento interessante. A figura estranha passava várias vezes correndo e elas comentavam, discretamente, procurando chegar, em suas trocas de impressões e informações, a um contexto que explicasse ou desse conta daquele pequeno inusitado: um estranho correndo em nossa rua. Tímido, não tive coragem de fazer os acenos que cumprimentam e pedem passagem.

Em uma das voltas, ao final da rua Boa Esperança, uma das crianças, uma menina perto dos seus 3 anos de idade, parou de brincar, olhou para mim, levantou-se sorrindo e perguntou: “moço, por que você fica correndo pra lá e pra cá?”. Pego de surpresa, algo que por si só justificava que eu parasse e desse atenção, resumi-me a dizer, e sem parar: “eu corro para suar”. Ela ficou olhando para mim. A frente, seu pai, atento, disse-me: “um dia ela vai entender que isso é saúde”. Continuei meu passo e percebi quão objetivo, pragmático, pobre, eu fora: “corro para suar”.

Eu, o estranho, tendo a oportunidade de fazer-se ameno e amigável, preferi fechar a porta, ignorando a grata surpresa, o inusitado saudável que abria as portas daquelas crianças para novos saberes e aprendizagens. Eu deveria ter parado e dito: “corro porque isso me deixa feliz ou porque isso me diverte, faz parte da vida que eu quero para mim”. Eu ampliaria meu resultado para este dia, pois, além de ganhar saúde, eu ganharia sorrisos gratuitos e verdadeiros e outras perguntas que, talvez, expusessem-me a novos inusitados e aprendizagens. Certamente conversaria com o pai dela, tornaria-me familiar e este episódio, visto pelos outros da rua, chancelaria de vez meu passar pelos domínios do dia-a-dia que eu havia perturbado.

Decidido a recuperar-me, fiz a volta na esperança de ainda reencontrá-los para poder dizer que corro para me divertir como fazem todas as crianças. Quando cheguei as crianças estavam saindo para suas casas. Aquele pai não estava mais lá. Vi a garotinha e, no tempo que me foi possível, tentei reabrir a porta à sensibilidade, e disse: “olha, eu corro porque isso me deixa feliz”. Ela sorriu com o meu inusitado retorno.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Do que experimentamos nesta caminhada

UFRRJ, 19 de Fevereiro de 1997, à tarde. Experimentei hoje um momento muito interessante da minha curta existência. Marcou-me por sua originalidade, pelo ineditismo com que fui apresentado a mais uma das incríveis facetas do viver. Hoje, por alguns instantes, por alguns metros, experimentei, e pela primeira vez, a real e incômoda sensação de estar sozinho no mundo. Acompanhada esta de uma terrível sensação de vazio existencial. Sozinho e esvaziado.

Caminhava pela UFFRJ, do Prédio principal (P1) para o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS); lia a cobertura jornalística do falecimento de Darci Ribeiro. Concentrado na leitura, segui meu caminho a passos muito lentos, bem calmos, enquanto era conduzido, pelo autor, pelos diversos momentos da vida e trajetória de uma das personagens mais brilhantes e marcantes da nossa história. Quando comecei havia sol, não ventava. Embora fosse à tarde, fevereiro, havia muita gente transitando pela Rural.

A notícia da morte já me causara um grande vazio. É muito ruim vivenciar perdas, e estas tomam contornos diferenciados quando se trata de pessoas cujos pensamentos, valores, envergadura moral e qualidade do trabalho as tornem imprescindíveis para a formação da nossa imagem de cidadão, da maneira como nos vemos e nos definimos como povo, nação. Embora conhecida a gravidade da doença, Darci Ribeiro desapareceu, simplesmente desapareceu. Fica a obra. O conteúdo da reportagem fez aumentar essas incômodas sensações; as palavras sensibilizavam, emocionavam, e, ainda que limitadas a um jornal, foram certeiras ao aludir a vida e obra de Darci Ribeiro.

Quando lia uma das últimas frases, onde Darci Ribeiro explicava ao médico porque sairia da UTI, abandonaria o tratamento e iria para casa, acontece o que marcaria para sempre este dia. Parei e comecei a refletir sobre o significado da sua explicação, sobre aquela contundente reafirmação da sua vontade de viver, ainda que implicasse a saída do hospital. Ele, paciente terminal, sai do quarto e vai pra vida; troca a paisagem da dor, pelo cenário da vida, ao lado dos seus e dos elementos que melhor definem o indivíduo que ele encerrou. Uma forte demonstração de amor a vida.

Fechei o jornal, levantei a cabeça e olhei para os lados. Pela primeira vez, aqui na UFRRJ, não encontrei ninguém. Ninguém ia ou vinha pelo caminho entre o P1 e o ICHS; ninguém vinha ou ia pelo caminho entre os alojamentos e o ponto do Colégio Presidente Dutra. Não notei qualquer pessoa que tenha passado por mim. Nada de carros, motos ou bicicletas. O tempo tinha ficado nublado, ventava muito; chuva forte a caminho. Demorou uns minutos até que alguém aparecesse. Retomei minha caminhada.

A caminhada, normalmente rápida, estendeu-se por quase 40 minutos. Eu estava sozinho, momentaneamente esvaziado do lúdico e do lírico que tão nobremente alimentam essa nossa breve caminhada pela vida e que sempre nos chegam por meio dos sonhos, apostas e obras dessas pessoas que são imprescindíveis.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Honrar encontros

São 9 de setembro de 2010, estou em São Paulo para rever primos e participar de um congresso na USP. Pela primeira vez em minha vida, fui vítima de roubo. Anteriormente, fui furtado em Belo Horizonte, em 1994.

Tudo se deu num arrastão, coisa que parece ‘exclusividade’ do Rio de Janeiro, como sugere a incidência da mídia. Que cena: um cidadão carioca subtraído de seus bens na terra da garoa, no estado das pessoas que, segundo velha provocação, trabalham para o resto do Brasil poder viver. Imagens à parte, o que sobra é a realidade: fui mais um cidadão brasileiro em São Paulo, cidade que é a imagem e materialização do progresso bastante idolatrado por muitos de nós, mas que na realidade é mais violenta que o Rio de Janeiro.

Havia um congresso na USP, mas o que eu mais queria era rever Marta e Edinho, primos caros à minha história de vida e a quem eu protelava o devido reencontro. Edinho eu não via há mais de seis anos, Marta há uns dois anos. A possibilidade do reencontro foi o fator decisivo para viajar, dado que estava cheio dessa coisa de fazer networking, algo artificial, porém muito aceito nos mundos acadêmico e de negócios. Imagens do cansaço e do pessimismo de um acadêmico altamente duvidoso da real vontade e disponibilidade dos seus vaidosos pares para compartilhar o conhecimento que presumimos ter. Não devo ser o único que pensa e sente que a academia é ‘mestre’ em fazer apologias a valores que nem sempre pratica.

Findo o congresso, Edinho me pegou na USP e me levou ao seu lar, no bairro da Lapa. Convivemos nos primeiros anos da minha adolescência, no início dos anos 80, e desse encontro ficaram marcas significativas. Ele sempre me chamava atenção para a necessidade de criar e produzir minha própria história, era perseverante e disciplinado na criação da dele, mas o que me chamava muita atenção eram seus valores e atitudes sempre serem orientados para ética, trabalho, religião e família. Vindo de Pedro Teixeira, MG, em Seropédica trabalhava como balconista de Supermercado para pagar os estudos. Trabalhava e estudava bastante e nunca reclamava, estava sempre sorrindo. Eu o conheci em uma fase difícil da minha vida e nele tive o acolhimento para, àquela época, poder falar sobre o que me deixava apreensivo. Ele sempre me dizia: seja humilde e tenha fé.

Em São Paulo, transformou sua vida: casado, duas filhas e profissional bem-sucedido, colhia da boa safra que preparou por toda a vida num esforço peculiar de sempre semear seu terreno com seus históricos valores. Respira-se isso em sua casa e a dinâmica de sua família nos leva a sentir essa energia. Fiquei pouco tempo por lá, mas a harmonia e ritmo que ele, Adriana e filhas encerram é algo confortador, uma experiência muito boa. Fui chamado para pernoitar, mas queria estar com Marta, com quem tive meus contatos mais fortes a partir dos anos 90, época dos meus vinte e poucos anos. Trabalhamos juntos na UFRRJ, onde fomos técnicos administrativos e dela recebi preciosas lições sobre trabalho, estudo, espiritualidade, coragem, objetividade e otimismo. Saiu do Rio e foi para São Paulo trabalhar, foi ser bandeirante na terra da garoa.

Preparava-me para pegar um taxi até a casa de Marta, quando Edinho decidiu me levar até lá. Às 21:30, na rua João Dias, chegando à avenida Giovane Gronch, porta de entrada do luxuoso bairro Morumbi, bandidos fecham o trânsito e saqueiam os carros, aterrorizando a todos, apontando armas direto para as cabeças. No carro, Edinho, família e eu. Preocupado com a família, sentada no bando de trás, Edinho praticamente se prostra, demora a responder aos comandos dos bandidos que, contrariados, exacerbam as ameaças. Tomado de espantosa calma, respondo aos comandos dos bandidos, entrego tudo o que foi solicitado. Foram-se pertences, dinheiro, cheques, cartões e documentos. A tensão não durou mais que cinco minutos.

Fora de perigo e mesmo ao lado de primos, vivenciei medo, angústia e frustração até chegar à casa de Marta. Para qualquer lugar que olhava, tudo que já era desconhecido se tornou mais hostil. Precisando de amparo, lembrei de que quatorze horas atrás eu beijava e abraçava fortemente minha filha e de algo impressionante: minutos antes do incidente, Julia, filha do Edinho, pediu insistentemente ao pai para cantar para mim a música que aprendeu na catequese:

“Vem amigo vem /Vem para entregar este coração que Deus te deu/ para amar não para odiar /Vem abre teus braços até aquele que está lá/ Vem abre teus braços ao teu irmão ao teu amigo/Dá-lhe um empurrão/ Dá-lhe um empurrão que de pouco a pouco ele se achega ao Senhor Nosso Senhor”.

Pedido interessante o de Júlia: seu cantar nos trouxe a calma para enfrentar o roubo.

Na portaria do prédio em que Marta morava, paramos para elaborar toda tensão e enfim chorar o que o susto nos impediu. Passado o pânico inicial, Edinho e família se foram.

Depois de ter sido acolhido e confortado, e de termos realizado que se foram os bens materiais, mas ficou a vida, Marta me surpreendeu com uma pergunta: “Se o pior lhe tivesse ocorrido hoje, você acredita que levaria consigo a certeza de ter honrado os encontros que teve nessa vida?”. Senti imediatamente o impacto da pergunta e me dei conta de que o código do viver estava sutilmente embalado por uma inusitada e profunda reflexão e exigia bastante tato na sua decodificação.

Acompanhado de Castelhano, marido de Marta, fui prestar queixa. Embora tudo fosse passível de reposição, não importando quanto tempo levasse, o que eu mais ressentia do que foi subtraído eram os documentos. A frustração ainda me faria companhia durante o longo período em que perambulamos por delegacias próximas ao bairro Morumbi que estivessem vazias e que pudessem registrar a ocorrência sem que isso nos custasse toda a madrugada. Enquanto espero atendimento na 34 DP, em Francisco Morato, pensei insistentemente em meus encontros, principalmente se nesses 39 anos de vida eu observei ou não a inerente honradez que possuem. “Honrei meus encontros? Honro meus encontros?”. Pensei no encontro com Maria Luiza, minha filha, no encontro que tive com sua mãe e que nos levou a formar uma família. Pensei no encontro que tive com meus pais, irmãos, tios e primos. Pensei no encontro com amigos, colegas de trabalho e de escola, e com meus alunos, pessoas que precisam de conhecimento, exemplos, atenção e orientação.

Muitos foram os encontros em minha trajetória de 39 anos e a pergunta de Marta, além de me fazer acessar o todo simbólico que envolve um encontro de duas pessoas numa vida, falou de uma riqueza a que somos apresentados e que devemos honrar como condição central para fazer uma análise mais humana e sensível dessa nossa passagem pela vida. Passagem curta, que às vezes pode ser curtíssima, e da qual nada se leva, mas na qual podemos diariamente carregar a leve e confortadora consciência de que foi digna, humanizada e honrada. 

A admiração e gratidão me levaram ao encontro de Marta e Edinho, e, mesmo subtraído de bens e esperança com nosso país, saí enriquecido do que sempre me deram: abraços, conhecimentos, demonstração de afeto e energia espiritual, agora pela providencial mediação de Julia, que fez brotar em mim a calma e paz de espírito para evitar o pior no sufoco do assalto. Também entreguei a eles o afeto que, se não honra o encontro que tivemos nessa vida, pelo menos me estimula a sempre estar com eles.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Abrace o que está vivo.



Recife, 23 de junho de 2009, 6 da manhã. Acordo mais cedo do que esperava e de mal humor. Acordei e não me vieram à mente os melhores dos pensamentos, coisa comum em minha vida. Aceito essa invasão bárbara do baixo astral e procuro relaxar.

Hoje faz quatro anos que meu pai faleceu. Não consigo me concentrar, meus pensamentos estão confusos, a todo instante saio e volto para o hotel numa falta de assertividade de me agoniar. Decido ir à praia de Boa Viagem para uma caminhada. Assumo que não existe essa coisa de ir a Recife e não ir à praia, mesmo que seja só para caminhar na praia, já que não quero me oferecer aos tubarões.

Caminho por alguns minutos, não aguento a tentação, me jogo nos veios de água que ficam antes dos recifes. Frequentado por pais, filhos, avós e netos, o lugar é naturalmente ruidoso e ameaçador à minha necessidade de reflexão. Afasto-me do movimento e me jogo na água. Nado um pouco e depois, sozinho e sentado no raso, fico pensando na vida. Observo o grupo de banhistas que está a uns 15 metros e não demora para que pensamentos sobre os quatro anos de falecimento do meu pai venham. “Não rememoro nenhum momento nosso numa praia, é como se não o tivéssemos tido”. Do nosso passado, revisito conflitos, críticas, culpas, cobranças, convivência, comemorações e uma camaradagem bem menor que a que merecíamos.

Olho fixamente para um ponto dos recifes e, de repente, uma garotinha que estava com duas mulheres no grupo de banhistas se aproxima e puxa assunto: “Eu tenho quatro anos, e você?" Respondo que tenho 38 anos e ela diz não saber quanto que é isso. Ela se afasta nadando e me chama para brincar: “Vem brincar comigo, vem?”. Não reagi, mas Luana é insistente e fica me rodeando, jogando água e areia em mim. Reluto no início, mas logo entendo a mensagem, decifro a senha que o viver me apresenta: “Esses quatros anos não são coincidência, abrace o que está vivo e pare de carregar o que está morto”.

Estou pensando na morte de alguém que me é muito caro e outro alguém que jamais vi, uma criança de quatro anos, e que tinha outras crianças ao lado para brincar, prefere me rodear e me tirar para brincar. Começamos a brincar de pega-pega, enquanto finjo que não consigo alcançá-la. A mãe, surpresa, se aproxima e comunica que não é da filha aquele comportamento. Deixo rolar, digo que não tem problema algum, afinal, a mensagem está copiada e o código do viver decifrado. Luana solta gargalhadas maravilhosas com nossa brincadeira.

O sol nos embala, são 10 da manhã, mas logo chega a hora de me preparar para voltar ao Rio de Janeiro. Dou um abraço apertado em Luana e digo muito obrigado. Ela só faz rir. A mãe reforça: “Moço, minha filha nunca fez isso antes”. Penso comigo: “Captei a mensagem, adorei a mensageira, tentarei nunca mais ficar de baixo astral e abraçado ao que só pede para ter o status de boa saudade”. Digo a ela: “Você não sabe o bem que ela me fez”.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Tempo e Liberdade

Rio de Janeiro, Rocha, noite, 13 de abril de 2006. Tenho estado pensativo sobre o envelhecimento. Algo não muito difícil de entender após o aniversário de trinta e cinco anos, mas que não se explica apenas por isso: o tempo passa e se anuncia de várias maneiras, reivindicando a condição de dono da situação. Ao explorar o tema com mais afinco, vejo que eu e ele sempre estivemos muito próximos, mas nossa proximidade nunca recebeu tanta ênfase. Por exemplo, um dia intui que empresas são reestruturadas, marcas são rejuvenescidas, pessoas envelhecem e morrem, mas não avancei na inquietude que gera essa intuição ou que é gerada por ela. O tempo está aí.

Mas a atual devoção ao tema tem um intuito: desenvolver e consolidar uma perspectiva mais estruturada sobre envelhecimento, banindo, automaticamente, leituras simplificadoras. Estas não podem mais continuar. Envelheço. Apesar de ser só 35 anos, o envelhecimento é uma realidade sentida, vivida por mim, não é mais um conceito ou realidade constada ao olhar o próximo.

Admito que ainda não me sinto muito à vontade para falar de maneira consistente sobre a vida – tenho medo e me sinto ignorante – mas sei que não aceito nem suporto mais leituras muito óbvias e superficiais sobre essa viagem que fazemos através dessa explosão biológica que individualmente encerramos. A vida é uma explosão biológica que me assusta conformo me conscientizo da sua dimensão ou alcance.

Reflito sobre o significado do envelhecimento, seus sinais e consequências, assim como procuro relacioná-lo com as diversas partes da minha vida. Penso nas consequências da passagem do tempo sobre minha pessoa, nos planos corporal, intelectual e espiritual. As marcas dessa passagem se manifestavam de forma isolada, agora tudo se encaixa ou mostra sua inexorável complementaridade. Alguns dos meus últimos, vacilante e infrequentes escritos trazem essas marcas. Tenho falado de precaução, contenção, saudade, esquecimento, desencanto e prudência, mas de forma contundente. Falo muito pouco sobre revoluções, sonhos, planos para criar novas realidades e a importância de correr riscos. É como se não tivesse trinta e cinco anos.

Também escrevo sobre meus estranhamentos com a vida: as coisas relativas ao viver ainda não estão como dadas para mim, totalmente decodificadas. Ainda tem muitos pontos de interrogação acenando para mim na prateleira das reflexões. Minha adaptação a tudo o que a vida encerra e representa não se dá sem momentos de angústia, ainda que novas leituras apareçam, à medida que envelheço e possa haver uma amenização nas interpretações. Lamentavelmente, são leituras menos apaixonadas, pouco carregadas de tesão e emoção inquietantes e peculiares a uma explosão. Às vezes, penso que aqueles que algum dia lerem o que tenho escrito não farão transformação alguma em suas vidas. Mas também penso que não atentarão contra as próprias vidas, pois, ao meu jeito, mostro que o prazer sobressai às angustias. Sobre o prazer, acrescento que o que mais me dói é a perspectiva de que sua maior e melhor ocorrência venham de fora dos espaços que formam minha dimensão lar. O prazer na sua expressão mais ampla.

Também não tenho feito leituras do envelhecimento relacionadas à liberdade. Estranho, pois sempre me pareceu muito sensata a ideia de que envelhecer era se libertar de coisas, medos, certezas e sentimentos que remetem à posse e percepções que nos dão uma falsa leitura do que realmente podemos nessa vida. É interessante, pois pareço estar menos aflito, mais ponderado e mais ligado ao experimentar as coisas que tenho e não em ter novas coisas para experimentar. É um sentimento que tem um grito tão forte quanto o tempo, e que toma mais propriedade quando lembro que empresas e marcas existem em dimensões virtuais e que elas valem mais quanto mais velhas ficam. O tempo vai passar e logo serei um registro livre. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sobre revoltas e sonhos

Rio de Janeiro, Rocha, noite, 18 de agosto de 2004. Não sei o que me deixa mais incomodado: a diversidade de caminhos que percorri até aqui ou a avassaladora quantidade de dicas de caminhos a seguir que vêm do meu interior.

Como sempre as dúvidas abundam em minha vida, mas agora com os detalhes de quem já passou dos trinta anos. Estou com trinta e três. As dúvidas são motivadas por razões diferentes daquelas de dezesseis anos atrás. Não tenho mais a agilidade e a audácia de um jovem de 18 anos. Continuo me sentindo espremido no mundo, mas não saio à rua à procura de uma surpresa. Também não me angustia a ausência de recursos para poder fazer as escolhas mais básicas, como era antigamente. Pressiona-me, sim, um mal-estar de quem acabou de escutar um tiroteio perto da favela da Mangueira que durou quase uma hora.

Estou assustado e incomodado no bairro do Rocha, escrevendo na cozinha do apartamento. Felizmente, ouço a MEC AM, como faço há dezesseis anos. Não me estranha chegar à constatação de que estou escrevendo na cozinha, já o fiz antes em outras cozinhas e essa não é uma das menores que tive para morar. Incomoda-me o fato dela parecer uma prisão. Assim que me sinto: prisioneiro no bairro do Rocha. Logo eu que sempre prezei o significado e o valor da liberdade e que aos dezessete anos a elegi como prioridade. Entender o significado de estar aqui e passar por isso é o que me leva a escrever. Isso aqui é muito diferente do que quis para mim e do que me lembram diariamente minhas reflexões.

Pela manhã, recebi um sinal interessante, daqueles que lá no fundo você acha que é um recado do destino. Peguei um caderno antigo para estudar e na primeira folha estava escrito, “Nunca teríamos nos revoltados, se não tivéssemos sonhado”, frase que o desconhecido dono do caderno credita a Ben Bella e a quem minha ignorância não permite reconhecer.

Engraçado é que pareço não estar me reconhecendo agora. Confesso não estar nada satisfeito com essa situação: me sentindo prisioneiro no Rocha e solitário em casa, ainda que em seu quarto durma minha filha, e que na sala assista televisão minha esposa. Estou fazendo o que gosto, escrever, mas não estou na casa e na cidade que desejo para mim. Desejo estar numa serra, longe dessa loucura urbana. Também não estou sentindo a presença das Minas Gerais, sentimento que diariamente se faz presente pelas músicas, notícias e leituras que faço e, principalmente, pelas lembranças que tenho de situações que vivi. Não estou rodeado de pessoas felizes e cantantes, na cozinha grande, comemorando as benções da vida, contando os casos das aventuras dessa longa trajetória. Casa e cozinha de janelas que, ao serem abertas, trouxessem o mundo para dentro. Não estou com meus filhos, como sempre quis que assim fossem, filhos, nem carrego no olhar a chama de quem está amando. Não tenho a sensação de que estou vivendo, mas a de que estou levando a vida, e, o que é pior, levando-a com a sensação de que aqui nunca teria chegado se não tivesse deixado de acreditar e de procurar o que sonhava.