São 9 de setembro de 2010, estou em São Paulo para rever primos
e participar de um congresso na USP. Pela primeira vez em minha vida, fui vítima
de roubo. Anteriormente, fui furtado em Belo Horizonte, em 1994.
Tudo se deu num arrastão, coisa que parece ‘exclusividade’ do
Rio de Janeiro, como sugere a incidência da mídia. Que cena: um cidadão carioca
subtraído de seus bens na terra da garoa, no estado das pessoas que, segundo
velha provocação, trabalham para o resto do Brasil poder viver. Imagens à
parte, o que sobra é a realidade: fui mais um cidadão brasileiro em São Paulo,
cidade que é a imagem e materialização do progresso bastante idolatrado por
muitos de nós, mas que na realidade é mais violenta que o Rio de Janeiro.
Havia um congresso na USP, mas o que eu mais queria era rever
Marta e Edinho, primos caros à minha história de vida e a quem eu protelava o
devido reencontro. Edinho eu não via há mais de seis anos, Marta há uns dois
anos. A possibilidade do reencontro foi o fator decisivo para viajar, dado que
estava cheio dessa coisa de fazer networking, algo artificial, porém muito
aceito nos mundos acadêmico e de negócios. Imagens do cansaço e do pessimismo
de um acadêmico altamente duvidoso da real vontade e disponibilidade dos seus
vaidosos pares para compartilhar o conhecimento que presumimos ter. Não devo
ser o único que pensa e sente que a academia é ‘mestre’ em fazer apologias a valores
que nem sempre pratica.
Findo o congresso, Edinho me pegou na USP e me levou ao seu lar,
no bairro da Lapa. Convivemos nos primeiros anos da minha adolescência, no
início dos anos 80, e desse encontro ficaram marcas significativas. Ele sempre
me chamava atenção para a necessidade de criar e produzir minha própria
história, era perseverante e disciplinado na criação da dele, mas o que me chamava
muita atenção eram seus valores e atitudes sempre serem orientados para ética,
trabalho, religião e família. Vindo de Pedro Teixeira, MG, em Seropédica
trabalhava como balconista de Supermercado para pagar os estudos. Trabalhava e
estudava bastante e nunca reclamava, estava sempre sorrindo. Eu o conheci em
uma fase difícil da minha vida e nele tive o acolhimento para, àquela época,
poder falar sobre o que me deixava apreensivo. Ele sempre me dizia: seja
humilde e tenha fé.
Em São Paulo, transformou sua vida: casado, duas filhas e
profissional bem-sucedido, colhia da boa safra que preparou por toda a vida num
esforço peculiar de sempre semear seu terreno com seus históricos valores. Respira-se
isso em sua casa e a dinâmica de sua família nos leva a sentir essa energia.
Fiquei pouco tempo por lá, mas a harmonia e ritmo que ele, Adriana e filhas
encerram é algo confortador, uma experiência muito boa. Fui chamado para
pernoitar, mas queria estar com Marta, com quem tive meus contatos mais fortes
a partir dos anos 90, época dos meus vinte e poucos anos. Trabalhamos juntos na
UFRRJ, onde fomos técnicos administrativos e dela recebi preciosas lições sobre
trabalho, estudo, espiritualidade, coragem, objetividade e otimismo. Saiu do
Rio e foi para São Paulo trabalhar, foi ser bandeirante na terra da garoa.
Preparava-me para pegar um taxi até a casa de Marta, quando Edinho
decidiu me levar até lá. Às 21:30, na rua João Dias, chegando à avenida Giovane
Gronch, porta de entrada do luxuoso bairro Morumbi, bandidos fecham o trânsito
e saqueiam os carros, aterrorizando a todos, apontando armas direto para as
cabeças. No carro, Edinho, família e eu. Preocupado com a família, sentada no
bando de trás, Edinho praticamente se prostra, demora a responder aos comandos
dos bandidos que, contrariados, exacerbam as ameaças. Tomado de espantosa
calma, respondo aos comandos dos bandidos, entrego tudo o que foi solicitado.
Foram-se pertences, dinheiro, cheques, cartões e documentos. A tensão não durou
mais que cinco minutos.
Fora de perigo e mesmo ao lado de primos, vivenciei medo,
angústia e frustração até chegar à casa de Marta. Para qualquer lugar que olhava,
tudo que já era desconhecido se tornou mais hostil. Precisando de amparo, lembrei
de que quatorze horas atrás eu beijava e abraçava fortemente minha filha e de
algo impressionante: minutos antes do incidente, Julia, filha do Edinho, pediu insistentemente
ao pai para cantar para mim a música que aprendeu na catequese:
“Vem amigo vem /Vem para entregar este coração que Deus te deu/
para amar não para odiar /Vem abre teus braços até aquele que está lá/ Vem abre
teus braços ao teu irmão ao teu amigo/Dá-lhe um empurrão/ Dá-lhe um empurrão
que de pouco a pouco ele se achega ao Senhor Nosso Senhor”.
Pedido interessante o de Júlia: seu cantar nos trouxe a calma
para enfrentar o roubo.
Na portaria do prédio em que Marta morava, paramos para elaborar
toda tensão e enfim chorar o que o susto nos impediu. Passado o pânico inicial,
Edinho e família se foram.
Depois de ter sido acolhido e confortado, e de termos realizado
que se foram os bens materiais, mas ficou a vida, Marta me surpreendeu com uma pergunta: “Se
o pior lhe tivesse ocorrido hoje, você acredita que levaria consigo a certeza
de ter honrado os encontros que teve nessa vida?”. Senti imediatamente o
impacto da pergunta e me dei conta de que o código do viver estava sutilmente embalado
por uma inusitada e profunda reflexão e exigia bastante tato na sua
decodificação.
Acompanhado de Castelhano, marido de Marta, fui prestar queixa. Embora
tudo fosse passível de reposição, não importando quanto tempo levasse, o que eu
mais ressentia do que foi subtraído eram os documentos. A frustração ainda me
faria companhia durante o longo período em que perambulamos por delegacias
próximas ao bairro Morumbi que estivessem vazias e que pudessem registrar a
ocorrência sem que isso nos custasse toda a madrugada. Enquanto espero atendimento
na 34 DP, em Francisco Morato, pensei insistentemente em meus encontros,
principalmente se nesses 39 anos de vida eu observei ou não a inerente honradez
que possuem. “Honrei meus encontros? Honro meus encontros?”. Pensei no encontro
com Maria Luiza, minha filha, no encontro que tive com sua mãe e que nos levou
a formar uma família. Pensei no encontro que tive com meus pais, irmãos, tios e
primos. Pensei no encontro com amigos, colegas de trabalho e de escola, e com
meus alunos, pessoas que precisam de conhecimento, exemplos, atenção e
orientação.
Muitos foram os encontros em minha trajetória de 39 anos e a
pergunta de Marta, além de me fazer acessar o todo simbólico que envolve um
encontro de duas pessoas numa vida, falou de uma riqueza a que somos
apresentados e que devemos honrar como condição central para fazer uma análise
mais humana e sensível dessa nossa passagem pela vida. Passagem curta, que às
vezes pode ser curtíssima, e da qual nada se leva, mas na qual podemos
diariamente carregar a leve e confortadora consciência de que foi digna,
humanizada e honrada.
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