quarta-feira, 26 de julho de 2023

Outros caminhos...outras palavras

 Em 13 de julho de 2023, fiz um apelo em rede social em uma mensagem insuspeita de comunicar um mal momento que estava passando. Felizmente, não era grave, mas algo diferente acontecia e com o poder de afetar negativamente minha potência de viver. Na mensagem eu dizia: "Gente, mande razões para eu tomar um chopp gostoso e celebrar vocês, por favor. Beberei hoje a nossa amizade. É um feito ou ideia ou bem-estar seu, alegria ativa, nada de alegria passiva, time que venceu etc.". Até às 14:00, quando finalmente captei a senha do viver implícita na situação em que me via, eu me desgastei bastante nas palavras e caminhos conhecidos, desconsiderando como podem ser oportunos outros caminhos e outras palavras.

Eu estava mal da coisa que comumente chamamos de psíquico ou alma e numa intensidade que me surpreendeu. Conheço esse mal, mas era o novo pra mim ou em mim que me deixava praticamente parado, embora não prostrado, desatento e desconcentrado. Estava fraco, sem sopro de vida, não me concentrava em nenhuma das inúmeras coisas que tinha para fazer, das obrigações profissionais ao exercício da criação literária, passando pelas rotinas que estruturam a vida. Conforme o tempo passava, eu nada fazia, mais me angustiava, mais desse mal eu sentia, até o momento em que parei de andar sem rumo pela casa e me deitei.

Curiosamente, eu não estava ansioso. Comecei o dia bem, tomei um bom café e me certifiquei do que programara na noite anterior fazer na rua antes de dar conta dos afazeres profissionais e, se sobrasse tempo, escrever. No caminho entre Nova Iguaçu e Seropédica, entretanto, comecei a sentir que algo não ia bem: cansaço, apesar de ter dormido bem e não ter pedalado ou caminhado antes; uma insistência dos olhares e pensamentos para a ocupação desordenada que se dá em Queimados, à beira da Dutra, algo que, se nada for feito, virará problema sérios nos anos seguintes; e dificuldade imensa de concentrar-me no que me dá mais prazer, a criação. Nenhuma ideia atraente ou surpreendente emergia. Comecei a questionar o que havia comigo e segui os caminhos conhecidos. Logo realizei que aquele trecho da estrada fora um mal encontro, o primeiro do dia, aliás. Um encontro que, infelizmente, se repete duas ou três vezes por semana e, como sou obsessivo, ainda não aprendi a dele me abstrair ou me desligar.

Sabedor da consequência dos bons e maus encontros sobre nossa potência de viver e de que não temos controle absoluto sobre sua ocorrência, cometi o equívoco de não acessar e acolher as sensações e sentimentos que emergiam e naturalizar o que me dizia meu organismo (sim, mente e corpo, tudo junto e misturado). Mesmo sabendo que era inseguro, escolhi buscar fora de mim o alívio: peguei o celular e liguei para pessoas que são caras para mim e que poderiam me proporcionar um bom encontro. Não tive sucesso, embora tenha conseguido falar com Allan, um grande amigo. Sem nos vermos há um bom tempo, conversamos alguns minutos, mas nada muito alvissareiro, aliás, algo difícil no Brasil, no Rio de Janeiro, e, principalmente, na UFRRJ, em Seropédica e em Paracambi, onde ele reside. Embora intuísse que precisava mudar a rota da conversa que geralmente temos e a qual muito aprecio, não consegui. Porque estava preocupado com a escolha imprudente que fizera, a atenção redobrada no trânsito não deu condições para acessar a demanda que jazia no plano intuitivo e que me levaria a falar com ele sobre o que sentia.

Em Seropédica, a natural aleatoriedade da vida na produção dos encontro somou-se aos pensamentos que traziam coisas significativas para a pauta do agora e a demanda pelo entendimento do que me ocorria ficou novamente latente. As conversas que tive não foram boas e eu não conseguia entregar coisas boas para as pessoas, meu ânimo já estava alterado. Entre uma fala e outra, lembrei-me de que no dia seguinte minha mãe e Maninho, ex-sogro e de quem muito gostava, fariam aniversário. Daí em diante entrei na rota da reflexão sobre a vida: minha mãe morrera há quarenta e um anos e dela conseguia acessar apenas uma ou outra memória; algo ficara bloqueado, não lembrava do seu rosto, de como era sua voz e de falas nossas; pensava em como como que eu conseguira passar pela vida sem ela e quais consequências aquilo gerara; Maninho – uma recente, rápida e misteriosa perda – fizera e falara coisas muito significativas para mim nos anos que convivemos, coisas que abriram um novo momento em minha vida como professor, principalmente; lembrei da nossa última fala, em 16 de junho, quando ao telefone perguntei como estava e ele me respondeu: "Tô bem não, Mestre, a coisa não tá boa pro meu lado, estou fuzilado; três dias depois ele morreu".

Sem dar conta do que planejara para resolver na rua, fui direto para casa. O reencontro com os cães, sempre um momento diferenciado, não foi tão bom, eles estavam apáticos, não fizeram a tradicional festa. Como estava estranho, não insisti nas brincadeiras. Logo realizei que era resultado das aflições vividas na noite anterior por causa dos fogos após os jogos. Assim que sentei-me para trabalhar, eles dormiram perto de mim, não demandaram afeto ou toque, apenas proximidade. Quando Rosangela chegou, ela não estava bem, fora trabalhar no sufoco, no dia anterior tivera dor de garganta e febre. Apesar de eu ter dito para ir pra casa, preferiu ficar e cuidar do básico que deixa minha vida segura e confortável. Ela também não dispunha do animo e potência que geralmente a movem e fazem com que interaja bastante comigo, sinta o quanto estou bem ou mal e se desdobre em gestos e palavras para me deixar bem. Bastante sintomático do dia, ela não fez a tradicional provocação: "quais são as novidades? Quero as novidades!"

Rosangela percebeu que eu não estava bem, tentou por atalho tocar no tema, mas ela própria não foi muito fundo. Eu sabia o que ela falaria e queria falar do surpreendente que sentia, mas não vingou nossa interação. Deu-se então um momento de preciosa iluminação: como falar para ela que não estou bem, tendo eu uma vida material e profissional muito boa? Mesmo sendo ela a pessoa que mais sabe de mim, pensei no sacrifício que fazia e no que pensaria se ouvisse de mim naqueles instantes que estava angustiado, que não conseguia fazer as coisas e não entendia por que sentia aquilo. 

Cedi a um escrúpulo me visita todas as vez que compartilho com ela meus estranhamentos com a vida, minha inquietude e constante desejo de mudanças. Um escrúpulo que é quase regra: em situações onde as diferenças entre as vidas que se tem são gritantes, sinto-me mal quando digo que algo não está bem comigo; a discrepância das realidades econômicas e materiais entre mim e o outro ganha uma legitimidade absurda e deslegitima qualquer relato sobre mal-estar psíquico ou da alma; então fico me avaliando como preciosista ou o que chora de barriga cheia. O sono chegou e cedi à sua força.

O dia estava quente – outro fator que objetivamente afeta a qualidade de um dia meu – e o sono não prosperou. Um banho gelado promoveu algumas mudanças na dinâmica em que me encontrava, inclusive me despertou a vontade de beber à noite, um claro movimento de desligamento e não de enfrentamento do problema. Mais esperto e revigorado, lembrei-me da necessidade de enfrentamento e que poderia manter contato com a terapeuta. Optei por buscar sozinho uma compreensão do que acontecia e um bom encaminhamento sobre como lidar com isso sem preciosa ajuda que a ela recorreria, se piorasse.

Após o almoço, enquanto vasculhava rede social, vi uma postagem sobre os hormônios da felicidade e me concentrei na informação de que comemorar as coisas ajuda na liberação deles, e isso mudou toda dinâmica. Em seguida à leitura, lembrei-me de que um amigo não estava numa fase muito boa e ainda não tinha perguntando como ele estava naquele dia. Ato contínuo, enviei uma pequena e informal mensagem, sem cumprimentos: "mande as razões para eu tomar um chopp gostoso hoje, por favor". Embora fragilizado, suas palavras me alertaram para a necessidade de acessar outras palavras: "Consegui sair de casa! Fiz algumas coisas, mas agora só quero dormir". 

A luta dele é mais complexa que a minha e sua resposta me alegrou. A troca de mensagem funcionou como senha para desbloquear ideias que, se não levaram à compreensão e elaboração do que sentia, responderam pela melhoria do dia. Claro ficou pra mim que, se tivesse conseguido falar para alguém do que sentia, certamente haveria pouca reação, pois muitas pessoas já confessaram ver em mim alguém que não tem problemas – que loucura isso – ou que, se os tem, não deva ser nada demais. Nesta luta diária pela sobrevivência, e considerando as enormes discrepâncias sociais e econômicas observadas, praticamente criamos um protocolo informal de que pessoas remediadas não têm tantas necessidades afetivas não atendidas e, portanto, não precisam reparação ou reparentalização, principalmente fora das salas dos psicólogos e/ou psicanalistas. Foi então que resolvi aumentar minha potência de viver acessando outro caminho e outras palavras.

As razões que as pessoas me mandaram para celebrar realizações ou feitos delas foram marcantes:
  • Você é um dos grandes responsáveis por estar no mestrado.
  • Quitei um financiamento.
  • Domingo tenho dois espetáculos maravilhosos!!!!
  • Minha vida profissional está maravilhosa, tendendo a melhorar.
  • Voltei a tocar violão e a cantar...e todas as noites eu danço, por gratidão, por ter me libertado de um relacionamento tóxico.
  • Estou voltando a ter uma vida “normal” depois de 10 meses doente em casa.
  • A amizade já é um feito para ser celebrada, não acha?
  • Poder estar aqui escrevendo e estar preparando encontro de amigos no próximo domingo (grande parte de ruralinos).
  • Comemore nossa amizade, dos tempos em que nossa realidade hoje eram nossos sonhos compartilhados enquanto alunos, professores no ICHS e no UBM. comemore, meu amigo querido, nossa luta foi dura.
  • Vamos brindar nossa existência.
Cumpri a promessa, tomei um chopp e celebrei a experiência única e transformadora do nosso viver que temos ao acessar outros caminhos e outras palavras. Não foi uma apropriada e efetiva elaboração do que eu sentia no dia, mas foi apaziguador e alvissareiro (re)acessar o potencial terapêutico que a experiência da alteridade pode prover.