quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Uma Rural todinha em mim

A Rural faz 111 anos. Recebo algumas perguntas para expressar minha relação com ela. Vejo-me diante do desafio de em poucas palavras e à queima roupa falar dos sentimentos e do que me marca na experiência de ruralino, do que a UFRRJ representa para mim e da atual percepção que tenho dela.

Aceito o desafio, falo e ao mesmo tempo ouço imaginariamente Um girassol da cor do seu cabelo, de Lo Borges. A sensação é a mesma de quando ouvi essa música pela primeira vez, lá na casa Rosada, graças ao amigo Fernando Duque: o corpo ficou todo arrepiado no encontro entre mim, a música e o vento que só venta na Rural.

Falar do que a Rural representa para mim não é fácil, dá choro e risadas em proporções absurdas. São 50 anos de idade e 50 anos de Rural. Tirando pouquíssimos anos em que estive distante daqui, todos os outros anos são Rural, são ruralinos. A Rural é definitiva em tudo o que me constitui: afetos, memórias, encontros, valores e sonhos.

O que falar dos sentimentos? Lembro que sou filho de funcionário e que residi aqui dentro, que estudei na escolinha do IZ quando ela era de fato no IZ, que fui aluno do CTUR, duas vezes aluno de graduação e uma de doutorado, que fui técnico-administrativo e estou docente. São muitas as emoções e sentimentos envolvidos na minha relação com a Rural. A Rural atravessa e marca definitivamente minha história.
 
As ligações são muitas e descrever meus sentimentos de ruralino não é tarefa fácil. É tudo muito denso e tenso nessa relação, são muitas memórias, desde a do momento de criança em que comi ao lado do meu pai no bandejão onde ele um dia foi garçom até o momento em que você docente assiste lá de cima a alegria dos formandos e das famílias na formatura, passando por uma cirurgia no antigo hospital no IF (ou por andar num ônibus dirigido pelo senhor Modesto, por estar conversando com o João, porteiro do Clube Social, por estagiar no plantio do arroz e na ranicultura, por ser do CPD e particpar da informatização e da implantação da internet na Rural, por plantar árvores ou hortaliças no CTUR, por ter vivido amores aqui, por ter conhecido pessoas sensacionais.. a lista é grande). Ah, sem falar no sentimento de ciúme do meu pai, que amava e vivia a Rural numa proporção assustadora.

É tanta coisa que me marca, minha memória ilustra as diferentes posições ou lugares em que estive por aqui. Mas tem algo que deixou marcas profundas. Meu pai, o saudoso Antônio Goulart ou Mineiro, trabalhou nos alojamentos e, nas datas de natal e ano novo, eu fazia-lhe companhia para levar alimentos e cumprimentos aos alunos que não tinham recursos. Ele fazia pequenas ceias, distribuía abraços e palavras de apoio, convidava as pessoas para irem lá para casa. Minha casa sempre foi cheia de pessoas da Rural, elas passavam natal, ano-novo, aniversários e outras datas conosco. Vi meu pai chorar abraçados a muitos nos seus piores ou melhores momentos, como no dia, em plena ditadura, em que ele chegou em casa após ser testemunha de defesa de um aluno preso por supostos atos criminosos; ele chegou e começou a chorar: chorou pela injustiça, pelo mal que faziam ao aluno -- que estava em péssimo estado -- e chorou porque achava que o aluno morreria e não podia fazer nada. Meu pai também tinha uma memória impressionante, conhecia todos pelo nome e sabia os cursos que faziam, os alojamentos em que viviam e das cidades de onde vinham; várias foram as vezes em que visitávamos as famílias de alunos e ex-alunos nas férias em suas cidades de origem. Meu pai acolhia, ajudava e orientava como podia as pessoas e exigia que eu respeitasse alunos, professores e técnicos, sempre ilustrava as qualidades e esforços que faziam para levar suas vidas.
 
Passados os anos, que percepções tenho da UFRRJ? Sem exageros, não tenho apenas percepções da Rural, como se estas fossem impressões que ficam após um encontro involuntário ou passageiro. Tenho vivência dela, nela, com ela e por ela. Minha experiência com a Rural é involuntária, pois fui filho de funcionário, mas é principalmente voluntária, pois nela fiquei, nela estou. A influência da Rural na minha estrutura identitária e produção da minha subjetividade é da ordem do inexorável e do indelével, é punk, submete-se apenas às artimanhas da demência. É tanta coisa! Conheço o que o aluno de secundário, graduação e pós-graduação experimenta. Conheço o que o morador experimenta, o que o técnico-administrativo experimenta, que o docente experimenta (dei aula em todos os campus) e o que aquele que tem cargo ou função de coordenação ou executiva experimenta.

Sim, hoje tenho uma visão diferenciada da UFRRJ, pois preciso transcender os afetos mais ingênuos e ter em mente que ela é um organismo complexo: é uma universidade, uma cidade e uma organização ao mesmo tempo. E isso exige modelo de gestão ou de lida e esquemas de observação e interpretação diferenciados. Se chama UFRRJ, mas ela é universidade nos institutos, campus e na biblioteca, onde se produz produtos e serviços de alto valor agregado, como ensino, pesquisa e extensão; ela é inteirinha uma cidade e todos os desafios de se produzir uma vida coletiva; e ela é uma organização, um nexo de funções e recursos que existe para abastecer a si própria e à universidade e à cidade do que é fundamental à existência. É todinha Rural.

A Rural é única, imensa em todos os sentidos e desafiadora. E ela, de uma maneira bem peculiar e figurada, está toda em mim. Lamento, mas essa história não cabe aqui.