segunda-feira, 25 de julho de 2016

Mudar a rota do pensamento na estrada da vida


Rio de Janeiro, 22 de julho de 2016. Estava em Vila Isabel, no estacionamento do colégio Nossa Senhora de Lourdes esperando Malu sair da escola para passarmos o final de semana juntos. Havia um mês que não ficávamos juntos.

Após lamentar uma vez mais a triste, feia e bagunçada paisagem que toma o pé do Morro da Mangueira, comecei a pensar no peso que lamentos e lamúrias têm sobre meu ânimo e sobre a condução dos dias, planos e projetos pessoais. Fico preso a este tipo de pensamento, lamentando por que as coisas não são diferentes nas inúmeras paisagens que formam o Rio de Janeiro que não é maravilhoso, a cidade esquecida, abandonada.

Comecei a pensar em não mais ficar preso a esses pensamentos, pois eles não mudam o resultado final do jogo, apenas o influenciam negativamente. Lamentos e lamúrias não mudam a realidade, apenas aprisionam o nosso pensamento em instantes negativos. Eu tinha que mudar, estava definido. Minha filha saiu de sala. Depois de pegarmos sua mala em casa, teríamos alguns quilômetros até Seropédica e eu uma ótima chance para verificar o aprendizado.

A lição não foi totalmente internalizada. Saindo do Rio, peguei-me novamente na armadilha que propícia os pensamentos de lamento e lamúrias: "Devo ir pela Av. Brasil ou pela Linha Vermelha? Devo pegar a Av. Brasil direto ou ir pela Nova Dutra? Se for pela Nova Dutra, pista lateral ou do meio? Qual é a melhor opção para mim ou onde perco menos hoje, sexta-feira?". Minutos tentando inutilmente jogar com a sorte. Eram 15 horas e preparava-me para sair de São Cristóvão. Não bastassem impostos e demais taxas, paguei uma vez mais esta inútil taxa que todos pagam em sua carência por uma cidade olímpica que, pelo menos, consiga informar seus cidadãos sobre o caminho onde perderão menos.

Optei pela Linha Vermelha e Rodovia Nova Dutra. Seguiu o trânsito em bom estado até o final da Linha Vermelha, faltando pouco para chegar à rodovia. "Volume de tráfego, acidente, enguiço, blitz, tiroteio, o que explicava aquela retenção?", pensei. Pensamentos de lamento e lamúrias dominaram: “Como podem deixar que essas pessoas vivam dessa maneira e ao lado da pista expressa?” Quanto sujeira, bagunça, ajudando a enfeiar a paisagem e afetar ainda mais a autoestima dessas pessoas. “E se afastassem a faixa de casas mais uns 20 metros e fizessem ciclovia e arborização, dando a eles mais qualidade de vida?”, continuavam rápidos os pensamentos, enquanto o trânsito fluía bem devagar .

Pegar uma linha expressa no Rio é desafiar a ansiedade em um contexto de poucas opções de mudança de direção. As vias expressas são praticamente sufocadas pela cidade esquecida, cidade não maravilhosa: há poucas saídas e as que têm não são aconselháveis de se fazer uso. Não controlei os pensamentos, paguei mais das inúteis taxas, desse pedágio invisível que todo lamuriador paga pela estrada da vida. Lentamente chegamos à rodovia Nova Dutra. “Pego a pista do meio ou a lateral?”, pensei. Optei pela do meio, aparentemente fluindo. Parei logo a frente. Retenção.

Pensamentos, pensamentos e mais pensamentos, lamentando a escolha pela pista e o triste destino da paisagem de São João do Meriti, Mesquita e Belford Roxo. Peguei-me novamente pagando taxas desnecessárias, certificando que não aprendi nada do que realizei horas atrás no estacionamento do colégio Nossa Senhora de Lourdes.

Eu sei que preciso mudar, mas engarrafamentos conseguem afetar-me certeiramente. "Preciso mudar", disse-me uma vez mais.

Cansado, com pouca energia mental para converter em mais taxas para ser bobo, contemplei Malu, minha linda filha. O trânsito estava parado e estávamos sem conversar fazia alguns bons minutos. Ela focada no celular, eu na direção do carro e dos pensamentos e reflexões. Tive ali a grande sacada, o código para viver bem estava claro e fácil de decifrar: que desperdício de vida em meio a um dos grandes espetáculos de desperdício de vida na modernidade: pai e filha parados num engarrafamento, calados, sem trocar, sem fazer fluir as energias positivas que os deixariam mais felizes.

Mudei a direção do pensamento, comecei a contemplar aquela criatura de 15 anos totalmente absorta em seu celular. Realizei que, ao invés de pagar taxas inúteis, o que eu deveria fazer era curtir minha filha, conversar com ela, aproveitar o pouco tempo que temos para estar juntos.

Estávamos novamente seguindo juntos por uma estrada da vida. Fazemos isso há quase treze anos. Nesse exercício prazeroso de pensar, olhei para o retrovisor e voltei àqueles anos em que ela estaria sentada numa cadeirinha no banco de trás, sorrindo para mim ou dormindo ou olhando para todos os lados e perguntando se faltava muito ou se já tinha chegado. Voltei ao tempo em que, alguns anos mais velha, ela estaria ‘sentada na cadeira do capitão da nave’, dando ordens para que eu, o atirador, abatesse as naves inimigas em que se transformavam os caminhões e ônibus a nossa frente. Além de dirigir, eu era um dedicado soldado. Voltei ao tempo em que ela já tinha idade para ir no banco do carona e ia cuidando das trilhas musicais das aventuras que sempre foram nossas viagens. Foi ali que aprendemos a compartilhar a paixão por Beatles e MPB. Era ela quem escolhia o que ouviríamos e pegamos muito mais trânsito livre do que engarrafado.

O tempo passou e estávamos parados na Nova Dutra, em Mesquita, sem conversar e eu, já chorando, a contemplá-la. Toca Hotel Califórnia, do Eagles, ela canta inteira e em bom inglês, sem parar de teclar o celular. O trânsito segue devagar. Minutos depois, ela começa a cantar Après un Revê, em límpido francês, preparando-se para a aula de canto da semana seguinte. Após receber pelo celular a notícia de um atentado em Munique, Alemanha, ela volta-se para mim e começa a falar dos sentimentos que a visitam com as ações do Estado Islâmico, a violência no Rio de Janeiro e preocupação com a política brasileira e o governo golpista de Temer, em palavras delas. Em poucos minutos falamos disso tudo. Açodada com o colégio, onde estuda de 7:10 às 13:30, confessa para pra mim que está preocupada, cansada e com medo.

Olhei para o carro a minha frente e realizei: a menina cresceu; Malu está virando uma linda e inteligente mulher, e tem todos os atributos para se tornar um ser humano interessante e contribuir para um mundo melhor.

Não posso deixar que ela pague as taxas, esses pedágios desnecessários que paguei até aqui e que tanto pesaram em minha alegria e respostas aos desafios da vida. Se não me impediram de ter uma vida muito boa, tal estúpido esforço fiscal me impediu de torná-la ainda melhor. Ela aprendeu o hábito de ficar presa em lamentos, em ficar lamuriando, de pensar em como as coisas poderiam ser diferentes, esquecendo-se de pensar e fazer coisas para mudar o jogo enquanto ele ocorre e para tornar a vida que ainda temos para viver mais interessante. Parabenizei-a pela maturidade e relevância dos pensamentos, procurei passar para ela uma visão mais positiva do futuro, de que o tempo dela é diferente do meu e que sua geração tem mais recursos para fazer as coisas acontecerem. Falei das habilidades e competências que ela está desenvolvendo e que vão ajudar no seu desafio.

A conversa mudou de tom, ganhou outro paladar: minha grande companheira de viagem, a pessoa com quem mais viajei nesta vida, está com quinze anos e tem novos ingredientes a colocar na mistura que nos alimenta pelas estradas e na estrada da vida.

Mudar a direção dos meus pensamentos fez toda diferença. Fiz de tudo para tornar agradáveis nossos parcos momentos. As opções que fiz na vida fizeram com que eu tivesse menos tempo com ela e, ao invés de lamentar ou desperdiçar meu tempo com pensamentos que não mudam o resultado final do jogo, eu preciso pensar e fazer coisas que tornem nossos momentos mais interessantes, ainda que em engarrafamentos. Pois a vida, sob um ângulo mais prático, não é muito mais que uma rica coleção de momentos a serem experimentados durante as escolhas que fazemos de caminhos a percorrer, estradas a seguir.