Rio de Janeiro, 22 de julho de 2016. Estava em Vila Isabel, no estacionamento do colégio Nossa Senhora de Lourdes esperando Malu sair da escola para passarmos o final de semana juntos. Havia um mês que não ficávamos juntos.
Após lamentar uma vez mais a
triste, feia e bagunçada paisagem que toma o pé do Morro da Mangueira, comecei
a pensar no peso que lamentos e lamúrias têm sobre meu ânimo e sobre
a condução dos dias, planos e projetos pessoais. Fico preso a este tipo de
pensamento, lamentando por que as coisas não são diferentes nas inúmeras paisagens
que formam o Rio de Janeiro que não é maravilhoso, a cidade esquecida,
abandonada.
Comecei a pensar em não mais
ficar preso a esses pensamentos, pois eles não mudam o resultado final do jogo,
apenas o influenciam negativamente. Lamentos e lamúrias não mudam a realidade,
apenas aprisionam o nosso pensamento em instantes negativos. Eu tinha que
mudar, estava definido. Minha filha saiu de sala. Depois de pegarmos sua mala
em casa, teríamos alguns quilômetros até Seropédica e eu uma ótima chance para verificar o aprendizado.
A lição não foi totalmente internalizada.
Saindo do Rio, peguei-me novamente na armadilha que propícia os pensamentos de
lamento e lamúrias: "Devo ir pela Av. Brasil ou pela Linha Vermelha? Devo pegar a
Av. Brasil direto ou ir pela Nova Dutra? Se for pela Nova Dutra, pista lateral
ou do meio? Qual é a melhor opção para mim ou onde perco menos hoje,
sexta-feira?". Minutos tentando inutilmente jogar com a sorte. Eram 15 horas e preparava-me
para sair de São Cristóvão. Não bastassem impostos e demais taxas, paguei uma
vez mais esta inútil taxa que todos pagam em sua carência por uma cidade
olímpica que, pelo menos, consiga informar seus cidadãos sobre o caminho onde perderão menos.
Optei pela Linha Vermelha e
Rodovia Nova Dutra. Seguiu o trânsito em bom estado até o final da Linha Vermelha,
faltando pouco para chegar à rodovia. "Volume de tráfego, acidente, enguiço,
blitz, tiroteio, o que explicava aquela retenção?", pensei. Pensamentos de lamento e
lamúrias dominaram: “Como podem deixar que essas pessoas vivam dessa maneira e ao
lado da pista expressa?” Quanto sujeira, bagunça, ajudando a enfeiar a paisagem
e afetar ainda mais a autoestima dessas pessoas. “E se afastassem a faixa de
casas mais uns 20 metros e fizessem ciclovia e arborização, dando a eles mais
qualidade de vida?”, continuavam rápidos os pensamentos, enquanto o trânsito fluía bem
devagar .
Pegar uma linha expressa no Rio é desafiar a ansiedade em um
contexto de poucas opções de mudança de direção. As vias expressas são praticamente
sufocadas pela cidade esquecida, cidade não maravilhosa: há poucas saídas e as que têm não são aconselháveis
de se fazer uso. Não controlei os pensamentos, paguei mais das inúteis taxas, desse pedágio invisível que todo lamuriador paga pela estrada da vida. Lentamente chegamos à rodovia Nova Dutra. “Pego a pista do meio ou a lateral?”,
pensei. Optei pela do meio, aparentemente fluindo. Parei logo a frente. Retenção.
Pensamentos, pensamentos e mais
pensamentos, lamentando a escolha pela pista e o triste destino da paisagem de São João do
Meriti, Mesquita e Belford Roxo. Peguei-me novamente pagando taxas
desnecessárias, certificando que não aprendi nada do que realizei horas atrás no
estacionamento do colégio Nossa Senhora de Lourdes.
Eu sei que preciso mudar, mas engarrafamentos conseguem afetar-me certeiramente. "Preciso mudar", disse-me uma vez mais.
Eu sei que preciso mudar, mas engarrafamentos conseguem afetar-me certeiramente. "Preciso mudar", disse-me uma vez mais.
Cansado, com pouca energia mental para converter em mais taxas
para ser bobo, contemplei Malu, minha linda filha. O trânsito estava parado e estávamos
sem conversar fazia alguns bons minutos. Ela focada no celular, eu na
direção do carro e dos pensamentos e reflexões. Tive ali a grande sacada, o código para viver bem estava claro e fácil de
decifrar: que desperdício de vida em meio a um dos grandes espetáculos de desperdício de vida na
modernidade: pai e filha parados num engarrafamento, calados, sem trocar, sem fazer fluir as energias positivas que os deixariam mais felizes.
Mudei a direção do pensamento, comecei a contemplar aquela
criatura de 15 anos totalmente absorta em seu celular. Realizei que, ao invés de
pagar taxas inúteis, o que eu deveria fazer era curtir minha
filha, conversar com ela, aproveitar o pouco tempo que temos para estar
juntos.
Estávamos novamente seguindo juntos por uma estrada da vida.
Fazemos isso há quase treze anos. Nesse exercício prazeroso de pensar, olhei
para o retrovisor e voltei àqueles anos em que ela estaria sentada numa
cadeirinha no banco de trás, sorrindo para mim ou dormindo ou olhando para todos os
lados e perguntando se faltava muito ou se já tinha chegado. Voltei ao tempo em que, alguns anos mais
velha, ela estaria ‘sentada na cadeira do capitão da nave’, dando ordens para
que eu, o atirador, abatesse as naves inimigas em que se transformavam os
caminhões e ônibus a nossa frente. Além de dirigir, eu era um dedicado soldado. Voltei
ao tempo em que ela já tinha idade para ir no banco do carona e ia cuidando das
trilhas musicais das aventuras que sempre foram nossas viagens. Foi ali que aprendemos
a compartilhar a paixão por Beatles e MPB. Era ela quem escolhia o que ouviríamos e pegamos muito mais trânsito livre do que engarrafado.
O tempo passou e estávamos parados na Nova Dutra, em
Mesquita, sem conversar e eu, já chorando, a contemplá-la. Toca Hotel Califórnia,
do Eagles, ela canta inteira e em bom inglês, sem parar de teclar o celular. O
trânsito segue devagar. Minutos depois, ela começa a cantar Après un Revê, em límpido francês,
preparando-se para a aula de canto da semana seguinte. Após receber pelo celular a notícia de um
atentado em Munique, Alemanha, ela volta-se para mim e começa a falar dos
sentimentos que a visitam com as ações do Estado Islâmico, a violência no Rio
de Janeiro e preocupação com a política brasileira e o governo golpista de
Temer, em palavras delas. Em poucos minutos falamos disso tudo. Açodada com o colégio, onde estuda
de 7:10 às 13:30, confessa para pra mim que está preocupada, cansada e com
medo.
Olhei para o carro a minha frente
e realizei: a menina cresceu; Malu está virando uma linda e inteligente mulher,
e tem todos os atributos para se tornar um ser humano interessante e
contribuir para um mundo melhor.
Não posso deixar que ela pague as
taxas, esses pedágios desnecessários que paguei até aqui e que tanto pesaram em minha alegria e respostas aos
desafios da vida. Se não me impediram de ter uma vida muito boa, tal estúpido esforço
fiscal me impediu de torná-la ainda melhor. Ela aprendeu o hábito de ficar
presa em lamentos, em ficar lamuriando, de pensar em como as coisas poderiam ser
diferentes, esquecendo-se de pensar e fazer coisas para mudar o jogo enquanto ele ocorre e para tornar a vida que
ainda temos para viver mais interessante. Parabenizei-a pela maturidade e relevância dos pensamentos, procurei passar para ela uma visão mais
positiva do futuro, de que o tempo dela é diferente do meu e que sua geração tem
mais recursos para fazer as coisas acontecerem. Falei das habilidades e competências
que ela está desenvolvendo e que vão ajudar no seu desafio.
A conversa mudou de tom, ganhou outro paladar: minha grande companheira de viagem, a pessoa com quem mais viajei nesta vida, está com quinze anos e tem novos ingredientes a colocar na mistura que nos alimenta pelas estradas e na estrada da vida.
A conversa mudou de tom, ganhou outro paladar: minha grande companheira de viagem, a pessoa com quem mais viajei nesta vida, está com quinze anos e tem novos ingredientes a colocar na mistura que nos alimenta pelas estradas e na estrada da vida.
Mudar a direção dos meus pensamentos fez toda diferença. Fiz
de tudo para tornar agradáveis nossos parcos momentos. As opções que fiz na
vida fizeram com que eu tivesse menos tempo com ela e, ao invés de lamentar ou desperdiçar
meu tempo com pensamentos que não mudam o resultado final do jogo, eu preciso
pensar e fazer coisas que tornem nossos momentos mais interessantes, ainda que
em engarrafamentos. Pois a vida, sob um ângulo mais prático, não é muito mais
que uma rica coleção de momentos a serem experimentados durante as escolhas que
fazemos de caminhos a percorrer, estradas a seguir.
Também fico triste com a situação das pessoas que vivem às margens das rodovias. E com tudo que é negligenciado em relação ao Rio de Janeiro.
ResponderExcluirQuanto aos que gostamos, temos mesmo de aproveitar cada momento, cada precioso momento.
Abçs,
Mariangela