Osasco, 31 de Julho de 1998, 6:00 da manhã. Acabo de vivenciar um importante momento em minha vida, uma densa experiência que começou ontem, as 23:00 horas, dentro de um ônibus, na rodoviária do Rio de Janeiro, e terminou há pouco, aqui em Osasco, numa estação de trem. Mesmo cansado, escrevo para não perder a vividez de tudo o que me foi falado nas sete horas de uma conversa que virou um monólogo.
Ouvi por quase sete horas, calma e atenciosamente, uma pessoa que, ao ver-me posicionando a bagagem, começou a puxar assunto. Eu poderia tê-la evitado, justificando um merecido descanso, mas o rumo que a prosa tomava mostrava-me, por meio de palavras e construções frasais sofríveis, mas tão felizmente proferidas, novos ângulos de observação dessa viagem que faço pela vida e mesmo de como devo conduzi-la. Foi assim que encontrei no caminho, na condução, respostas para muitas das apreensões que faziam de São Paulo o destino ideal para a sua solução.
No corredor, ao meu lado, estava o cearense Valdemar, da cidade de Viçosa do Ceará, 25 anos, que assistia ao meu embarque. Sem nunca ter-me visto, puxou conversa. Falou sobre o tempo, a viagem, mas logo começou a falar dele próprio, abrindo os capítulos e páginas do livro de sua vida, de maneira que, acredito, só os brasileiros sabem fazer. Expansivo, como a maioria dos cearenses que conheço, contou-me sua história durante todo o trajeto, passando pela rodoviária do Tietê até a estação Comandante Sampaio, em Osasco, onde desembarquei.
Sua vida é um constante vai e vem entre Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro. Nessa correria construiu um lar, em Viçosa do Ceará, mas não se adequou. Em são Paulo, um irmão. No Rio, uma irmã. No nordeste, a mãe, esposa, filha, e a barraquinha de camelô que montou em uma das várias vezes que, nos últimos oito anos, trocou o Rio de Janeiro pelo Ceará em busca de adequação. Não falou de outros irmãos ou da figura do pai.
Não estudou. Ontem ele deixava o Rio de Janeiro para viver em São Paulo. Balconista em um bar, no bairro do Estácio, fugia da semana de trabalho que vai de segunda a segunda, do salário de 200 reais e do quartinho que lá tem para viver. Ia fichar numa empresa de construção civil, em um bico arrumado por sua cunhada. Voltava para a cidade aonde chegou há doze anos, fugindo da vida difícil que levava no nordeste. Voltava para a cidade que deixou há oito anos para se aventurar pelo Rio de Janeiro. Voltava para a cidade onde não cabia quando tinha 17 anos de idade. Simplesmente não se adequou em São Paulo. Para explicar sua sorte ou escolhas que fez, o vai e vem de sua vida, ele simplesmente dizia: “não me adeqüei”, “eu não cabia ali”.
Não se adequou no Ceará e ainda por cima gastou com mulheres e bebedeiras parte do que ganhou, confissão que misturava arrependimento com o sorriso que só os melhores oportunistas sabem soltar. Ainda assim conseguiu juntar dinheiro para poder construir seu lar, no Ceará, enviando todo mês parte do seu salário de 200 Reais. Nem mesmo as desventuras com as mulheres do Rio de Janeiro, frustração fortemente enfatizada, o impediram de atingir sua meta: construir sua casa, seu lar. Poderia ser cozinheiro, mas não agüentou; foi balconista, mas não se adequou a rotina de segunda a segunda. Agora vai tentar ser pedreiro e, se não der certo, vai tentar ser outra coisa, até se adequar.
Voltava, mas ainda falava do mundo a ser descoberto e de trazer a família para São Paulo com a mesma facilidade com que falava das meninas que namorou em Carapicuiba anos atrás. Os olhos brilhavam quando falava daquele mundo chamado cidade, sua fala empolgada não cedia as horas que passavam. No metrô, sacou de um álbum e mostrou em fotos a família, lar, parentes, amigos e lugares de que tanto falou na viagem. Vi as faces das pessoas que compõem o mundo de Valdemar. Em nenhum momento, porém, falou de sonhos. Em nenhum momento falamos do amanhã. As 5:15 da manhã nos despedimos na estação Comandante Sampaio, em Osasco. Ele prosseguiu até a estação Jandira, seu novo-velho destino.
Do Rio até Osasco não falei a meu respeito. Valdemar tomou a palavra e com ela ficou até o fim, conduzindo nosso encontro para bem além do alcance da visão e do espaço demarcado pelo ônibus, vagões e estações. Sua trajetória de vida foi o centro das atenções. Ao seu jeito, fez-me visitar, em imagens, as paisagens que me descrevia de Viçosa do Ceará, Carapicuíba e do Estácio. A única coisa que nos aproximava era a nacionalidade, no mais somos duas pessoas totalmente diferentes, com oportunidades que diferem em quantidade e qualidade. Encerrávamos histórias, até aquele presente momento, totalmente distintas. Coincidentemente, uma vez na vida, seguimos a mesma direção, pegamos as mesmas conduções, e tínhamos a mesma meta de mudar de vida.
Ao lado de Valdemar viajava eu: uma pessoa de 27 anos, pós-graduada, que procura transformar a própria vida. Inquieto, extremamente insatisfeito, acredito não merecer o que tenho vivido. Estou em São Paulo em busca de reconhecimento profissional, recompensa econômica e de um trabalho que seja criativo e desafiador. Para tanto deixei de lado um trabalho que não me desafia ou empolga. Sou alguém que, acima de tudo, carrego comigo um grande estranhamento em relação a vida e tudo o que se me apresenta enquanto passo por ela. O que para mim é estranhamento, para Valdemar é questão de adequação.
Mas a sorte ou escolha de Valdemar, o que se apresenta para ele ou o que ele vai a procura, subtrai muito da importância que minhas inquietações tem. Perto de Valdemar, e da sua sorte, não passo de uma excrescência, de uma improdutiva reclamação ambulante, perambulando pelo mundo de opções que a vida apresenta, sem ao menos dar-me conta de que sou um privilegiado. Sequer levo na face o brilho que deveria ser peculiar, ou mesmo obrigatório, a quem teve as oportunidades que tive e tenho. Minha fala não empolga, nem transcendo pontuais dificuldades que tenho para levar empolgação ao trabalho que tenho, a família remediada que me acolhe, aos amigos que possuo, e a residência confortável que me abriga na Tijuca.
Há muita diferença entre sair do Nordeste ou do Rio de Janeiro para tentar a sorte em São Paulo. Fato visível a qualquer um que, por ventura, fixe olhares e ouvidos as figuras e paisagens que nos apresenta a Central do Brasil, lá no Rio de Janeiro. Mas quis eu, dessa maneira e a este custo, vivenciar essa diferença. Apesar de não ter o controle sobre como será o futuro, o que as condições de vida que se me apresentam reclamam de mim é planejamento, escolha estruturada, não sorte, como se a vida fosse um jogo de azar. Foi de uma ironia sem qualquer legitimidade o pelo menos parecer que eu e Valdemar somos passageiros da mesma agonia. A vida apenas nos colocou na mesma rota. E ela própria, dando a ele a palavra, mostrou que nossas partidas e destinos são bem diferentes. Ainda que nesta vida ele busque adequação e eu a siga amplificando, desnecessariamente, dores que maculam todo e justo estranhamento que todo ser humano venha ter na vida.
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