Noite de 26 de junho de 2019, sala 2, Instituto de Educação, UFRRJ.
Estou assistindo a mais uma aula na maratona para me tornar um psicólogo, um
plano antigo e que aos poucos e com muita luta vai se materializando.
Estou no oitavo período e assisto aula da disciplina Psicologia
e educação: conexões e diálogos, ministrada pela querida e admirada Rosa
Cristina Monteiro. Embora seja uma disciplina optativa, Rosa confere a ela a
devida importância e suas aulas, sem exceção, têm sido marcantes para mim e
certamente para a maioria dos colegas. Estou cansado da jornada que começara às
8 da manhã e sigo à aula sem saber que em poucos minutos eu viveria outro momento
significativo nessa minha jornada pela vida.
Rosa nos surpreende solicitando que façamos uma narrativa
sobre uma situação bem específica: temos que desenvolver o “eu, professor”, uma
narrativa em primeira pessoa. Ela se baseia na teoria dos atos de significação,
de Jerome Bruner. Como aprendido em sala de aula, procuramos significar o mundo
(mente criadora de significados) e nele agimos em função dos significados e
sentidos. A narrativa é uma fonte crítica para o entendimento dos significados
ou sentidos que criamos, e a narrativa de si mesmo, dizia Rosa, é um modo de
consolidar sua experiência, torná-la consciente e, na medida do possível,
ampliar ainda mais o campo da consciência.
Rosa não queria captar as representações desse professor que
muitos ali ainda o serão, seu objetivo estava no labor individual para
construção do caminho que os alunos estão seguindo para formaram-se e obter o
grau de licenciado, queria extrair os significados implicados no emergir do
futuro professor. Como nos implicamos na construção desse professor? Tínhamos
que ir além da representação para encontrar o sentido de ser professor. Teoricamente,
estamos em uma estação próxima à Gare no processo de constituição dessa
identidade.
No momento em que recebo a instrução da tarefa começa um
grande desafio para mim: na corrida para ser psicólogo, dou-me conta de que
preciso falar do professor que sou e justamente numa das salas onde, há 28
anos, começou minha corrida para ser administrador, profissional de marketing,
homem de mercado. Uma complicada questão de construção identitária reaparece,
senta na cadeira ao lado e me cobra atenção, puxa assunto.
Pensando em como construir a narrativa, dado que nos foi
facultado certa criatividade para fazê-lo, dou-me conta do quanto sou dividido
nos meus desejos e que isso é algo com o qual ainda não aprendi a conviver, do desafio de agora ter que falar do professor cuja trajetória começou há 20 anos e que ainda
o faço sem demostrar a alegria e o desejo que geralmente me atribuem como marca pessoal. Lembrei-me
imediatamente de uma pergunta da terapeuta feita em 2009: “Quem é mais
importante para você: o professor, o homem de mercado ou o escritor?”. Naquele
dia, ela disse que estranhava o fato de ser eu um professor muito bem
conceituado e falado por muitas pessoas e que não falava de mim mesmo com
empolgação alguma, que estava altamente insatisfeito com a vida e que me
cobrava bastante por não estar investindo no escritor, o Eu, escritor.
As lembranças continuam e relembro que professor é uma posição
que neguei várias vezes, priorizando meus interesses na área de marketing, a
despeito de muitos conselhos e indicações de que havia em mim vocação para tal.
Quem mais me falou sobre isso foi Fernandinho, primo na casa de quem eu costumava
ficar entre 1995 e 1997 para ficar mais perto do trabalho ou dos cursos de pós-graduação
que tentei para ir ao mercado de trabalho. Regularmente, ele me dizia que eu
deveria tentar uma carreira docente, que via em mim um “professor nato”, que eu
deveria ter mais carinho com a vocação que estava evidente em mim.
Ironicamente, lembro-me que na Supergasbrás, onde tive minha primeira oportunidade de ser um “homem do mercado”, ganhei o apelido Professor. Um
dia, participando de um jogo de futebol dentro da empresa, um colega de time
reclamou de um passe errado meu e deixou sair: “faz isso não, Professor”. Durante
o jogo fui chamado de Professor por outras pessoas. Após a partida, me explicaram que meu apelido entre era “Professor” porque eu parecia
um professor, pelo meu jeito de falar e por alguns hábitos que tinha, como o de
ler jornal ou livro no horário que sobrava do almoço. O apelido estava pegando
e um dia, em conversa com meu chefe, ele me disse que aquilo não era nada bom para
alguém que tinha ambição de crescer na empresa, que a representação de um
professor não era nada boa para um gerente ou diretor, que as funções eram
incompatíveis.
Aprofundo-me nas lembranças e realizo que tal dilema dentro da
empresa acaba com minha saída dela e que esta, devido à maneira dolorosa como a
ela reagi, acaba por influenciar negativamente minha recolocação no mercado. “Você
ainda está sangrando”, disse-me uma diretora de RH de uma grande empresa para justificar
minha não contratação. Minha saída da Supergasbrás praticamente marca o fim da trajetória
daquele Eu, homem do mercado. Rapidamente, lembro-me do texto que escrevi justamente
no dia em que saí da empresa para usá-lo em minha apresentação do Eu, professor.
O texto, escrito em 10/10/1997, na base da Duque de Caxias, é significativo pois
eu estava realmente muito feliz naquele dia que acabou bem mal por sinal.
“Um inesperado e agradável surto de
felicidade tomou conta de mim. Estou rindo à toa.
De uma hora pra outra fiquei leve,
radiante, com a alma em êxtase.
Estou impregnado de felicidade,
vertendo alegria pelos poros.
Há um doce aroma de satisfação me
rodeando e que não me deixa parar de sorrir.
É uma sensação fantástica, estou
contagiante, irresistível.
Planto esperança em todos os lugares em
que lanço um olhar.
De minhas palavras jorram emoção.
Inesperadamente feliz, como se não
houvesse no mundo outra opção.
Um réu confesso do crime da
felicidade recebendo em alto astral a sentença que me condena à alegria eterna”.
A poucos minutos da minha apresentação realizo que estou
bastante emocionado, dou-me conta da complexa rede de significados que
estiveram presentes em todos os investimentos que fiz no complicado processo de
constituição identitária do Marco Antônio Ferreira de Souza. Com certa calma,
porém, contemplo com carinho os diversos projetos de eu em que me impliquei. Olho
para a sala e tento revisitar momentos de 1991, quando naquela sala me sentava
para algumas aulas. Não, não quero me reencontrar, nem dizer nada para aquele "eu, aluno", pois sei que minha dívida é
com o professor, com aquele cara que está na viagem e coincidentemente na mesma estação em que o aluno começou a viagem.
Jamais passaria pela minha cabeça que, em mais uma etapao da
corrida para edificar o "eu, psicólogo", eu precisaria prestar contas com o "eu,
professor", justamente na sala onde começou minha maratona para tornar real o "eu,
homem de mercado", figura de vida curta e pouco feliz e de
quem demorei a fazer o devido luto. E aqui estou, professor de fato,
precisando assumir essa importante dimensão da minha vida, precisando acolher-me,
autorizar-me, abraçar-me, precisando urgentemente reinterpretar a tal sentença que me
condena, nessa vida, a uma alegria em quantidade bem promissora. Talvez seja isso o que a terapeuta me cobrava, talvez seja isso o que Fernandinho previa para mim. Talvez.
Fui o último a apresentar e terminei assim: Aqui e agora: eu,
professor.