segunda-feira, 6 de abril de 2020

O encontro de dois meninos

Seropédica, 17 de setembro de 2011. Fui à casa da tia Ana, dia de festa para os aniversariantes do mês de setembro e lá são muitos. Todos festejavam, exceto eu, devidamente advertido de que naquele lugar e exatamente há trinta anos recebia de tia Ana, em companhia de Neusa e Darcy, a notícia de que minha mãe morreu. Não toquei no assunto e dele ninguém se lembrou, felizmente. As lágrimas ora as bebia ora sobre elas sorria. O clássico e pouco inspirador sorriso do autoengano, mas aquele garoto de 10 anos que um dia fui estava ali e precisava ser acolhido

Ironicamente, era um dia muito especial para o Marco Souza, um homem de 40 anos. Estava muito ansioso, pois, depois que saísse dali, entraria pela primeira vez na casa da Angélica, a quem já amava e demais detalhes de sua vida queria saber. Seria apresentado aos seus filhos como pretendente dela, não mais como conhecido que se cumprimenta à rua.

Assim que cheguei à casa de Angélica, fui avisado de que Carol dormia e Milton estava acordado. Carol foi se preparar para me receber, mas adormeceu. Quando entrei, Milton, deitado em sua cama, me olhava com tranquilidade. Seu quarto ficava de frente para a porta da sala. Meio desconcertado, da porta perguntei se poderia ir até ele para cumprimentá-lo, mas me disse que não. Logo após, saiu e veio me cumprimentar.

Percebendo a delicadeza do momento, fiz questão de terminar de chegar e bem devagar. Fiz movimentos leves, falei pouco, pedi licença, sequer toquei em sua mãe. Deixei o implícito com seu misterioso status intacto. Àquela altura e naquelas condições, qualquer insinuação de objetividade impactaria fortemente o menino de 10 anos, ao mesmo tempo em que me alçaria à condição de invasivo, uma figura desagradável ao filho da mulher que me propunha conhecer e abrir espaço em minha vida.

Na sala, novamente o cumprimentei e, na esperança de que ele ditasse o ritmo daquele inusitado encontro, esperei que falasse. Milton me recebeu com simplicidade e simpatia. Fiz perguntas sobre as coisas das quais gostava e ele foi me apresentando aos elementos do seu mundo. Apontou para o quarto, foi para lá e da sala eu via os primeiros brinquedos dele. Convidou-me, pedi licença ao entrar, não toquei em nada, esperei que me dissesse o que fazer. A primeira coisa que fez questão de mostrar foi a prateleira com seus bonecos, ressaltando que foi obra do seu pai. Deteve-se na história da prateleira, deu muitos detalhes. Olhando firmemente em seus olhos, elogiei o trabalho do pai e a coleção de brinquedos.

Enquanto fiquei no quarto, me mantive interessado pelo seu mundo e fiz de tudo para não negligenciar os recados que sutilmente me passava, um em especial: essa casa ainda pertence a um homem. Um homem que ele mantinha vivo ali dentro, embora não mais frequentasse o lugar, nem mais tivesse relação com sua mãe. 

Entre as várias e essenciais razões para manter o interesse pelo mundo do Milton, uma reclamava atenção: o destino criou um encontro especial entre dois meninos de dez anos. Era fácil estar no lugar dele: há aproximadamente trinta anos, não na mesma data, acontecia algo semelhante comigo. Em minha casa, e pela primeira vez, entrava a mulher que seria nossa madrasta e ocuparia o espaço que foi da minha mãe, recém falecida. Lamentavelmente e pouco tempo depois, as condições nas quais se deu a entrada definitiva dela em nossa casa foram tensas, deixando em mim a certeza de que não foram respeitados os aspectos simbólicos mais importantes. Durante muito tempo, foi para mim uma invasão, uma barbaridade, um completo desmantelar de todo universo objetivo e subjetivo que me localizava no mundo, no tempo. Construir um novo lar numa mesma casa requer uma engenharia especial, demanda recursos valorosos e delicados, principalmente amor, paciência, dedicação e tempo. Não foi assim que aconteceu e tudo mudou: primeiro, uma nova rotina; depois, os elementos que sinalizavam a presença da minha mãe foram retirados e ela morria mais uma vez; por fim, mudamos para o bairro Ecologia. A casa de onde saímos, aquele lar, o meu universo, me dava uma confortante sensação de pertencimento, algo importantíssimo diante toda transformação que experimentava naquela fase da vida. A senha para a aprendizagem essencial sobre o viver estava decifrada: entrar na casa do Milton significava, simbolicamente, entrar na minha casa e fazer tudo do que jeito que deveria ter sido. 

A visita me reservava mais emoções. Voltamos à sala e em seguida Milton foi ao seu quarto e voltou com uma chuteira que usava na escolinha de futebol, no Seropédica. Deu-me a chuteira e, ao tocá-la, olhei novamente no fundo dos olhos daquele menino de 10 anos, calmo, gentil, receptivo, dono do espaço e da situação. Meu olhar foi do fundo ao longe: ironia do destino ou capricho deste, um calçado, um tênis, foi o presente que minha madrasta me deu no dia em que foi à minha casa pela primeira vez. À época, vivíamos situação difícil, tínhamos pouca roupa em boas condições e o tênis chamava atenção pela novidade e beleza. Lamentavelmente, em função de falas e posições de todos envolvidos afetivamente com a situação (parentes e amigos), prevalecia a interpretação de que era uma tentativa de ‘comprar’ nossa simpatia (minhas irmãs também foram presenteadas), de ‘driblar’ a atenção do que era realmente caro: a falta de clareza no projeto de construção de um novo lar na nossa casa. Como resultado, pouco usufrui do belo presente, pois aquele simbolismo que emergiu diminuía qualquer benefício funcional ou social que pudesse me dar.

Quis o destino que Milton me desse o calçado para segurar. Toquei-o com a mente voltada para aquele garoto de 10 anos que perdeu a mãe e tinha sua vida drasticamente transformada. Ao garoto de 10 anos à minha frente eu perguntava sobre os gols que fazia e se o calçado era confortável e bom para usar. Ao garoto ‘atrás’ de mim eu disse: “Este calçado que agora seguro serve para mostrar que você deveria ir ao campo da vida jogar o jogo que não jogou porque não quis usar o calçado cujo presentear lhe foi tão desconfortável. Vá, vista o calçado, perdoe aquelas pessoas, leve uma vida mais confortável e faça finalmente esse gol”. A mim disse: “Você entrou, respeite esse universo; continue amando essa mulher e a seus filhos, ainda que um beijo possa estragar tudo”. Como nada bebia, às lágrimas novamente sobre elas sorria. Um sorriso de relaxamento, esvaziamento, reparação e reconstituição que só encontros especiais podem oferecer.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Do delicado em mim


Um dia ouvi que uma simples e despretensiosa mensagem pode mudar significativamente o rumo de um dia ou mesmo da vida de uma pessoa. Isso está acontecendo comigo, aumentando ainda mais a excepcionalidade desses dias de isolamento que enfrentamos com o pandemia do covid19.

Em 20 de março, recebi mensagem privada de alguém que há muito não via e com quem nunca tive muito contato, embora estejamos conectados via aplicativo. Conhecemo-nos pelos idos dos anos 90 e nos vimos poucas vezes desde então. A pessoa queria saber o porquê do afastamento que eu vinha mantendo da rede social. No mesmo dia, manifestei minha surpresa pela visita virtual e informei que afastei-me porque estava ficando cético em relação à possibilidade de virarmos o jogo contra essa polarização que embrutece-nos e piora a qualidade das interações nas redes sociais virtual e física; também confessei indignado que estava me sentindo numa bolha e procurei fazer algo para não ficar com a crença de que os problemas estavam nos outros e não em mim, optando por sair da ilha que vira a timeline de uma rede social e onde nela nos refugiamos; por fim, disse que estava priorizando a rede social física, aplicando mais compaixão e empatia, assumindo que o problema também está em mim, procurando rever valores, atitudes e comportamentos e enfrentando mudanças que me impus e atualmente implicam em plena reelaboração de mim. Também no mesmo dia, confessou-me ela sentir o mesmo, embora não use muito a rede social digital e prefira a física e, procurando ser empática, escreveu: “Vi você poucas vezes, mas você me passa certo conforto no trato, acho que por isso, quando vi que você tinha se afastado, ainda mais nesses tempos de quarentena, resolvi “visita-lo”, e ainda reconheceu que poderia ter ficado estranho o “certo conforto no trato”.

No dia seguinte, agradeci e manifestei que ficara mesmo curioso com “o certo conforto no trato”. No dia 22, e com visível cuidado na construção da resposta, ela disse: “trocando em miúdos, acho que quis dizer que você parece uma pessoa delicada e com quem é fácil conviver”. No dia seguinte, muito mais surpreso, respondi que estava em busca de uma resposta ideal para aquelas palavras, que até tinha começado uma digressão; reforcei que estava muito feliz com a surpresa do contato e com a restituição, via percepção e palavras dela, do delicado à minha vida, ao meu jeito de estar no mundo; assumi que a delicadeza fazia parte sim da minha vida e que dela eu muito me afastara ou pouco de atenção a ela dera, e que com a fala dela janelas para muitas ideias havia sido abertas. No mesmo dia, ela respondeu: “então, devo dizer que restituí a você o que você sempre me deu, independentemente das intenções que pudessem movê-lo. Que bom que pude fazer isso”.

No dia 26, com uma resposta aquém da ideal que buscava, mas pressionando-me para logo tê-la, consegui dar continuidade à nossa conversa, que após essa mensagem terminou: “Você me reparentalizou, pois não tive necessidades emocionais atendidas referentes a ser mais soft, light...delicado. Cresci ouvindo do meu pai: “Filho meu não pode ser gay, ladrão drogado ou comunista”. A forja que me fez homem não me deixou ser o homem que eu queria ser. Foi na marra, na rebeldia, na sublevação, que eu me lancei à transformação, ao questionamento do que queriam de mim e do onde eu chegaria sendo aquele homem que de mim fizeram. Foi na experimentação, no corpo da política e na política dos corpos, que adotei algumas postura, novas ideias”.

Findou a troca de mensagens, mas não findaram as inquietudes deste contato tão especial com o delicado em mim, com a experiência de acessar uma representação minha bem distinta da que normalmente uso para me definir e de acessar o material trazido à tona por minhas próprias palavras. Emergiu a grande senha: até aquele inusitado 20 de março eu não havia invadido esta seara tão cara à minha história de vida: a conexão entre o delicado/a delicadeza e o meu vir-a-ser homem (tampouco tenho como saber se um dia aconteceria). A oportunidade, respeitados todos os seus detalhes, tornava providencial aquela restituição; enfim, tinha que ser naquele instante e daquele jeito. 

Palavras. Quantas e fortes emergiram na troca de mensagem e em minha mente. Até 23 de março, diziam-me elas que eu não me reconhecia na delicadeza nem a ela devidamente reconhecia; que refazer-me homem fôra na marra, na rebeldia, na sublevação. Processo este que agora entendo demandar sensibilidade ou autoconhecimento ou experiência ou coragem para se ir além do enfrentamento ao dolorido e extenuante que ele produz e alçar o saber-se delicado, assumi-lo, nele se confortar, a ele proteger e com ele objetiva ou intuitivamente contar para enfrentar a vida.

Tal restituição abriu-me não apenas à compreensão do impacto, mas da necessidade de uma consistente restituição do delicado à minha vida, de modo que ele seja parte evidente e assumida do meu jeito de estar no mundo e de como continuamente me redefino, me reconstruo, me reelaboro. Fortalecido, procurei então compreender como se dera minha relação com o delicado, os nossos encontros e desencontros, o que minhas palavras iniciais não deram conta. Foram muitos e profundos os pensamentos e lembranças que somaram forças para que a partir dali eu revisitasse os pontos de contato e de atravessamento entre mim e o delicado.

Como não perguntei à pessoa o que seria este delicado que eu a entregava, os atributos que o comporiam, acessei as representações que atualmente tenho do delicado ou da delicadeza: mulheres, flores, cristais, relações e o psíquico, e onde se inscrevem o soft e o light. Baixíssimo repertório de associações e representações, confesso, dignas mesmo de uma pessoa que ouvia que homem não chora, que ele tem que se impor e que jamais deixa-se ser um réu confesso de qualquer coisa que faça ou sinta. Considerando peculiaridades da minha trajetória de vida, entendi bem que esse repertório não poderia ser muito rico, embora agora saiba haver alguma efetividade, pelo menos com uma mulher.

Mulheres. Revisitei o passado e logo encarei minha relação com elas, que, além de não ter sido fácil, foi deveras complicada por causa de algumas vontades do destino. Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos e, embora ainda tivesse tido três mulheres perto de mim por um bom tempo, não houve com duas irmãs mútua cumplicidade e empatia sobre os dramas de vir-a-ser gente, nem mútua proximidade e afetuosidade com minha madrasta que pudesse viabilizar uma outra forja de vir-a-ser. Nas ruas, aprendizados comuns de meninos sobre sexualidade, com acesso a revistas pornográficas e a compartilhamento de histórias, na maioria das vezes, bastante exacerbadas sobre paqueras, transas, masturbações, etc.. Aprendizagens não sobre a inteireza, integralidade e delicadeza dos nossos e dos corpos delas, mas sobre órgãos genitais e seus excêntricos nomes, tudo muito localizado e resumido, embrutecido. Continuada a revista ao que me permitiu a memória, constatei que, naquela fase, dificilmente reagiria ao embrutecimento ou rusticidade que caracterizava aquele projeto de vir-a-ser homem que nos impunham, aquela dura forja: aos onze ou doze anos lidando com uma criação que diariamente informava que “filho meu não pode ser gay, ladrão, drogado ou comunista”, que também nessa fase me colocara num inferninho para, sob olhares ávidos de tios, ter uma mulher no colo para que ela certificasse que o “pau subia”, que aos catorze ano, quando assistia Gilberto Gil cantar Refazenda, desligava abruptamente a TV e informava que naquela casa não se assistiria a um gay e comunista cantando.

Foi um doloroso e delicado-em-si de abrir janelas para no passado entrar, tendo à mão apenas a luz da coragem e sem dispor do mapa e experiência de um bom analista. Bem mais do que mudar meu dia, essa simples e despretensiosa mensagem produziu efeitos que, bem sei, impactarão meus dias que seguem, mesmo que o fato de não ter sido de uma mulher com que tive relacionamento próximo e intimo ponha tudo isso sob ampla suspeição. A coragem acompanhou a extensão da rememoração para expor detalhes densos da minha história de vida. As janelas estão devidamente escancaradas e tudo isso vai continuar reverberando, repercutindo, atravessando a dolorida e contínua reelaboração da minha própria identidade ou subjetividade. Entretanto, por mais surpreendente e inquietante que esteja sendo, não há estranhamento, negação ou repulsa: há um delicado em mim e ele está restituído à pauta da minha vida.