A vacilante atenção que dou ao desejo de escrever (ou como acolho o eu-escritor) é uma questão que me incomoda bastante. Desejo mas não persevero. Um sintoma é ter começado vários textos e terminado apenas um livro que escrevi para meu filho. As elaborações que faço não conduziram a um entendimento apurado dessa vacilação. Em primeiro de julho de 2020, entretanto, um evento inesperado, marcante, atravessou essa questão, está reverberando e ainda não consigo avaliar suas consequências.
Há anos o devido acolhimento ao eu-escritor vem se arrastando, hesito em consolidar essa dimensão da minha experiência identitária. Quando não duvido e subavalio minhas competências, ataco o desejo, chamando-o de ‘fantasia estendida para lidar com a dura consciência de que se é alguém comum’. Isso revela uma representação glamorosa que fiz do escritor e péssima da vida rotineira; também pontua uma postura muito dura comigo mesmo. É algo da ordem do sequer dizer: ‘puxa, sou um escritor’ ao entrar em contato com algumas coisas que escrevo, preferindo referir a mim como diarista. Sei que há um contraditório exigente permeando a questão: assim tenho me visto desde que comecei a fazer registros, mas fazê-los sempre foi prazeroso e uma via bem eficaz para lidar com a matéria densa do viver.
“Por que lido assim com o que me mobiliza e dá prazer?”, vivo a me perguntar, sem me responder contundentemente. É uma experiência muito ruim, pois, se não consigo determinar quem sou em relação ao desejo de escrever, também não consigo ser contundente para lidar ou fazer calar vozes sorrateiras da intuição reclamando atenção ao desejo; vozes que se aproveitam de brechas abertas por pensamentos sobre o rumo que dou a minha vida para aumentar o tom. Nessas ocasiões, emerge uma péssima e arrastada experiência de insatisfação e desconforto no dia-a-dia, uma permanente sensação de não-lugar me dominando, potencializando pensamentos como: “Você realmente continuará a fazer ‘esse mesmo’ em sua vida? E o escrever? Vai lá, diga: quem é você? Cadê os papeis, lápis e canetas para a ação? Cadê o computador? Os livros, por que não os está lendo?”.
Recentemente, depois de horas envolvido na confecção do trabalho de conclusão de curso de psicologia, me deitei para descansar e logo vieram muitos pensamentos e as sorrateiras [vozes] se fizeram presentes: “Há cinco meses você trabalha diariamente com isso, já tem quase 100 páginas. Por que não investir o mesmo e escrever uma história ou terminar uma das muitas que já começou e parou?”. Recorri à tradicional cesta de desculpas para responde-las: comecei pela defesa das demandas imediatas que emergem da vida de docente e de aluno de psicologia, passei pelas justificativas de obras e outros imprevistos em casa, para terminar com o frustrante ‘um dia, quem sabe, quando vier a aposentadoria de professor, eu me ocupo disso’. Aí é que as sorrateiras não se calaram: numa noite em que tive muitos sonhos, elas aproveitaram todas as vezes que despertei para iniciar diálogo.
No dia primeiro de julho, essa questão sofreu uma inflexão extraordinária. Deitado para avaliar a pressão arterial, ouço o telefone tocar, mas não atendi. As chamadas continuaram e decidi que, ao terminar a medição, atenderia. Quando atendi, me deparei com uma tela diferente da tradicional: era a primeira vez que recebia ligação via facebook. Ao vir o nome João Carlos Luz na tela, me assustei e levantei na hora. Atendi e o inusitado começou: “Marco Bauhaus? É João Carlos luz!”. Ele queria saber se podíamos conversar mais, falou que estava preso em casa pela pandemia e, para fugir da rotina, começou a vasculhar quem eram os amigos do facebook que de imediato não os reconhecia. Veio uma sequência de perguntas que certamente fizeram minha pressão, que é baixa, ir às alturas: “Diz pra mim quem é você, Marco Bauhaus. O que você faz? Sabe quem eu sou? De onde nos conhecemos? Vamos lá, vamos papear um pouco aproveitando essa oportunidade que a pandemia nos faculta!” Antes que lhe respondesse, ele comentou que, devido ao nome Bauhaus, julgava que eu não fosse uma pessoa qualquer. Derivou sua fala para a escola Bauhaus, a República de Weimar, o que o nazismo havia feito com a Bauhaus e como podiam ter colocado todas aquelas pessoas incomuns para fora da Alemanha. Expliquei que Bauhaus era apelido adotado quando fui aluno do CTUR, em 1989, mas estava mobilizado pelo susto que sua inusitada aparição me deu.
Não era uma visita qualquer: João Carlos Luz, além de grande músico, é uma especial personagem de um conto que comecei a escrever e não terminei, um dos que mais faz a alma doer quando lembro do não perseverar no desejo de escrever. Até então nos falamos apenas uma vez, em 24 de junho de 2017, na praça Nelson Mandela, em Botafogo. Ele tocava sozinho seu clarinete quando saltei do ônibus e ia em direção à padaria Le Depanneur. À época decidi que nesse dia faria um roteiro cultural por Botafogo, visitando livrarias e cinemas para extrair elementos para dar continuidade à ideia de um conto que me ocorreu no lançamento do livro ‘Despreparação para a morte’, de Roberto Bozzetti, na noite anterior, 23. Não cheguei à padaria: além da música dele chamar muita atenção, uma situação única rolava: ele tocando chorinho sem plateia e, a alguns metros dele, dezenas de pessoas participando de uma pregação religiosa e viradas na direção dele. A cena me marcou: ele mais que tocava chorinho: sozinho, disponibilizava, em praça pública e aos olhos e ouvidos de quem tivesse um mínimo quinhão de sensibilidade, um bravo ato de resistência cultural. Com coragem e simplicidade, fazia os sons da sua arma (clarinete) soar pela Nelson Mandela. A cena era chocante e irônica demais para um lugar com o nome Mandela. Decidi que participaria da resistência cultural e tentaria fazer dele uma das personagens do conto. Pedi que tocasse André de Sapato Novo, que o fez magistralmente; tocou mais algumas músicas e, ao final da sequência, compartilhei o prazer de ter participado da situação, expliquei brevemente a ideia do conto e fiz duas perguntas. Respondeu que estava ali por prazer e que eu poderia incluí-lo como personagem do conto. Elogiou a iniciativa e me passou o contato para segui-lo na rede social e informá-lo sobre o conto.
Passados três anos, ele é quem me acorreu numa cena e contexto também chocantes e de resistência, mas lamentavelmente marcados pela covardia de uma personagem diante o próprio desejo. Assustado e envergonhado, andava pela sala e buscava palavras para dizer que não terminei o conto. Ironicamente, vi na mesa o computador e, ao lado dele, meus cadernos de registros e várias canetas, todos usados para o TCC do curso de Psicologia. Vi Rosângela tirando 'minhas armas' da mesa para colocar sobre ela o almoço. Pensei: “É o cotidiano se impondo às vacilações de quem, podendo transformá-lo, simplesmente não o faz; é sinal de que em poucos minutos eu mais uma vez me calarei com a ‘boca de feijão’ e arrastarei pela tarde a angustiante sensação de não-lugar”.
Educadamente, João Carlos Luz ouviu as desculpas e disse: “Lembro-me vagamente dessa situação, mas por que não terminastes o conto?”. Não tive coragem para dizer que foi por covardia. Aproveitando meu silêncio, ele completou: “Então estou falando com um escritor. Quando terminar, me avisa. Quero ler”.
Porque não é todo dia que uma personagem procura o escritor, não foi uma ligação qualquer, foi um chamado. Em verdade foi o chamado: a personagem chamou o escritor para se assumir e se autorizar na ocupação de um tempo e lugar em sua própria vida, exortou-o a pegar suas ferramentas para atender aos chamados do próprio desejo, ainda que por vezes seja necessário fazê-las de armas na resistência contra ameaças ao desejo.
Em meio à tensa situação, buscando palavras para honrosamente agradecer, lidei com a sutil ironia do título do conto inacabado ser ‘Preparação para a vida’. Preparação para uma vida que há pouco completou três anos e vive me exigindo um efetivo começar.