domingo, 23 de maio de 2021

Chão manchado de cabelo e pelo de barba

Saía de casa quando minha vizinha parou, reclamou da minha barba a fazer e ainda disse “Está deprimido, meu filho?”. Curiosamente, vieram à mente imagens da última vez em que deixei o chão de uma barbearia manchado de cabelos e me deu imensa vontade de falar sobre o tema. De volta ao momento, contive o impulso de falar sobre o tema e de dar uma resposta moleca, deixei um sorriso de boa vizinhança e saí educadamente. Ainda que mais velha e bem-intencionada e mesmo sendo eu careca, ela não entenderia o significado que um chão manchado de cabelo tem para mim, não acessaria as delicadas senhas aí inscritas e pedindo decifração.

A última vez foi na barbearia do Zé João, em 1988. Ele ainda avisou: “Ratinho, seu cabelo é fraco, nunca mais vai ficar do jeito que está. Passa a zero mesmo?" Como tinha 17, ainda falou: “Seu pai sabe que você vai fazer isso?”. Lembrou que cortava o meu cabelo desde que eu era criança, que meu pai sempre me levava lá, que aquela era a última vez em que ele efetivamente teria cabelo em minha cabeça para cortar com tesoura e que dali para frente seria só máquina. Acertou.

À época, muita coisa se alinhou: algumas pessoas de referência para mim tinham passado a zero no cabelo e eu queria aquela onda; era uma fase rebelde, de confronto com meu pai, de complexa reafirmação do édipo mal finalizado, éramos puro conflito. Conflito e ondas me embalavam sim. Ondas com aquela de usar bonés de roupas de marca. Para além das ondas e do édipo, o que queria mesmo era me ver diferente: não me contentava em me ver o mesmo a cada dia, sempre queria me ver diferente, um outro eu ou eu num outro lugar. Creio que nem tinha cabelo quando essa inquietude fez morada especial em mim. Sintoma do édipo e de algo que ainda preciso elaborar quando o espelho responde ao meu olhar.

Quando Zé João falou “Pronto, Ratinho, veja se tá do jeito que você quer”, me virei lentamente para o espelho e ele, com aquele sorriso lindo que sempre teve, falou: “Seu futuro vai ser assim. Vai ser engraçado ver você assim depois de tanto tempo cortando o seu cabelo”.

Quando me vi careca fiquei meio assustado, mas não tive arrependimento; tive a breve alegria de alguém que fazia algo que tinha um grande significado, pelo resultado e pelo ato em si. Olhei para o chão e o vi todo manchado do meu cabelo. Foi a última vez. Lembro-me que não tive coragem de olhar o processo de corte, fiquei de costas para o espelho e o Zé João, rindo de minha covardia, brincava: “Ué, Ratinho, você é homem ou um rato?”. Ria porque eu era filho do Ratão, o carismático Antônio Mineiro, o Antônio Goulart, e ele só me chamava de Ratinho, dificilmente de Marquinho.

Quando cheguei em casa e tirei o boné, meu pai disse: “Porra, você é demente, gosta de me provocar mesmo”. Tremi feito vara verde. Não falou mais nada, sequer teve a típica reação de quando via que entre nós as coisas não fluíam bem. Também pudera: o tão esperado filho homem vivia em conflitos com ele, não convergia a ponto dele orgulhosamente dizer “esse é meu sucessor”. Eu não vivia o futebol na intensidade que ele queria, troquei o Botafogo pelo Vasco, a música caipira pelos Beatles e a MPB; não jogava cartas, não pensava a política como ele e, principalmente, não tive a humildade de captar como ele pensava a vida e suas surpresas. Em vida, passados alguns bons momentos da infância, fomos só amor e conflito. Hoje, evidentemente, é fácil perceber que os conflitos foram uma das maiores burrices que juntos cometemos e, mesmo inteligentes, sensíveis e criativos, nos amamos muito pouco.

Horas antes da última vez que manchei o chão com cabelo, Roninho, meu amado primo e com quem eu vivia a onda do cabelo enrolado e do uso do neutrox, disse para eu não cortar com máquina; disse que jamais faria no dele, poupando-me de ouvir que meu cabelo era ruim. Antes dele, quando estive em suas barbearias, Mamede avisou sobre meu uso de bonés, que eles enfraqueciam os fios e tal, e Jairo, que via a situação que se desenhava, nada falou. Sempre fui impaciente, se não tinha vaga no Zé João, ia nos outros dois e assim puderam eles fazer ou não o vaticínio: meu futuro sem a chance de manchar o chão com cabelos.

Passados 33 anos, não tive paciência para explicar à minha preocupada vizinha que não estava deprimido, que deixar o cabelo e a barba crescerem tem muito significado para mim, que toda vez que o faço e desfaço estou reelaborando e ressignificando muitas coisas na minha história.

Ela não teve a sensibilidade de perceber que ao assim fazê-lo busco certa proximidade com meu amado pai, que cultivava uma bela barba e tinha forte e invejáveis fios de cabelo. Toda vez que estou barbudo, recebo alguns adoráveis comentários de que estou a cara dele. Entenderia ela que barbudo o Ratinho vira, ainda que por poucos dias ou semanas ou meses, o Ratão? Não, ela não entenderia que nesses desencontrados momentos, já que ele faleceu em 2005, todo conflito entre nós acaba: já não se faz mais necessário ao Ratinho afirmar que ele não é o Ratão, que quando ouço esses comentários é como se ele estivesse me abraçando e dizendo que me ama.

Ela não acessaria que deixar barba e cabelos crescerem, de me esvaziar das demandas narcísicas, é uma das maneiras que uso para visitar o vale das minhas sombras, das mazelas de minha alma. É lá que me sento sob árvores pouco folhosas e contemplo os momentos em que estou ou fui ruim, em que não estou ou não fui tão bom quanto penso e desejo; é lá que choro com mais liberdade as dores de ser alguém que ainda não aprendeu a lidar direito com as perdas e os laços afetivos mal resolvidos. Ela não acessaria que sigo pela vida tentando entender o que Milton Nascimento canta em Travessia e Caçador de Mim, pois ainda vivo a me procurar e do nada a me caçar, me abater e que também do nada uso me cassar dos lugares em que mais bem estou e em seguida saio soltando a voz nas estradas. Cada vez mais cansado disso, já que no espelho vejo e começo a aceitar o homem de 50.

Ela não entenderia se dissesse sorrindo e otimista que deixar barba e cabelo crescer para ver o chão manchado de cabelo e pelo de barba é uma maneira simbólica de lidar com a terrível dor da alma do dia em que cortei meu rosto tentando ser igual ao pai que contestei édipo afora. Ah, embora tenha doído apenas na alma, que agonia foi aquele dia: aos 12 anos, escondido no banheiro, fiz todo ritual que ele fazia: primeiro, pus um pouco de Bozanno no pincel e enchi de espuma a cara que só tinha poucos pelos; depois, peguei o aparelho de barbear de metal, pus cuidadosamente a gilete na parte de cima, enrosquei bem a parte debaixo do barbeador e fechei a parte superior; então, olhei-me no espelho e tentei fazer como há anos o via fazer; fiz a primeira passada e logo veio o corte e o sangue a escorrer pelo canto da boca e a manchar a pia bege escuro.

Sangrando, assustei-me, chorei, sujei muitos pedaços de papel higiênico para não deixar rastros na toalha de rosto e tomei a infeliz decisão de, como fazia meu pai, por álcool no rosto. Ao meu jeito fui às alturas com a ardência e ao chão com a bronca que me deu quando viu o corte no meu rosto. Minha vizinha não entenderia que ao me ver homem no espelho, barbudo e com um pouco de cabelo para cortar, eu olho para aquele menino de 12 anos a chorar, o abraço e o acolho, já que o pai dele não o fez, apenas falou duro e o criticou.

Por fim, ela não entenderia que deixar barba e cabelo crescer para depois ver o chão manchado de cabelo e pelo, ainda que jamais como da última vez, é um ato de resistência contra o passar do tempo: tenho 50, mas ainda resisto à presença dos rostos dos meninos de 12 e de 17, do meu pai, do Zé João e do Mamede apenas no espelho da lembrança (não sei do Jairo). Também é uma insistência para resolver o terrível dilema de que vira e mexe me inquieto, creio que preciso mudar e então movo o mundo que me cerca e por vezes me assusto com o resultado, como aos 12 anos. Talvez seja o dilema de que ainda não fiz meu os lugares em que estou e que, mesmo me sabendo forte, contabilizo apenas o muito que ainda tenho para falar.

Dilemas de ainda percorrer solitária e desajeitadamente os desertos do édipo. Ela não entenderia isso, não acessaria as senhas desse código do viver.

23-5-2021