Rio de Janeiro, 26 de abril de 2018. Cinco horas da manhã. Como
de costume, cheguei adiantado a mais um encontro (bem adiantado, por sinal),
revelando a ansiedade que jazia nas entrelinhas. A alguns metros de mim, o
Hospital Servidores do Estado – HSE, com quem terei o desafio de um reencontro
lá pelas 8:00.
Há trinta e cinco anos não nos vemos e o escuro da madrugada me
impediu de ver como ele está atualmente. Como só encontrei lugar para
estacionar à rua do Livramento, pouco pude notar da silhueta do gigante que
marcou minha vida. Inseguro sobre o local onde parei, resolvi ficar por ali até
que o dia clareasse e tivesse mais segurança para deixar o carro e ir para o
grande momento do dia. Fiquei na companhia do senhor que vende água de coco e
faz ponto em frente ao Mercadinho 2001, esquina com a rua do Livramento.
Às 7:00 saí para tomar café no bar e restaurante Cantinho dos
Servidores. Durante duas horas fiquei sem nada que, por ventura, trouxesse as
lembranças dos muitos e, em sua grande maioria, dolorosos encontros que eu e o ‘Servidores
do Estado’ tivemos entre os anos de 1978 e 1983. No restaurante, enquanto
saboreava a média e o pão na chapa, pude contemplar detalhes da sua lateral e
constatar que muita coisa mudou.
Em verdade, exceto por um breve contato visual com a Rodoviária
Novo Rio e pelas dependências do Moinho Fluminense, não houve nada de familiar
em mais essa chegada à Sacadura Cabral, 178. Nada de Perimetral, trens de
carga, navios, viagem em ônibus da empresa Eval, Praça Mauá, cheiro forte de
café, ônibus das empresas Magelle, Evanil, Reginas ou Jurema, nem mesmo tinha o
famoso 222 parado ali por perto. Também pudera: nosso último encontro se deu em
21 de fevereiro de 1983, às 9:00, e muita coisa mudou na nem tão maravilhosa
cidade que faz o cenário dessa controvertida relação que o destino, esse
ilustre senhor, criou a partir do adoecimento e tratamento da minha mãe, a
partir de 1980.
Sobre o reencontro, durante anos desejei e agi como se tal
relação tivesse acabado, embora soubesse que havia faltado a importantes
reencontros previamente marcados para os anos seguintes, em especial ao do dia
24 de março de 1983, conforme marca o velho cartão rosado. Tal ausência
implicou em deixar para traz preciosas sessões de psicoterapia, oportunidade ímpar
que eu tinha para mudar a dolorosa impressão que fiquei dos encontros que
tivemos e sobre a vida que conheci durante o longo período de internação e após
o falecimento da minha mãe, em 17 de setembro de 1981. Depois daquele fevereiro
de 1983, meu reencontro com a psicoterapia se deu em 2003, ainda perdura, mas
não dediquei muita atenção nas sessões para elaborar essa complicada relação
que me foi imposta e os marcantes motivos e consequências da falta ao
reencontro de março de 1983. Entretanto, quis o mesmo destino — esse ilustre
senhor especializado em encontros, reencontros e desencontros feitos à revelia
de nossas vontades — que em abril de 2018, aos 47 anos, e como aluno de
Psicologia, eu fizesse uma visita técnica ao 'Servidores do Estado', como usávamos
chamar esse hospital.
Nos dias anteriores, fiz o que aprendi com a vida nos demais
encontros, reencontros e desencontros marcados que o ilustre senhor me
presenteou: entendi que o (re)encontro era necessário, passei a desejá-lo;
tentei controlar a ansiedade e não criar expectativas, não fiz planos.
Preparei-me, claro: mantive-me austero e não dediquei às magoas uma posição
preponderante. Sem sinais de contrariedade me dispus a entregar no reencontro o
que de melhor haveria em mim após tanto tempo. Para segurar a pressão da
ansiedade, durante a viagem começada em Seropédica, fiz alguns áudios sobre
esse dia.
Embora me sobrasse tempo, notei que fiquei parado no restaurante
Cantinho dos Servidores por muito tempo, que me segurava por ali,
retardando o (re)encontro. Decidi sair e testar o que aconteceria conforme
entrasse em contato com o gigante de concreto. O granito marrom e as grades
mostravam que sua frente continuava a mesma. Não entrei, apenas observei a
silhueta. Lembrei-me da entrada da rua Venezuela, dos ambulatórios e decidi
pelo primeiro reencontro.
A entrada continuava a mesma: as fontes d'água à direita, o guichê lotado,
muita gente entrando e saindo, as primeiras escadas rolantes que vi em minha
vida e onde, depois de perder o medo, adorava ficar subindo e descendo. Emocionei-me.
Em busca de banheiro, entrei num corredor que me levou direto ao ano de
1983. Mais emoções. Estava tudo praticamente igual àquela época — a mesma
disposição das salas, consultórios e cadeiras, as cores em tom de creme e ocre
e o perfil das pessoas: gente simples, envelhecidas, trazendo nas faces à
agonia de quem mais uma vez acordou muito cedo e saiu atrás de uma boa
notícia.
Peguei água num bebedouro perto do banheiro e me sentei,
deixando as lembranças conduzirem o momento. As lágrimas desceram rápida e
fortemente, não conseguia segurar. Como previ nos áudios que fiz na viagem para
cá, aquele garoto de 12 anos tinha ficado naquele corredor à espera da
psicoterapia que tanto lhe fazia bem e o ajudava a elaborar toda transformação
que sua vida sofreu em praticamente três anos. Ao Marco de 47 anos caberia
retirá-lo de lá e levá-lo de volta para casa.
Imagens da época vinham com rapidez no angustiante trabalho de
reconstruir aquelas memórias, de dar uma lógica ou sequência a coisas que
aconteceram há mais de trinta anos e chegar aos porquês do rumo que a história
tomou. Uma dessas imagens reclamou atenção naquele momento: o dia em que ficou
decidido que meu pai não me levaria ao encontro de 24 de março de 1983. A
lembrança me dizia que foi por algo que era importante para ele, uma pescaria,
apesar dele próprio saber que tudo tinha que ser marcado no Hospital e com
antecedência. Essa doída lembrança, que sempre me acompanhara, veio numa
intensidade mais forte do que de costume, experimentei raiva bastante
desagradável e que trouxe à tona os questionamentos que, embora fossem óbvios,
nunca entraram na pauta de uma conversa séria entre nós: “Por que, àquela
época, eles não se mobilizaram para me levar à terapia? O que aconteceu para
que todo processo fosse esquecido, pois o cartão marca que não houve mais
retorno meu ao hospital?”.
Chorei muito, mas recobrei a consciência de que minha missão ali
não era destilar ódio ou raiva, de que à frente eu certamente viveria mais
momentos fortes e precisava estar preparado. Prontamente, desculpei meu pai e
minha madrasta pelo o que tenha acontecido à época, pois o que importava
naquele momento era o que eu iria fazer dessas lembranças e emoções, o que eu
iria fazer com o garoto de 12 anos que eu resgatei e que não tinha mais aquela
casa de 1983 para nela voltar, lá se recolher e, enfim, ocupar o espaço em
branco na história da sua própria vida. Simbolicamente, segurei nas mãos do
menino e disse: “Vem comigo, vamos para vida, Marquinho, sai da condição de
vítima, perdoe as pessoas”. Abracei e levei-o para me acompanhar durante o
resto da visita técnica.
Antes de encontrar meus amigos de turma, fui ao arquivo saber da
possibilidade de resgatar os prontuários dos atendimentos dados a mim e minha
mãe. Passei em frente ao local onde ficava a cantina que tanto gostava de
frequentar quando ia ao HSE, onde normalmente pedia um suco de maracujá e um
misto-quente ou coxinha de frango. Ela estava fechada, a fachada era a mesma.
Às 9:45, começamos a visitar a parte do hospital onde as pessoas
ficavam internadas, onde eu vi minha mãe pela última vez. Attila, que lá
trabalhava, nos conduziu num roteiro que só podia mesmo ter sido preparado por
aquele ilustre senhor especializado em encontros, reencontros e desencontros
feitos à revelia de nossas vontades: começaríamos pelas partes de baixo, depois
iríamos ao último andar e desceríamos até o sétimo andar, local onde ele
trabalhava como técnico de enfermagem e onde minha mãe ficou, entre 1980 e
1981. Como quem livremente consentia com aquele reencontro, fiquei me
controlando o tempo inteiro, conforme Attila ia (re) apresentando àqueles
locais algo já conhecido por mim: a recepção, os elevadores, o local de alta, o
local de radioterapia etc. Ao chegar ao sétimo andar, ficou decidido que
primeiro visitaríamos a Neurocirurgia e Neurologia — onde ele trabalhava e onde
faríamos as perguntas-chave do trabalho — para depois visitar a Ginecologia,
onde minha mãe ficou. Lá da Neurologia fiquei contemplando o corredor que dava
à Ginecologia, ansiando e temendo o reencontro. Tudo foi tão estranhamente
preparado que acabamos por visitar todas salas do sétimo andar no intuito de
conhecer a realidade operacional do local, as condições de trabalho das equipes
médicas e dos pacientes e visualizar onde e como os psicólogos da saúde podem
atuar.
Acabei voltando ao quarto onde há quase 37 anos, no dia 15 de
setembro de 1981, vir minha mãe pela última vez, recebi seu último abraço e
perguntei quando voltaria para casa e mais uma vez estranhei o estado em que a
doença a deixou; lugar onde, na verdade, ela só ficava deitada porque já não
andava mais, onde eu ficava encantado pelo rádio que tinha na cabeceira e
sempre estava sintonizado na rádio-relógio e eu atentamente ouvia os contínuos
tique-taque de um relógio, a voz anunciando a hora certa a cada minuto, os
locutores dizendo “Você sabia que tal coisa é assim ou assado. Você sabia?” e a
anúncios como o de uma determinada empresa que cantava de galo com o preço de
milho picado. A cama onde ela ficava era perto da janela e de onde se podia ver
o morro em frente ao hospital, uma paisagem que não me pareceu nada familiar. À
época eu ficava olhando para baixo, para a entrada, para o movimento na
Sacadura Cabral.
Curiosamente, não chorei ao rever tudo aquilo, embora estivesse
notoriamente afetado, falando bastante para compensar a emoção vivida. Talvez,
pelo fato de estar acompanhado daquele garoto de 12 anos ou pelo fato de meus
colegas de turma não terem a menor noção de que o que para eles era uma
novidade era para mim uma delicada reprise, um reencontro especial, meus
comportamentos e reações tenham passado desapercebidos. De lá fomos ao prédio
dos ambulatórios e passamos no setor de psicologia onde tivemos a chance de
conversar com a psicóloga Eleonor Elizabeth, que entrou pouco depois de 1983 no
setor e onde uma vez mais fui visitado por imagens do passado e por emoções que
mexiam profundamente comigo.
Ironicamente, após mais uma ida ao ‘Servidores do Estado’ voltei
para Seropédica. Estava de carro e não precisei andar até a Praça Mauá para
pegar o Tarifa A da Eval – demorava a passar, mas rápido chegava em Seropédica
– nem precisei ir até a Central do Brasil para lá pegar um Tarifa B – passava
mais vezes e sempre demorava a chegar ao seu destino final. Acompanhado dos
meus amigos e daquele menino de 12 anos, fomos à UFRRJ para tentar assistir uma
aula de Ética na Psicologia e onde horas depois estarei dando aula até as 22:00
horas. Outros reencontros nos aguardam, pois pretendo resgatar os
prontuários dos atendimentos que eu e Dona Tininha tivemos e espero que essa
relação finalmente acabe.
Às 22 e 30, cheguei à casa onde atualmente moro e que será a nova casa e lar do Marquinho que resgatei no ‘Servidores do Estado’. Ironicamente, parei o carro justamente em frente à velha casa onde ele morou e de onde, simbolicamente falando, ele saiu há trinta e cinco anos para uma sessão de terapia e por lá ficou. Outro reencontro marcado acontecia.
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