Em meio à pandemia me fiz muitas perguntas, mas recebi três que me
chamaram atenção: (i) se já havia nascido em mim algo que levaria para o resto
da minha vida, (ii) o que deveria fazer mais e (iii) o que deveria deixar de
fazer. Nenhuma dessas perguntas eu havia me feito, confesso, embora desde o seu
início o isolamento forçado tenha sido um convite a uma viagem pelos interiores
da casa, do lar e de mim mesmo, convite que a ele não declinei e que me rendeu
muitas reflexões.
Ao pensar sobre o que nasceu em mim durante a pandemia e que
levaria para o resto da minha vida, me deparei com uma grande ironia: o que nasceu
em mim na experiência de grande vulnerabilidade que é essa pandemia fora de
controle é a consciência de que preciso aprender a morrer. Com a pandemia, a
morte, sempre tão próxima e ignorada por mim, ficou tão evidente e tão dentro
da pauta de pensamentos de todos. Comecei a compreender que temos que ser
educados para a vida e para a morte. No meu caso, nada tão simples, pois
contrasta com algumas crenças que embalaram minha corrida pela vida: sempre cri
que viver é, acima de tudo, lutar para não morrer. De repente, tudo mudou e
contrário às minhas vontades e às referências que tinha dessa luta.
A mudança brusca de rotina, as forças que me impuseram um jeito
de viver contrário ao meu desejo, o afastamento de quem amo e do que desejo, a
solidão, a dificuldade de encontrar a solitude, a perda de controle sobre as
coisas, o inimigo invisível e mortal...tudo isso me mostrou que nada sei sobre
despedidas, resignação, conviver melhor com contrariedades, impotência,
angústia de viver e de ver e sentir isso escorrer pelas mãos e sem caber em
palavras. Sei o que é querer, mas nada sei sobre deixar ir ou deixar para trás;
sei sobre sair e voltar, mas nada sobre ir sem olhar para trás. O isolamento
deixou isso claro para mim.
Em isolamento forçado, me vi visitando realidades desagradáveis,
doídas, como estar a dois metros da minha filha e não poder abraçá-la para
evitar contaminação, de ir embora para minha casa sem saber se vou vê-la
novamente. Principalmente, me vi revisitando situações, momentos, lugares e
pessoas, onerando perigosamente meu psiquismo com duras lembranças e
sentimentos tristes quando precisava dele o máximo saudável. A senha estava
clara: associado ao meu não saber morrer está o meu não saber fazer luto.
À espera de um recomeço da vida, para começar a aprendizagem
sobre a morte, decidi que a resposta inicial seria, no isolamento, aprender a
fazer luto para fazer o luto de todos os lutos que não fiz. E assim está: com
imenso medo de morrer, começo a aprender sobre morrer, fazendo não um movimento
de desapego em relação ao que tenho e quero ou ao que ainda posso ter e querer,
mas em relação ao que quis, tentei, tive, fiz e que ainda não aceitei ou não
compreendi a sua passagem, investindo energia nisso sei lá por que.
Pensar no que deveria fazer mais e no que deveria deixar de
fazer depois que a vida voltar ao normal também proporcionou um grande
aprendizado. Começando pelo que deveria deixar de fazer, isso ficou bem claro
para mim no dia em que assisti a uma live do Cirque du Soleil. Em
meio ao extasio provocado pelo show que eles entregam, pela apreciação objetiva
da incrível performance, individual e em grupo, realizei que aquilo é possível
porque eles literalmente se entregam de corpo e alma ao alcance dos objetivos e
metas que têm. Enquanto grupo, sabem o que querem produzir nas pessoas,
entendem como cada um pode contribuir com isso, se conhecem e têm confiança uns
nos outros, se comprometem, treinam e aperfeiçoam. Enquanto membro, cada um
daqueles profissionais parece ter uma clareza sobre o que quer para sua vida e
literalmente entrega seu corpo e alma aos papeis que desenvolve. O mínimo sinal
de uma não-entrega ficaria evidente numa performance desapontadora ou pouco
envolvente. Ao realizar isso, me perguntei: “Onde e quando você se entregou de
corpo e alma, Marco?”.
Decepcionado, visitei as memórias e constatei que até então me entreguei
bem pouco de corpo e alma, do amor ao labor; que poderia ter mergulhado nos
diferentes fazeres em que me envolvi, do técnico-administrativo ao docente, passando
pelo profissional de vendas e marketing e pelo ser que gosta de escrever.
Invadi a seara dos meus desejos em busca do porquê, de entender se faltou a
clareza sobre o que queria para minha vida, insegurança sobre minhas
capacidades ou garantias de retorno ou se esbarrei no medo de me perder ou
sofrer. Ainda não encontrei respostas claras, mas defini que o que deixarei de
fazer é o não-fazer ou fazer menos ou fazer pouco, é o deixar de criar sentidos
para minha vida poupando corpo e alma, é o poupar corpo e alma dos riscos do
encontro com o que intuo e sinto ser bom para mim. Talvez precise ser mais
mulher e menos menino ressentido com os dramas que experimentei nessa vida, que
talvez precise dar à luz e cuidar de algo que muito desejo.
Ao pensar sobre o que deveria fazer mais daqui para frente, me dei
conta de que o mais correto seria o que não deveria deixar de fazer. Uma das
coisas que o isolamento me impediu foi ir ao encontro das pessoas, amigos e
parentes, de visitá-las, abraçá-las, de olhar firme em seus olhos e segurar em
suas mãos, de delas e de suas vidas saber, de a suas histórias beber e comer,
de a elas servir, de nelas investir e deixar claro que eu realmente me importo
com elas e que são importantes para mim, de dizer que sou grato ao que por
ventura fazem ou fizeram por mim ou pelo simples fato de um dia nossas
trajetórias terem atravessado umas às outras. Ironicamente, pouco antes da
pandemia havia pensado que buscava mais as pessoas do que elas à mim, que
talvez merecesse reciprocidade, um claro instante de insegurança sobre ser
desejado. Bem, fato é que estou há mais de quarenta dias sem poder fazer o que
afinal muito gosto de fazer, pois muito prazer me dá e aceito que não deveria
ser pautado pela reciprocidade, mas pela perseverança no que acredito e me faz
bem.
Por fim, confesso que demorei a compreender o que Renato Russo dizia com “Todos os dias/Antes de dormir/Lembro e esqueço/ Como foi o dia/Sempre em frente/Não temos tempo a perder”. E assim, depois de muito tempo, esse trecho de Tempo Perdido se tornou base para um mote do resto que ainda me há de vida: “Desejar, incidir sobre o dia, não temer, fazer, lembrar e esquecer como foi o dia, voltar a querer, seguir em frente, sem peso a carregar, sem tempo a perder”.
Estou em êxtase pelo caminhos e meandros que suas reflexões me obrigaram a percorrer.
ResponderExcluirNo momento não consigo descrever esta viagem. Pois ainda estou em curso.
Obrigado.
Que profunda reflexão sobre a impermanência. O quanto ou como vivemos o dia, o presente?
ResponderExcluirSão muitas as reflexões que a situação têm nos trazido a cada dia. A forma como vivemos ao longo de uma existência se mostra frágil e, às vezes, até fútil diante de tudo o que temos visto e vivido.
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