Seropédica, 22 de agosto de 2006. Experimentei hoje um dos momentos mais bonitos e
felizes da minha vida. Meu objetivo era visitar tia Conceição e saber da sua saúde, assolada por forte
depressão, mas o que lá ocorreu superou minhas expectativas, ensinando-me algo
mais sobre o que significa riqueza.
Quando cheguei em sua casa, ela conversava com
o tio Antônio na sala, enquanto tia Ana e tia Mariana faziam sala para os dois.
Na cozinha tinha mais pessoas, mas resolvi permanecer para depois cumprimentar
os outros. Pelas vozes que ouvia, sabia se tratar de outros tios e primos,
muitos deles filhos da tia Conceição. Em silêncio observei a conversa dos tios
mais velhos da família da minha mãe, ambos com mais de 70 anos. Falavam da
infância vivida em Pedro Teixeira, da vida dura que tiveram, das limitações e
desafios para sobreviver quando as crianças mais velhas tinham que ajudar os
pais na lide diária. Uma vez mais a vida me colocava na posição de observador privilegiado
de pessoas cujas narrativas dão conta de toda história que antecede minha vinda
ao mundo: suas vidas atravessam a vida da minha mãe, irmã mais nova. Contavam
suas vidas e eu no gostoso de exercício de imaginar os momentos narrados, mesmo
sabendo que conhecia Pedro Teixeira e Lima Duarte o suficiente para reconhecer
os locais descritos.
Um momento de extrema sensibilidade ver meus tios falarem de
uma vida da qual estamos bem distantes hoje em dia. Suas falas mostravam a
relação mais próxima com a natureza e, consequentemente, com os alimentos que
consumiam e com a paisagem da qual faziam parte. Palavras e rostos que
comunicavam quanto sofreram e lutaram. Meus tios e tias atravessaram décadas e
caminhos acreditando na vida, na família, em Deus, no trabalho e na correção de
caráter; passaram por muitas mudanças do mundo sem que tivessem o auxílio de
conhecimentos obtidos em escolas e livros; ao seu jeito resistiam e se
adaptavam a essa loucura que é a mudança de valores experimentada pela
sociedade. Inevitavelmente, lembrei-me da minha mãe e em silencio chorei sua
morte, que completará 25 anos no mês seguinte. Ela fez parte dessa jornada de
Ferreiras e Oliveiras que começou em Pedro Teixeira e Lima Duarte. Jornadas
marcadas por dificuldades, mas também por muitos êxitos.
Tempo depois chegaram outros primos e também os tios
Tiãozinho e Zé Grande e as respectivas esposas. A casa encheu ainda mais.
Finalmente, fui para a cozinha, repleta de pessoas que estavam bem, sorriam
soltas e aliviadas, faziam barulho comemorando a melhora da tia Conceição e,
certamente, a dinâmica daquele encontro marcado pelo destino, por Deus. A impressionante
cena da casa cheia me fazia fixar numa imagem que carrego de como deveria ser a
minha vida: próxima dos parentes e sempre os encontrando em cozinhas repletas
de gente proseando e narrando suas histórias.
Todos na
cozinha proseavam animadamente e, depois de cumprimentá-los, fiquei apenas
observando. Dei-me conta de que era 18 horas, horário que automaticamente me
leva ao tempo em que meu pai ouvia a ave-Maria pelo rádio, pedia que ficássemos
em silêncio e ao final nos dava água benta para beber. Não sou religioso,
desenvolvi pouca espiritualidade, mas são sagradas para mim a imagem do copo
sobre o rádio e a inconfundível melodia da ave-Maria saindo de uma frequência
AM. Nossa casa era iluminada por fortes lâmpadas florescentes, as mesmas que
iluminavam a cozinha da tia Conceição e faziam aumentar a intensidade da
experiência. Hoje, não tinha rádio
ligado, nem a ave-maria sendo declamada, mas tinha um raro encontro de gente de
muita fé; encontro que há muito eu não via e que a alegria generalizada tornava
o momento ainda mais importante. Lamentavelmente, criamos o mal hábito de só
nos encontrarmos para chorar e nos despedirmos dos mortos.
O cheiro de café passado na hora deixava o ambiente
ainda mais gostoso e eu, que a tudo observava, ia súbita e imageticamente sendo
abraçado por minha mãe. Estava na privilegiada condição de representante dela naquele
momento que tinha a cara dela: se lá estivesse, estaria gargalhando alto na
cozinha, como sempre fazia. Como me
fez bem o momento em que pude ser o representante de um dos 12 filhos que
Marcelino e Júlia tiveram, e que passaram, ainda que por momentos e intensidade
diferentes, por tudo o que Tia Conceição e tio Antônio falavam na sala. Pessoas
que sobreviveram aos desafios de uma vida estabelecida num lugar pobre e
adverso, que venceram picadas de cobras e as desventuras do vovô, que cedo adoeceu
e pobre ficou; pessoas que, como puderam, ajudaram-se umas as outras para
prosseguir.
Mesmo estando na condição privilegiada, acabei lamentando a
ausência da minha mãe. Lamentei e chorei, ainda que ela me abraçasse naquele
instante e que ao meu lado estivesse sentada e olhando feliz tudo o que
acontecia. Essa sensação de perda é irreparável e quantos encontros como esses
não se perderam nesses quase 25 anos em que se foi. Toquei o território das
perdas e logo o traço melancólico que herdo dessa família se fez presente:
entre todos que lá estavam, eu era o mais novo; fiquei fitando homens e
mulheres com mais de 50 anos e que trazem no rosto a marca do tempo que passou
de forma muito especial: nossa família foi marcada por perdas muito prematuras
como a da minha mãe, dos tios Jacinto e do tio Fernando, dos primos Vilmar,
Pedrinho, Marinho, Rosângela e de outros primos e tios de quem não me lembrava
no momento.
Sob forte emoção, tentei me prender ao que
posso viver, esquecendo o que não pode mais ser vivido. Transitava entre a sala
e a cozinha ouvindo atentamente às conversas e em silêncio permaneci tentando
decifrar a senha do extraordinário momento. Até que veio um estalo: os desafios
que nos espreitam hoje são bem diferentes dos que essas mulheres e homens tiveram
lá atrás; nós, mais remediados e estudados, precisamos reconhecer que o grande
fantasma é a desintegração das relações provocadas por essa vida que nos faz
sair para outras cidades e viver outros grupos de pessoas, negligenciando os
reencontros com os que proporcionaram oportunidade e aprendizagens fundamentais
para que muito bem estejamos.
Sim, ali estava apenas uma parte da família de minha mãe, uma parte de toda riqueza imaterial que nos trouxe até aqui. Sim, foi uma festa rever tio Noquinha, tia Zilda, tia Julinha e muitos outros. Ainda assim, feliz e sensibilizado com a experiência e sabedor da senha desse código do viver, revisitei uma sensação desconfortável: nós, os mais jovens, as segunda e terceira gerações, deveríamos estar mais próximos e unidos para enfrentar os desafios desse tempo, mantendo alguns valores históricos. A riqueza material média que temos, maior que a da geração anterior, passa a falsa sensação de que somos melhores ou mais fortes e não fará brotar nos amigos de ocasião os sentimentos e emoções que ajudam a explicar a trajetória da família até aqui. Não podemos nos esquecer de que sozinhos não vamos longe e que é muito rico, raro e nobre o que move os que realmente escolhem estar ao nosso lado nessa dura caminhada pela vida.
Sinto as mesmas indagações e sensações vividas por você.
ResponderExcluirTenho em mim a necessidade constante de beber desta fonte fecunda que é a união, cumplicidade e empatia que nossos entes amados nos deixaram. Tenho certeza de que este é o maior tesouro que herdamos e que deve ser exercitado e passado para nossos filhos.
Emocionante real e por que não, triste constatação esta da ausência cada vez maior de laços e afetos!
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