Seropédica, km 54, 16 de dezembro de 2020. Durante dois meses deixei as ixoras crescerem sem aparar. Desde que foram plantadas, foi o maior tempo que assim ficaram. Avolumaram-se, floresceram...ficaram lindas.
É um espetáculo
flores rosas, vermelhas e amarelas misturadas ao verde forte da folha de
ixoria. Entretanto, vivenciar tal espetáculo tem seus preços: aumenta a
sujeira, pois as flores desbotam bastante; os galhos avançam sobre a área da
varanda e ficamos com menos área para perambular; e sempre aumenta a
possibilidade de aparecer alguns lagartos, aranhas e pequenas cobras.
Devido ao ninho que um casal de biquinho de laca começou a
construir entre as folhas, fiz a concessão de não aparar. Convivem por aqui
sabiás, rolinhas, beija-flores e há muito não apareciam biquinhos de laca e
canarinhos. Antes da decisão, porém, passei por uma pequena indefinição: o
ninho estava bem exposto, o que era uma ótima oportunidade para pequenos
répteis se alimentarem. Pensei na alegria que dá ter tantos cantos de
pássaros durante o dia e decidi correr os riscos das plantas crescerem e darem
conta da escamoteação do ninho. Nesta semana, comecei a ver pequenos biquinhos
de laca voando por aqui, o que sinalizava que já tinham deixado o ninho. Havia
chegado a hora da poda.
Decidi que mexeria hoje nas ixoras e que tiraria fotos do antes
e do depois. Ao contemplar o espetáculo de cores pela tela do celular, confesso
que bateu um sentimento de pena. Peguei a tesoura e, antes de fazer a primeira
intervenção, ouço a voz da Malu:
— Caramba, você vai acabar com toda essa beleza?
— Malu, estamos diante da beleza de plantas robustas, saudáveis
e cheias de flores, mas temos um problema de ordem prática: cresceram demais e
estão atrapalhando a passagem [Apontei para ela o caminho bloqueado], sequer
falei da ameaça de bichos.
— Você vai realmente trocar beleza por isso aí?
O dilema estava posto: mexer nas ixoras sem dar dó, sem me
sentir mal por acabar com um espetáculo tão lindo. Em outras palavras: atender
demandas de funcionalidade e fluidez da vida cotidiana ou atender demandas
estéticas também muito caras para nós?. Estava dividido, mas tentava não
transparecer. Fui tomado pelo pragmatismo e não dei muita atenção a outra
resolução que não fosse a poda. Cheguei a pensar: “Resolve isso logo, sua vida
é cheia de dilemas precisando de soluções”.
Comecei a poda e Malu apontava às flores lindas caídas ao chão, misturadas aos galhos, pontuando o ‘absurdo’ que eu estava fazendo. Afastei-me para contemplar por outro ângulo e o visual havia se transformado. Deu dó ver que ‘matei tantas flores, que acabei com o espetáculo’. Falei para Malu que o que fazia era uma poda e que esta tinha uma função vital na história da planta, dado que voltariam a se desenvolver, com mais forças até, e continuariam a cumprir o papel delas em nossas vidas. Ela se calou, continuei a poda, torcendo para que não me questionasse se a mesma não exigia conhecimento e destreza para obter o seu máximo efeito. Além da poda que fazia ser literalmente desorganizada, comecei a questionar: “O que você entende de poda, Marco? Chame alguém que realmente saiba para dar resultado melhor”. Não voltei atrás. “Tenho que passar por isso”, pensei.
Concentrei-me no corte dos galhos, mas imediatamente dei-me conta da sutileza de um conteúdo implícito e inerente àquela interação com Malu: eu falava de poda de flor, mas, figuradamente, nós humanos também sofremos podas. Baseado no que falei para ela, comecei a me questionar sobre o que de fato eu entendia sobre podar e ser podado e como me saí em ambas situações. Podar alguém soa meio autoritário ou violento, mas em nosso processo de desenvolvimento passamos por muitas podas. Lembrei de Freud e da castração, uma interdição que é quase um podar ou corte drástico no prazeroso fluxo relacional da criança com o seu primeiro e caro objeto: a mãe. Insistindo na metáfora da poda em nós, realizei que ela vai se dando em diversas fases do nosso desenvolvimento, nesse processo de, via renúncias e cortes, chegarmos ao nosso melhor jeito de estar no mundo.
Parei, sentei em frente às ixoras e fiquei pensando: “O que meu
jeito de estar no mundo indica sobre como sou ou fui ixora nessa vida?” Lidar com
podas ou limites, perdas e cortes, não foi nada fácil para mim. Veio à mente
uma verdade inconveniente: sempre fui muito sensível e reagi mal às limitações
e impossibilidades que tive e estive continuamente voltado às satisfações das
minhas demandas e sem me ter permitido viver resignada e amadurecidamente as
podas, isto é, sem ter aprendido a conviver com renúncias e inerentes vazios e
dissabores que elas geram.
Aprofundei-me nos pensamentos e captei a irônica situação em que
se via o homem da poda: ainda não aprendi a devidamente fazer a escolha imposta
pela vida entre privilegiar demandas funcionais (que atenderão ao coletivo) ou
estéticas (que atenderão às minhas satisfações). O sentimento de dó que
experimentei por cortar as belas flores das ixoras era uma senha clara: o
podador não amadureceu o suficiente para compreender que ao sorriso de ver uma
nova flor brotar sempre precederá um choro com a flor que cairá (e este choro,
confesso, sempre me foi mais caro).
Sentado em meio a flores e galhos caídos, os pensamentos
escancaravam o irônico da minha vida: ela se encontra totalmente transformada
por mudanças que quis empreender e que acabei por não negociar devidamente com
as pessoas que seriam afetadas por elas. Mudanças que geraram transformações na
rotina dessas pessoas e em conflitos de interesses que demandavam minha
liderança para o manejo. Acabei por não me sair muito bem no manejo do processo
que começou quando decidi por coisas como morar no Rio de Janeiro, me reaproximar
do meu filho e sair da área de marketing e gestão e fazer psicologia. Passados
sete anos do início do processo de alcançar meus objetivos, tudo mudou em minha
vida: moro em outro lugar, dou aula em uma área nova, estou longe de pessoas
que realmente amo, enfim, diariamente lido com o enorme furo ou vazio ou
dissabor que se estabeleceu ou se acentuou devido a tantas transformações e às
consequências psíquicas, afetivas e econômicas das mudanças. Por vezes, me pego
‘olhando para trás’ e assustado com tantas flores que caíram.
Fazendo a poda das ixoras e dialogando com Malu, aumentei a consciência
de que há tempo para chorar a flor que cai e também para notar e acompanhar a
flor que brota, apesar de tudo parecer tão corrido atualmente e de que preciso
aumentar a consciência dessa transição e de vivê-la adequadamente: prestar
atenção ao jardim e à varanda e com eles se envolver, deles cuidar e junto a
eles encarar os ciclos da vida e os inerentes perde e ganha.
Terminei a poda no mesmo dia e, apesar de ainda engatinhar no
aprendizado sobre podas, me contentei por ter sido ‘suficientemente bom’ no que
fiz. Sobre as flores que brotam após cortes, sei que logo, logo as ixoras se
avolumarão e belas flores aparecerão, gerando novamente o dilema entre
viabilizar o fluxo pela varanda ou ficar mais tempo contemplando o ganho
estético de ter belas flores. Da mesma maneira, sei que as mudanças que
empreendi já começaram a surtir efeitos positivos, que novas e belas flores
brotaram em minha vida, mas ainda preciso prestar a devida atenção a elas.
Fundamentalmente, copiei a sutil mensagem do viver entremeada numa simples
interação entre mim e Malu: elaborar
adequadamente o dilema entre viabilizar o fluxo pela varanda (o viver saudável
de um coletivo) ou desfrutar da beleza de tantas flores (de continuar sendo tão
sensível e orientado às satisfações das minhas demandas individuais). Quanto a
ser podado, perto dos 50 anos e mesmo não querendo sofrer podas, sei que a cada
dia a vida está fazendo muitas em mim. Envelheço. Além disso, estou realmente
aprendendo a renunciar satisfações e a negociar mudanças.
Assim como em outros texos compartilhados por você, "A poda" descortina a perspectiva da autorreflexāo sobre o sentido de vida - assunto tāo temido e manifestado pela alienaçāo de muitos, pois pouca compreensāo revelam ter a respeito de si próprios e, por conseguinte, do fundamento de suas decisōes e da forma errática com que se conduzem na vida. Em alguns momentos nāo me excluo desse lugar.
ResponderExcluirO sentido de vida se manifesta nas açōes e, sobretudo, em obras realizadas as quais assumem formas diversas, como seus escritos, por exemplo.
"A poda" me lembrou Confúncio: "o homem nobre dedica seus esforços às raízes". Através de sua autonarrativa somos convidados a agir a partir de algumas possibilidades. Parece que elas saltam de sua autoconsciência e abrem caminhos de encontros, desencontros, dilemas da rotina diária etc. O fato é que no percurso de cada um deles, podemos exercer nossa liberdade subjetiva. O texto narra momentos cruciais em qualquer trajetória existencial, quando precisamos renunciar O estético para acumular força interior e, a partir dela, atingir a harmonia do "Tao" (Caminho que emergem as coisas de forma eterna, invisível, silenciosa e tranquila para o tempo e o espero).
Me sinto grata ser afetada pela sua virtude, que aqui, foi materializada em forma de palavras.
Feliz poda!!