Finados sempre foi um dia especial para mim. Eu não sabia
definir com precisão por que era assim, mas a experiência me trouxe as dicas que precisava
para o entendimento desse delicado código do viver. Onde celebrávamos a morte
eu via uma celebração da vida: o dia de finados é pura criação e recriação.
Começava de véspera a arte de pegar as memórias dos que se foram e criar o
cenário para o famoso dois de novembro, quando íamos ao cemitério, o culminar do
pesaroso ritual. É criação e recriação constantes e a danada da memória,
chegada a uma atualização, é quem faz isso.
Atualmente não vou ao cemitério visitar os túmulos de meus pais, mas assim que abro os olhos vou direto para o ateliê das lembranças
e começo a criar e recriar. Não sou dado às artes da gastronomia e da
hospitalidade, mas sou filho de mineiros, ponho a mesa, preparo o lugar de cada
um na mesa, cuido de cada detalhe. Só saio de lá quando todos se vão ao final
do dia. Deixo a bagunça para arrumar nos dias que seguem e vou para a cama
descansar.
Antigamente era diferente. “Prepare-se, é dia de celebração dos
mortos”, dizia-se solenemente ao me acordar. Eu respeitava a ausência de vida nos
olhos de todos. “Hoje é dia de finados”, comunicava-se e tudo mudava na casa:
introversão, lágrimas, frases feitas, poucas palavras: “Ponham uma roupa boa,
demonstre seu afeto”, “Você leva as velas e vê se não esquece o fósforo”, “Você
leva as flores”, “Já falei com o rapaz que vai capinar em volta do túmulo”, “Vamos
cedo porque não quero pegar o cemitério lotado e temos que passar no Orlando Cocó para levar um frango para o almoço”, “Fecha o olho na hora da oração, seu
demente”.
Na hora do almoço, palavras praticamente cassadas, lágrimas
contidas. Mas pensamentos são discretos e pensar, ainda que gere muito barulho
dentro da gente, é ato de ousadia e resistência às cassações. “Como finaram se
o que fizeram foi uma passagem? Se saíram daqui para ali, pra lá ou acolá,
vivos estão, ora. Como morreram, se não há um dia em que deles não me lembre,
em que a memória não os traga ou nos leve para lugares e momentos especiais?”,
pensava calado enquanto olhava para a cadeira de dona Tininha vazia na mesa.
“Se deixamos a cadeira, por que não pusemos o prato e os talheres dela?”,
continuava a reflexão. Um pouco mais de ousadia na imaginação e lá estava dona Tininha
nos fazendo companhia, piscando o olho para mim, sorrindo discretamente,
orientando a respeitar o silêncio.
A experiência chegou e ousadia e resistência tiraram a imagem da
mesa da cozinha e a levaram para o ateliê das lembranças. Começo os preparativos, deixo as
portas abertas e aos poucos todos chegam. Começa a tocar Trio Parada Dura, seu
Antônio sorri feliz. À dona Tininha, por força do tempo e recriação da memória,
preparo uma playlist da Clara Nunes. Ela gosta quando toca Feira de mangaio,
aceita com elegância o possível lapso em 40 anos de saudades. O tempo passou,
as coisas melhoraram e hoje tem quase de tudo: frango, peixe, salada, fruta,
cerveja e vinho, refrigerante e sobremesa. Atualmente pode exageros. Mônica
pede uns louvores, Cris traz uns toques de atabaque do seu terreiro e eu não
vejo a hora de tocar Milton Nascimento. Malu, Leo e Mariana, que chegaram zoando
a todos, nos abraçam, pegam seus lugares e começam a falar das novidades de
suas vidas profissionais e afetivas.
Tudo muda a cada ano para esse dia. Dona Tininha, artista da
costura, exige que ninguém repita roupa e estamos todos no fino do traço e do
ponto. Seu Antônio não gosta de tirar aquela camisa surrada do Botafogo do
brasileirão de 1995, mas faz a parte dele; reclama, mas dona Tininha o provoca
com aquelas sonoras gargalhadas. Algumas coisas não mudam, é claro, precisam
permanecer, são elas que nos guiam no passar do tempo. Mas louças, talheres,
temperos, quadros, tinta da parede e das madeiras e do piso são todas novas a
cada ano. Mônica faz a oração, eu e Malu somos os únicos de olhos abertos. É
serve aqui, pega ali; é festa e a gente se refestela.
Quando me dou conta o ateliê é só alegria. Já estamos no café da
tarde. Chegou a hora do Milton Nascimento, está tocando Encontros e Despedidas.
Paro de comer a broa de fubá e então me permito um instante de silêncio.
Contemplo com contentamento Mariana, Malu e Leo discutindo as coisas do seu
tempo, Mônica reclamando com o pai a demora dele fazer uma visita à casa dela,
enquanto mãe e Cris falam sobre a melhor maneira de cuidar das samambaias
choronas. Maya, Joana D’arc, Cléo e Freud estão à porta latindo, querem atenção
os safados. São quase dezoito horas, está na hora da ave-maria. Colocamos dois
copos com água sobre o rádio, Júlio Louzada solta a sua voz e a agua está
benzida. Pai serve da benzida para mim, Cris e Mônica, é muito solene. Mãe, brincando
com Léo, Mariana e Malu, mede a golada de cada um e pede para não para babujarem
no copo. “Se não sobrar para mim é pecado, hein”, diz ela sorridente.
A folhinha na parede informa que amanhã é dia 3 de novembro.
Milton Nascimento informa que “E assim chegar e partir/São só dois lados da
mesma viagem/O trem que chega é o mesmo trem da partida/A hora do encontro é
também despedida”. Abraços trocados, sorrisos e lágrimas, recomendações e nas
faces de cada um uma enorme gratidão. Fechos os olhos, todos se vão.
(2 de novembro de 2021)
São dois lados da mesma moeda!! Brindemos a isso, amigo!!!!
ResponderExcluirEncontros e partidas, e assim seguimos.... Gratidão!!!!
ResponderExcluirComo sempre nos colocando em lugar de encontro com nossas emoções
ResponderExcluirComo é um lindo esse reencontro, como é maravilhoso viver e reviver essas memórias.
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