Rio de Janeiro, manhã, 14 de maio de 1998. Em mais um interessante capítulo da minha vida, fui ontem com minha namorada ao Museu do Índio, em Botafogo. Ela foi entrevistar o índio Carlos Tucano, para uma matéria da revista onde trabalha. No fim, o que seria mais um momento para fugir do ócio desse desemprego que já dura cinco meses, tornou-se outro momento de lição e aprendizagem sobre nossa passagem pelo tempo. Foi a primeira vez que estive frente a frente e que pude conversar com um índio, a base da sociedade brasileira, enfim, os primeiros brasileiros.
Ficamos quarenta e cinco minutos ouvindo Carlos Tucano contar sua história, a do seu povo e as lutas para a sobrevivência e preservação de sua cultura. Abri mão das minhas apreensões de ser urbano, desempregado, para ouvir o índio discursar sobre a importância da preservação dos valores, rituais e costumes de sua gente. Gente que, segundo ele, não deixa registros, apenas vivem. O índio não escreve, filma ou pinta, mas planta, caça, faz artesanato e, agora, absorve e é absorvido pela civilização, disse ele.
Carlos Tucano falou de suas raízes, da interferência dos missionários, da demarcação de suas terras, dos seus deuses e do mundo. Em um momento chegou a falar sobre a globalização e de como inserir sua gente nesse contexto! Um povo que luta pela demarcação de suas terras, preservação da sua história, e com o desafio de viver em um mundo globalizado, sem fronteira. Um índio falando da importância de resgatar a sua história em um mundo onde o tempo não pára.
Um dos grandes momentos da entrevista foi quando Carlos Tucano falou com sua calma, aparentemente inabalável, que o que ele mais gosta de fazer é “curiosar”. É importante “curiosar” para descobrir mais sobre a vida e o mundo, disse o índio, mas sem perder de vista as origens e as lutas pela sua preservação. Ele falava da fragilidade do ser indígena pulverizado pelo mundo, deslumbrado, encantado pelo “mundo das coisas”, mas que, se não se cuidar, não terá terra para pousar.
Ouvindo estas palavras, voltei-me imediatamente para a história da minha família, boa parte sedimentada em algumas cidades, mas que não se cuida e está pulverizada pelo Brasil desse fim de século. Somos muitos, mas atualmente estamos distantes, banalizados pelo consumo e pelo trabalho, apenas acompanhando, e sem deixar qualquer registro, o tempo que não pára. Somos muito semelhantes ao índio: meus familiares não escrevem, filmam, caçam ou pintam, poucos ainda plantam, trabalhamos isoladamente, sem compartilhar conhecimentos e aprendizagens; absorvemos e somos absorvidos pela vida econômica.
Existem poucos registros dos meus antepassados, sequer temos a posse de algum pedaço da terra de onde vieram meus avôs. Os parentes mais velhos estão falecendo e com eles vão, sem registro algum, as lembranças de quando tudo começou, em Pedro Teixeira e Muriaé. Meus avôs paternos e maternos já estão mortos; os primos e irmãos que ainda vivem estão longe de nós, mas perto das terras de onde viemos, morrendo no anonimato. Ironicamente não temos registro algum, apesar de terem tantas histórias para contar.
Levei as lições do Índio para o apartamento onde moro, na Tijuca, atual quartel general das minhas angustias e estranhamentos com a vida. Aqui estou mais longe ainda da nossa “mineiridade”, distante inclusive de Seropédica, onde meus pais se encontraram após suas famílias terem deixado as Minas Gerais. Em Seropédica estão meu pai, tios e primos, todos envelhecendo sem que sejam feitos registros, levando com eles os fragmentos de nossas raízes. Família que só sobreviveu às primeiras ameaças porque seus membros estavam juntos, somaram forças, compartilharam a sabedoria da "lide" na roça e que, depois que saíram de Minas, aprenderam novas “lides”, como a da mercearia e a de dar aula.
Aqui estou, homem urbano, desempregado, desbravando o tempo, querendo aprender nova "lide" longe das minhas raízes da roça, da mercearia e da lousa. Aqui estou, homem urbano, aprendendo com o índio sobre ir ao mundo sem perder os rumos de casa. Desse novo verbo, humildemente colocado, tirei mais uma lição e força para enfrentar esse momento de aflição: é preciso “curiosar” para descobrir mais sobre a vida e o mundo, sem perder de vista as origens e, principalmente, tendo onde pousar.
Lendo "curiosar", lembrei-me de algo que aconteceu comigo certo dia,quando participava de um evento municipal. O tema do evento era "memórias".De repente alguém começa contar a história da vida de uma pessoa da cidade local. Essa pessoa era prima legítima de minha mãe, que inclusive eu o conhecia. No entanto não sabia a origem e nem a história da minha família. Foi necessário uma pessoa "estranha" pesquisar para que eu as conhecessem. Fiquei muito emocionada e triste. Por quê deixamos passar tanta coisa importante em nossas vidas? Essas coisas passam e não voltam mais. Gostei muito do "curiosar", serviu para eu refletir sobre algumas coisas que tenho deixado escapar em minha vida. Amei,PARABÉNS!!!
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