Uma vez recebi em uma rede social
o retumbante comentário de um ex-aluno: “Grande Mestre, saiba que você fez a
diferença na minha formação e na minha vida”. Esta parte estava em letras maiúsculas e os demais dizeres tornavam inquestionável
sua alegria e gratidão.
Iniciei um natural processo de
regozijo, ensaiei uma resposta à altura, também deveras retumbante, mas os
escrúpulos da sobriedade lembraram-me de que estou no Brasil, de como anda a educação por aqui e de detalhes do local onde trabalho, uma Universidade
Federal, o que, automaticamente, levou-me a dar um click no botão curtir e comentar: "obrigado! Fico muito feliz com sua manifestação de carinho. Paz e saúde na sua
caminhada, amigo administrador”.
Comecei a refletir sobre a
essência do comentário -- fazer a diferença. Breves minutos
foram necessários para confirmar, sem deméritos ao meu querido ex-aluno,
algo que já tinha percebido: uma síndrome coletiva do “fazer a diferença”. Algo
que avança sobre nós principalmente no ambiente organizacional e nas sessões de
tratamento ou terapia motivacional que temos em Igrejas, ONGs, Associações etc. A todo instante somos instados, estimulados ou obrigados a "fazer a diferença", tornando-nos míopes para o simples, o básico, aquilo que a experiência, o estudo e a negociação de interesses apontam como o que é o melhor a ser feito.
A síndrome avança e isso me
assusta, pois, pelo menos em relação à educação, sabemos que ainda nem chegamos
ao nível do fazer “o que deve ser feito”, o básico. Como poderíamos, então, fazer
a diferença, inovar o que e no que fazemos? Considerando que faz-se a diferença quando é superada uma
regra ou consenso sobre como fazer algo, pois esta(e) já não produz mais
resultados, embotando-nos o agir e o pensar, ou quando, em momentos cruciais,
geralmente no plano das iminências, alguém toma a decisão marcante que produziu
resultados significativos, excepcionais, digamos heroicos.
Sobre o meu estar professor, é
notório que a ele não se aplicam as condições anteriores do fazer a diferença.
Eu seria insensato se não reconhecesse que, como a maioria dos colegas, tornei-me
professor por causa de um concurso e que não fui preparado para ser educador,
nem no mestrado, nem no doutorado. Também nunca vi qualquer movimento, política
e programa de qualificação ou reciclagem para melhoria das práticas de ensino
dentro da Instituição onde trabalho. Isso não é uma das prioridades nas
universidades, pois todos parecem se achar autossuficientes no tema; nunca
vi discussões ou compartilhamento de material e práticas que levassem a
melhorias no que fazemos semestralmente. Apesar da eminente agonia da educação
no Brasil, é notório que os momentos cruciais ficam para o ensino público fundamental,
pois é ali, naquele eminente e permanente ocaso, que muitas pessoas tomam
decisões marcantes que produzem resultados significativos, excepcionais,
digamos heroicos. O plano das iminências nas universidades públicas é outro, e
este é geralmente confrontado com as longas greves e com o notório esbanjamento
de recursos em obras problemáticas e de recursos como luz e água.
Olho para minha universidade e
vejo a maneira pouco pudica com que nos relacionamos com os esbanjamentos e a
apatia. Estranhos consensos. Professores faltam aula sem aviso prévio e não repõem
as mesmas, e os alunos, os mais prejudicados, não cobram a reposição. Nas primeiras semanas
de aula de cada semestre, a frequência de professores e alunos é baixíssima.
Olho para nossa atuação e vejo que foram defenestradas coisas básicas do
ensinar-aprender, como a cobrança de presença e o acompanhamento, dentro de um
curso, dos desempenhos individuais. Sem contar no suporte psicopedagógico, uma eminência esquecida em um algum lugar bem distante do passado.
Olho especificamente para
mim e vejo que, enquanto professor, muito me comprazo de dizer que geralmente
atuo de maneira apaixonada. Sempre procuro comunicar aos alunos que se do tema
central nada ficar, que da paixão com que atuo venha uma lição. Que ela, a
paixão, seja o elemento que estimule e oriente mudanças sensíveis e objetivas
no comportamento em relação ao envolvimento com o ensino e a postura enquanto
aluno. Pois quem dá paixão merece, no mínimo, uma recepção apaixonada, um
ambiente que fomente a paixão e seus contagiantes desdobramentos positivos.
No mais, procuro cumprir aquilo que nos cabe.
O que acontece com a educação já
é o bastante para nos sinalizar que essa síndrome que leva as pessoas a
irreflexivamente tentar fazer a diferença precisa ser combatida. Não é anacrônica, pois ela vai ao encontro dos usos e costumes de uma época de
deslumbramento com o individualismo, modismos e presumidas inovações, e de contínuo
menosprezo às coisas mais simples, básicas e aprovadas pela experiência. O resultado é que, com gente demais tentando fazer a
diferença, temos uma diversidade de contribuições que em nada ajuda e, para
piorar, só faz aumentar o afastamento delas da reta da equação daquilo que deve
ser realmente feito, deixando-nos perdidos.
Está na hora de começarmos a envolver-nos e aplicarmo-nos com “o que deve ser feito”, com o fazer o básico, pois
o que vemos na maioria das dimensões que compõem a nossa vida é que estamos
aquém, bem distantes por sinal, de um fazer padrão que seja de qualidade ou que
digne nossas vidas, condições profissionais e eminente investimento feito, com dinheiro público, em educação superior no Brasil. Nosso deslumbramento não nos deixa perceber que continuamos
fazendo as coisas de qualquer jeito, ou do jeito que nos é mais conveniente, um jeito que satisfaz ao nosso narcisismo e a outras sutilezas da nossa alma. Se fizermos
o que deve ser feito, isso já será uma grande diferença em relação ao que estamos
acostumados. Principalmente, porque chegar à determinação do que deve ser feito
exige uma complexa estrutura de produção e negociações de consensos sobre elementos que,
necessariamente, nos remeterão ao envolvimento com aspectos mais módicos, sóbrios e
nobres da nossa vida.
Respondendo ao comentário: "Obrigado pela consideração, meu nobre amigo e aluno. Em verdade eu tentei, e apaixonadamente, fazer o que eu devia fazer. Sei que no geral, na soma das contribuições, que é o que realmente interessa, nós fizemos aquém do que você, os demais alunos e toda sociedade que paga seus impostos merecem".
Respondendo ao comentário: "Obrigado pela consideração, meu nobre amigo e aluno. Em verdade eu tentei, e apaixonadamente, fazer o que eu devia fazer. Sei que no geral, na soma das contribuições, que é o que realmente interessa, nós fizemos aquém do que você, os demais alunos e toda sociedade que paga seus impostos merecem".