Em 19 de marco de 2013, estava na casa de Carlos Augusto, Cacau,
no Aterrado, em Volta Redonda. Começamos o contato por questões profissionais,
mas logo fomos para a interação menos formal, muito em função do carisma e
acolhimento dele. Além disso, retornava à cidade que marcou muitas das minhas voltas
pelo mundo e que as dei ora como uma pessoa que queria, mas não sabia definir o
que buscava, ora como uma pessoa que até sabia definir o que queria, mas que
vacilava ao buscar.
Fui participar de um concurso na UFF atendendo ao pedido de um
saudoso colega de trabalho que há meses, ironicamente, me pediu para dar ‘uma mão’
nessa dura empreitada. Desta vez, encontrei dicas para perguntas que ainda não
sabia fazer sobre como conduzir futuras voltas que ainda espero dar em minha
vida e dicas sobre como agi em muitas das voltas que dei. Conheci um pouco mais
sobre o mundo que se descortina aos nossos olhos quando colocamos, com vontade
e intensidade, as ‘duas mãos’ no timão do navio que escolhemos para navegar
pela vida.
O dia de trabalho foi cansativo, um dos menos inspiradores e mais
tênues da vivência acadêmica: em um concurso decidimos, ao mesmo tempo, sobre o
futuro da organização e das pessoas que nele se inscreveram. Concurso público
para professor é algo muito sério: um sim abre as portas da organização para
alguém que terá a responsabilidade de construir, junto com os demais colegas, o
futuro da organização; se ele não tiver essa vontade, ou alguma outra que seja
nobre, quem paga é a organização; por sua vez, um não aponta portas de futuros
possíveis a serem desconfortavelmente abertas pelos que ficam pelo caminho.
Infelizmente, não alcançamos as sutilezas da alma no processo de avaliação do
concurso, fazemos as avaliações possíveis e rigorosas em provas nas quais
constam códigos de inscrição, não nomes, não aspectos ricos da subjetividade.
Após horas de análise de documentos e provas e de discussões, escolhemos os que
se aproximavam um pouco mais da porta de entrada da universidade: estavam com
as mãos praticamente na porta da universidade, bastava não errar demais no dia
seguinte.
No fim da tarde, saí da prova e fui visitar Cacau, em sua
empresa, localizada no mesmo bairro da universidade. Participei de uma breve
reunião junto com alguns membros de sua equipe e conversamos sobre negócios e
dramas organizacionais, como conflitos interpessoais, que, por hora, abalavam
sua equipe. Apesar da agradável conversa, em pouco tempo estava extenuado,
desejando fortemente ir para um hotel e ficar sozinho. Recebi a visita de um
conhecido sopro de sensibilidade que levou para longe o meu desejo de falar e
me entregou uma imperiosa necessidade de calar. Naquele instante, tudo o que eu
acreditava precisar era ficar sozinho e refletir sobre a vida, recorrer ao
expediente de ficar pensando sobre o que fiz no dia, o que tenho deixado de
fazer e o que preciso fazer à frente. Estava ensaiando minha ida para a busca
de um quarto quando Cacau me solicitou uma carona e convidou para dormir em sua
casa.
Atendi ao seu generoso pedido e logo estava em sua casa, já
ensaiando as ações que faria para ir direto ao descanso. Assim que chegamos,
fomos recebidos pelo barulho de seus filhos, Olívia e Tom. Olivia, de três
anos, me chamou para sentar no chão do quarto e ler o livro da Bela Adormecida.
Sem a menor cerimônia, foi me contando a história. Do seu jeito e com sua voz
trêmula, por vezes gaga, me contava o que via naquelas figuras. Chamou-me a
atenção duas sonoplastias: imitou o som do fogo do dragão saindo pela boca e a
dor da Bela Adormecida que se machucava no tear. Lembrou-me das maldades da
Bruxa e fazia a careta ideal para aquela interpretação. Como num passo de
mágica, levantou e começou a procurar um termômetro para medir a febre de um
boneco da galinha pintadinha que pairava ao seu lado. Em minutos, o
desconhecido que chegou com o pai já fazia parte do mundo dela.
Após muita insistência da mãe, que há minutos pedia para que me
deixasse lanchar, fomos para a sala, não para lanchar, mas para achar o
termômetro. No meio do caminho, um velocípede da galinha pintadinha, ganhado naquele
mesmo dia. Olivia imediatamente me pediu para empurrá-la pela sala. Comecei a
empurrar o carrinho e a pensar no que precisava fazer nos dias seguintes.
Empurrava com uma mão, enquanto tinha a outra no bolso da calça. Enquanto
empurrava, só fazia olhar para as águas que passavam no Rio Paraíba do Sul e
pensava nas minhas questões. De repente, Olivia pediu que parasse, virou para
mim e, com cara de descontentamento e fazendo o sinal negativo, me disse “Está
errado”. Pediu minha ajuda para se levantar, pôs a chupeta na boca, me mostrou
as duas mãos espalmadas, segurou com ambas a haste para empurrar e disse: “É
assim que se brinca”. Displicente, não percebi antes sua cara sem sorrisos,
estava fora da brincadeira, não honrava, naquele momento, o estatuto do
envolvimento, algo que fiz por merecer após os primeiros contatos com ela.
Mensagem copiada e decodificada, aceitei meu enquadramento na
brincadeira e também numa vida inteira que me visitava enquanto a empurrava.
Pus as duas mãos, me envolvi na brincadeira, olhei fixamente para nosso
momento, sorrindo inicialmente, enquanto ela, por várias vezes, se virava para
ver se estava ‘brincando direito’, se ia tirar a mão que faltava. Ela começou a
sorrir feliz e seguiu na brincadeira.
Foi um enquadramento histórico. Pensei em quantas vezes minha
filha quis me mostrar que faltava uma mão e não teve a coragem da Olívia ou eu,
displicentemente, não percebi o que ela me comunicava em suas palavras e
caretas. Lembrei de quando ela tinha cinco anos de idade e, num evento do dia
dos pais da creche, quando perguntada sobre o que ela gostaria de fazer quando
crescer, ela disse o que não faria: doutorado. Até brincávamos juntos nessa
época, mas estava claro que o doutorado roubava a outra mão. Imaginei o marido
que fui e era: a mão que faltava e explicava a maneira como me envolvi com a
casa, os afazeres e os sonhos que cultivei junto com minhas mulheres. Imaginei
a mão que faltava em diversas situações de trabalho e aos amigos, vizinhos e
conhecidos. Lembrei de um amigo oculto diferente que participei em 2003, e no
qual, ao invés de comprar, tínhamos que fazer o presente do amigo tirado. Que angústia
senti por não ter habilidade para fazer algo, enquanto os demais faziam
artesanatos, doces, comidas, roupas, danças e músicas para seus amigos ocultos.
Fiz uma poesia sobre a importância do fazer para o meu amigo oculto.
Comecei a chorar, enquanto mantinha com firmeza as duas mãos na
haste, os olhos em Olívia e a mente visitando esses momentos da minha vida. Um
choro sentido, de culpa mesmo. Olivia se envolveu com outras coisas e eu fui liberado
para por as duas mãos nos meus pensamentos e lembranças. À cama e com as duas
mãos no peito enquanto punha o pé na parede para facilitar o retorno do sangue
venoso, realizei que o grande vilão era o hábito de me concentrar demais no que
preciso fazer para alcançar objetivos, coisas que estão distantes no tempo, e
não captar os chamados do agora. Devoto muita atenção a essas demandas
reflexivas, às vezes penso antecipadamente sobre coisas que sequer se
manifestaram. Ambiciono o controle das situações, me diz Angélica, minha mulher.
Quando estou assim, como hoje, dificilmente me desligo das metas ou oriento
minha energia para outro assunto. Em verdade, fico dividido entre diferentes
eventos, me desgasto sem ter abraçado, de fato, ao que me levaria a um sentido
maior de contentamento, mesmo uma brincadeira como essa que tive hoje. Uma
herança, assim acredito, do fato de, durante minha vida, ter dedicado mais ao
aprimoramento de habilidades verbais e cognitivas e ter deixado de lado as habilidades
manuais, de capitalizar na fala e na reflexão como forças centrais com as quais
enfrentaria os desafios que comecei a me propor. Desarticulei o imperioso
encontro entre mãos, mente e fala e que tão bem explica a força do ‘entrar de
corpo e alma’ ou com as duas mãos, como faz uma criança.
As breves lembranças confirmavam que, a partir de um determinado
momento, me afastei de um envolvimento maior com os distintos afazeres que a
vida me apresentou, deixando de entrar de corpo e alma ou com as duas mãos para
aprendê-los com a dignidade dos grandes aprendizes. Não logrei o aprendizado
central de pessoas que, em determinados contextos, me foram essenciais: entrar
com mãos, sentimentos, pensamentos e verbalização em todos os eventos que a
vida os apresentou e dar os exemplos essenciais para que o grupo completasse os
passos que seguiam.
De alguns desses afazeres me afastei radicalmente por puro
preconceito ao achá-los comezinhos demais ou se me diminuísse fazê-los. Resgate
importante: minha arrogância não permitiu me envolver mais intensamente com
tudo o que definiu a vida das famílias dos meus pais, as lides
agropecuária e supermercadista, ricas em manipulação de objetos e solicitantes
da destreza que explicava a sobrevivência deles. Resultado: pensando sofrer ao
fazê-las, me afastei e acabei por sofrer de outra maneira: por antecedência.
Angustiei-me demais durante minha vida pela demora para acontecer das coisas
que elegi como mais adequadas para mim, a maioria delas associadas à intensa
prática reflexiva e comunicativa.
Olívia me alertou para a importância de sempre atentar para o
estatuto do envolvimento: é ele que ensina, a quem realmente lê ou o intui, que
nenhuma palavra ou pensamento, por mais bonito e complexo que seja e salvo
raras exceções, compensa a experiência vivida de corpo e alma, com as duas mãos.
Parabéns por mais um belo texto!
ResponderExcluirOlá Marco...
ResponderExcluirGostei da história completa!
Parabéns.
Um abraço,
Marcos Pinto.