terça-feira, 14 de abril de 2015

Atrás da chave

Domingo, oito de março de 2015. Acordei na casa da minha namorada e não encontrei as chaves da minha casa. O dia prometia: preparávamo-nos para fazer um passeio e eu precisava tão somente cuidar dos cães, trocar de roupas, tirar o carro da garagem e aproveitar o nosso tempo.

Procurei bastante as chaves e a demora em encontrá-las dentro da paisagem conhecida – na casa, no carro dela e onde estivéramos ontem – angustiava-me. ‘Onde, afinal, pusera eu as benditas chaves da minha casa?’, perguntava a mim mesmo em sonoros pensamentos. Meu mal estar com a situação era notório e, para agravar, minha namorada não demonstrava empatia, preferindo, após breve ajuda, ficar parada e fazer a famosa cara de "a chave é dele e ele é quem tem que se virar".

Apesar do mal estar, meus pensamentos automaticamente conduziam-me para uma outra paisagem – a da abstração –, um pouco longínqua, mas que a alçamos com facilidade quando declinamos ao óbvio que rotineiramente nos espreita. ‘Por que deixei-me nessa condição de não poder exercer plenamente meus planos e escolhas e justamente por causa do sumiço das chaves de casa?’, questionei-me. Esse padrão de divagação sinaliza minha chegada à fronteira entre as paisagens. É nessas horas que recorremos ao que acreditamos saber de psicologia, aderindo a bordões como: ‘Pense no significado de perder a própria chave – isso tem algo a lhe dizer’; ‘Tem fatos por trás do óbvio pedindo sua atenção, reclamando uma leitura diferenciada sua’.

Longa viagem de reflexão para um domingo de manhã, para a necessidade óbvia de alimentar os cães e dar a eles atenção merecida. Tratei de ligar para a pessoa que trabalha em minha casa e que geralmente sai com essas perguntas de difícil resposta. Ela comenta: como é que você perde as chaves da sua casa?. Evitei seus difíceis questionamentos. As chaves viriam por uma das Kombis que ela pega para ir trabalhar. Caberia a mim ir até o ponto final e pegá-las, o que demoraria um pouco mais que de costume dado que no domingo a frequência diminui bastante e porque, afinal, é dia de feira.

A feira fica ao lado do ponto final das Kombis e seu movimento influência a rotina daquela parte da cidade de Seropédica – tudo ocorre no ritmo da feira, no vai e vem possível e completamente caótico de pessoas, veículos, motos e bicicletas. Ao final, outra recomendação dela: ‘olha, vai demorar um pouco para chegar’.

Terminada a ligação, dirigindo-me ao ponto final, ultrapassei de vez os limites entre as paisagens e rendi-me à divagação. Comecei a perguntar-me: ‘de onde eu não quero sair ou aonde eu não quero entrar, perdendo essas chaves?’. Rapidamente cheguei ao ponto final, sem ao menos saber em qual Kombi viria e quando. Para chegar lá, passei apressado pela feira, esbarrando em pessoas, indiferente àquela paisagem real.

— Já estou aqui. — digo após saber do número da Kombi.
— Hoje é domingo, vai demorar. Saiba esperar. — reforça ela.
— Pode deixar, espero. Demorei nove meses para nascer. — finalizo de pronto.

Após o breve contato, dou-me conta de que foi a primeira vez que fiz uso dessa expressão e que demorei bem mais do que nove meses para nasce. Durante um bom tempo minha mãe tentou engravidar, o que só ocorreu após tratamento com hormônios. Realizo ser um fato sabido, porém altamente negligenciado de minha parte; que passei boa parte desses 43 anos em correria desabalada pela vida, experimentando bastante angústia e desconforto para alcançar logo alguns objetivos que elegi como especiais; que considerei alguns pontos da minha trajetória como sendo mais importantes do que a edificação dela como um todo; que a trajetória soma o tempo que paguei nos bastidores dos sonhos, vontades, tentativas, limites e frustrações dos meus pais a este tempo que transcorre; que a trajetória liga dois continentes simbólicos – este após o nascimento e o outro em que meus pais ficaram tentando ter o primeiro filho.

Prossegui na divagação: ‘como teria sido minha vida se eu não tivesse negligenciado essa realidade, se tivesse sido mais tranquilo e comedido na abordagem da relação entre essa dimensão especial do meu viver e o tempo em que ela transcorre?’, ‘como teria sido minha vida se eu tivesse dado atenção àquelas vozes sorrateiras da intuição que, algumas vezes, disseram-me: “importante para você não é o continente em que está, nem sua duração,  mas o conteúdo com que vai preenchê-lo”’.

Surpreendentemente, esperei com calma a chegada das chaves, sentado em um meio fio naquela pitoresca paisagem seropedicense. Assim que as peguei, decidi passar lentamente pela feira, tentando ter outra percepção daquela realidade. Decidi que olharia com calma, e detalhadamente, o “conteúdo daquele continente de todas as manhãs de domingo”, enriquecendo de novos significados o novo tempo em que minha trajetória acabara de entrar, pois, afinal, havia encontrado as chaves.

Dentro da feira encontro uma prima muito querida, que me diz que outra prima, também muito amada, está muito mal no hospital  – ela caíra de moto ontem, quebrara alguns ossos e estava com hemorragia.

Aos 68 anos, há pouco tempo esta prima começou a frequentar os treinos de motocross do neto e a dar algumas voltas de moto. Seu filho foi um grande corredor – um campeão – e seu neto ainda compete e tem o mesmo sucesso. Dias atrás, em breve conversa, disse-me ela que viu no motocross uma renovação para os dias em que se encontra: deprimida, tensa com a realidade simbólica de substituir a mãe recém-falecida no cuidado aos irmãos altamente dependentes.

— Ela viu na velocidade a resposta para muita coisa que sentia —, disse-me a prima em natural tom de pesar e ultrapassando com facilidade peculiar a fronteira entre as paisagens do óbvio e da abstração. Ela tem esse dom.

Concordei plenamente, como se fôssemos dois contumazes confidentes sobre as escolhas mais complexas que nossos próximos (e os nem tão próximos assim) fazem sobre quais portas abrir ou fechar, quais caminhos a seguir e qual velocidade imprimir; como se habitualmente aplicássemos aquela nossa presumida sabedoria ao nosso próprio dia-a-dia. Logo eu, que tinha perdido as chaves.

Fiquei sabendo que ontem os técnicos haviam pedido para ela não correr demais, para andar sem pressão, pois aquela era a vitória, a chave para ela: encontrar um hobby e viver toda empolgação que ele desperta, pois a competição, para ela, era mero detalhe. Não deu. Pelo que entendi, ela acelerou, caiu e encontra-se internada e com alto risco de ficar paraplégica.

De lá fui atrás de noticias sobre o estado de saúde da prima e ter mais informações. Entrei em contato com o desânimo das pessoas, suas dores e suas reflexões objetivas sobre "obviedades" relativas ao fato de uma senhora de 68 estar andando de moto, expondo-se ao risco dessa atividade. Não encontrei quem se dedicasse aos por quês dela, do alto de seu livre arbítrio, usar essa atividade – buscar essa chave – para alçar o que queria, pois, talvez, aquela não era “a chegada, mas apenas um ponto de passagem”. Eu Chegara tarde àquela divagação: quando ela me contou que tinha começado a treinar, eu pensei tão somente que se tratava de uma distração, ocupação de mente com algo que, afinal, era conteúdo habitual do seu continente de quase sete décadas de extensão e duração. As motos fazia parte do mundo dela.

Fiz o que pretendia fazer e voltei à casa da minha namorada para olhar mais detidamente a paisagem conhecida. Sentei-me no banco de passageiro do seu carro e refiz a busca. As chaves estavam em uma posição específica embaixo do banco e para onde eu anteriormente havia lançado um olhar displicente e recusado-me a estender um pouco mais a mão para vasculhar a área. 'Por que recusei-me, naquele instante, estender um pouco mais a mão?', perguntei-me com as chaves à mão. 

Não fizemos o passeio nem aproveitamos o nosso tempo. O dia foi péssimo, pois, além da tristeza com a situação da minha prima, eu ainda prolonguei meu descontentamento por não ter vivenciado, do jeito que queria, o envolvimento de minha namorada para encontrar as chaves que, quem sabe, me tirariam de onde eu precisava sair ou me colocariam onde eu precisava entrar.

(Os dias se passaram e eu pretendia visitar minha prima, pois queria ouvi-la, confortá-la, dar a atenção e carinho que sempre me dera; tínhamos intimidade para essa "abertura de porta" que seria tênue, densa e tensa. Não deu. Aos dezesseis de março ela veio a falecer, após os médicos terem debelado a forte hemorragia, feito a primeira cirurgia reparadora; quando ela estava  bem).

2 comentários:

  1. Eu gostaria de dizer algo que pudesse expressar o que esse texto me fez sentir, mas não encontrei nada a altura de tal reflexão, eu simplesmente, viajei!

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  2. Eu gostaria de dizer algo que pudesse expressar o que esse texto me fez sentir, mas não encontrei nada a altura de tal reflexão, eu simplesmente, viajei!

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