sábado, 19 de março de 2016

Um dia na vida

19 de março de 2016. Sábado. Acabei de ter outra experiência marcante nesta minha breve e ordinária vida.

Desde que me acidentei há dias, magoando severamente ligamentos e ossos do tornozelo, hoje foi a primeira vez que fui a pé para minha casa, dado que estava impossibilitado de subir escadas.

Submeti-me à experiência porque preciso recuperar segurança para agir, mas principalmente para reativar os sensos de autonomia e de não sentir-me ou fazer de mim um estorvo. Se estes sensos ficam significativamente expostos quando você passa a depender parcialmente de outras pessoas, imagino como ficam em casos mais severos.

É uma experiência e tanta você passar vinte minutos de sua vida observando o terreno onde pisa com a concentração que não lhe é peculiar: eu senti integral e vividamente todas as pisadas que dei hoje, não houve uma como a que dei e que gerou o acidente pois estava com a atenção voltada para o mundo. Hoje eu vasculhei o terreno onde pisaria para observar contextos, objetos e desníveis que pudessem gerar um tropeção ou escorregão e repetir o episódio de dor e recomeçar o ciclo da dependência.

Eu praticamente dialoguei com o terreno onde escolhi para viver e pisar, uma conversa séria e franca entre mim, ele e todos os objetos que nele repousam e que ilustram a realidade social que experimentamos diariamente: a sinalização e divisão de poder, o sentido de igualdade e fraternidade que temos e exercemos, a relação com o consumo e o descarte de mercadorias, enfim, a cidade conforme ela é pensada e produzida pelo poder público para você provar diariamente.

Eu tive a chance de cair após tropeçar em latas de bebidas, calçadas e quebra-molas irregulares, caixas de alimentos e produtos químicos e escorregar em chorume e restos de sacolas de lixo à espera da limpeza urbana, mas que antes foram visitadas por cães e gatos.




Eu experimentei por meros vinte minutos os desejos e angústias daqueles que tem seu potencial de mobilidade totalmente ceifado, e que dependem não de maneira parcial, mas estruturalmente de pessoas próximas. Experimentei a angústia daqueles que dependem de uma sociedade que consiga fazer com que o seu terreno e a maneira de agir dos cidadãos permitam que todo e qualquer cidadão possa se apropriar desse terreno e conduzir sua vida, que possa se sentir seguro e com os sensos essenciais dignamente ativados.

Lento como nunca estive, mas como sei que à frente estarei dado que envelheço, discuti hoje com meios-fios insolentes e indiferentes, com blocos de concretos postos por moradores para afugentar carros que estacionam, com carros que estacionam e tomam as calçadas e afugentam pessoas. Discuti hoje com pessoas, mas com muitas pessoas mesmo.

Sobre as pessoas, como é interessante sentir a diversidade de energia que brota dos olhares: tem aquele olhar de pena, tem o da indiferença (ou mera alegria disfarçada em cara de paisagem), tem o do estímulo, tem o da ironia, e tem aqueles que sempre comunicam coisas sem sentido, mas que não deixam de cumprimentar. Fiquei curioso para saber das pessoas o que meus olhares normalmente comunicam para elas para poder sintonizá-los com a produção de uma vida melhor para todos nós. O que meu olhar comunicava hoje para elas?

Mas tem algo muito mais interessante do que os olhares: a reação dos motoristas ao incauto e manco que, não tendo calçada, ousa ir pela via atrapalhando as flanadas matinais em seus possantes veículos. Teve um motorista que, podendo virar o volante e diminuir o meu experimentar de uma angústia, me forçou subir numa calçada de meros 40 cm de altura, não refrescou em nada para mim e fez cara de "você está no meu terreno, saia". Teve um que ensaiou o mesmo, mas, ao me reconhecer, parou e demonstrou empatia. Sim, fosse outra pessoa, ele não pararia, continuaria a demonstrar toscamente as linhas que informam o território partido. Teve o cachorro solto na rua que, embora alimentado, fez sua ameaça -- é imanente nele esse lidar com a coisa do território, lamentável é saber que estamos muito parecidos com ele.

Também muito importante: como é pequeno o número de pessoas que querem estender o braço e dizer: vamos nessa, estamos juntos. A mesma sensação que tive quando me acidentei numa rua da Tijuca e apenas duas pessoas falaram comigo: uma que estava ao meu lado e pegou gelo para pronto atendimento e outra que passou, me viu no chão e, sem parar, disse: "meu irmão, abrace sua mochila porque vão tentar roubar".

Ainda mais importante: é imperativo que, experimentando as dificuldades dos que muito precisam e pouco tem, não deixemos que uma breve experiência de angústia obstrua o reconhecimento do auspicioso de nossa vida e caminhada, e que mudemos nossas atitudes em relação à situação daqueles que menos auspícios vivenciam.

Foram vinte minutos de mais um dia na vida, de outro e bem diferente dia na minha breve e ordinária vida, mas que é o resumo da maioria ou de todos os dias de muitas pessoas.

É uma experiência marcante que preciso internalizar com sabedoria. Sim, eu poderia ter aprendido pela observação: tal espetáculo está aí todos os dias, não é mesmo? Mas teve que ser assim, pois não seria de maneira diferente que eu exporia os caprichos do meu egoísmo, vaidade e narcisismo à necessidade de negociarmos seriamente quem e o que deve informar como será o restante dessa minha breve e ordinária vida.

Vida que no que ela tem de ordinária, é muito mais auspiciosa do que a da grande maioria das pessoas dessa e de outras cidades.

Caminhei para ver a paisagem da foto abaixo, para novamente sentir a lufada de vento que diariamente comunica o auspicioso que experimento na quase totalidade das minhas passagens por esse território. Estava com saudade. Sim, contemplar é parte do auspicioso desse minha caminhada. Agradecer e mudar de atitude também devem ser.


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