Recentemente elaborei a
restituição do delicado à pauta da minha vida. Vida como homem que quis ser,
em contraste com o homem que meu pai, tios e o tempo deles queriam que eu fosse.
Embora eu tenha bem claro comigo alguns dos efeitos de não submeter-me à dura forja de vir-a-ser homem dos meados dos anos 80 – de ter crescido ouvindo que “filho meu não pode ser gay, ladrão, drogado ou comunista” –, ainda não tinha devidamente elaborado alguns detalhes desse processo, como o das forças que atuaram nos subterrâneos daquela bucólica Seropédica e das minhas demandas naquele momento.
Para que lançasse-me na aventura de viabilizar um jeito de ser homem mais autoral (o máximo possível autêntico, original, ainda que bem idiossincrático) foram necessários mais que meus estranhamentos e desconfortos existenciais que levaram ao conflito e à desidentificação com meu pai. Algumas forças, somadas às circunstâncias, contribuíram para que um instituído cedesse a um inusitado e atraente instituinte que, sorrateira e cuidadosamente, agiu pelas bordas naquelas teias de relações sociais e familiares tecidas (entre 1981 e 1986) no perímetro entre as ruas Tharssis e Paula, Albertina Rosa, Solange de Barros e Ana Fraga.
As palavras que aqui trago, entretanto, não darão conta do cáustico que foi essa institucionalização, do doloroso processo que fez com que um adolescente rompesse com a identificação com seu amado pai e se lançasse na aventura de viabilizar um homem diferente daquele da conhecida forja que seu meio machista oferecia. Talvez seja mais correto dizer 'institucionalização do homem que eu pude ou posso ser', algo diferente daquele que quis ser, pois, até que a noção de homem possível emergisse, tal institucionalização foi marcada pela mistura conflituosa entre fantasias, projeções e definições rígidas de como eu não queria estar no mundo e que tinham meu pai e tios como referência principal (Sim, este processo tem sua origem nos conflitos mal resolvidos do processo edipiano e que estendeu-se mais do que necessário, pois meu pai, equivocadamente, teve ciúmes de mim com sua segunda esposa, o que produziu mal estar constante entre nós até que, em 1989, eu e minhas irmãs nos mudássemos para outra casa).
De
repente, no desenrolar dos conflitos da adolescência, aos 14 anos, dei-me conta de que meu pai e eu estávamos bem distantes um do outro, apesar de morarmos na
mesma casa; nossa relação estava bem deteriorada. À época, emergia em mim o
desconfortável sentimento de estar perdido, sem rumo ou direção na vida, e, lamentavelmente, não sentíamo-nos
próximos o suficiente para amenizar isso tudo. Tanto é que não me lembro dele
falando para mim sobre futuro, sobre o que eu poderia fazer ou deveria tentar fora do
rígido conjunto “filho meu não pode ser gay, comunista, drogado ou ladrão” e sem a influência do
seu temor de que corrompesse-me, desvirtuasse-me, e saísse do ‘caminho certo’. Lembro-me que havia nele tanto medo de que eu ficasse curioso com ‘essas coisas’, que não
houve flexibilidade para perceber que eu demandava receber ou conhecer outras
coisas, como as do amor, entre um homem e uma mulher ou entre irmãos ou entre
pais e filhos. Demanda latente e evidente em mim, pois,
hipocondríaco, medroso, gago, inculto e de baixa-autoestima como estava naquela
fase, dificilmente confrontaria suas ordens e iria aos furtos ou às drogas ou aderiria
a grupos ideológicos. Eu era ligado nas coisas da sexualidade, mas também muito ligado ao amor, nos dramas afetivos, e isso era
visível na maneira como conectava-me com as músicas sertanejas e aos seus e aos meus dramas com a morte da minha mãe. Assim que ela se foi, dormi muitas vezes
com ele e também chorei enquanto ele chorava, provavelmente por ela. Nessas ocasiões, sempre tinha ao fundo uma música tocando no rádio que raramente era desligado.
Músicas
e rádios são elementos marcantes da nossa história (também na com meus tios e
primos) e estão no cerne dessa institucionalização de um outro vir-a-ser homem.
Alguns eventos dessa fase estão bem vívidos. Lembro-me de ver meu pai e tios
tomando cervejas e ouvindo música, emocionando-se e dirigindo seus pensamentos
para mulheres que parecia-me não serem aquelas que estavam na sala ao lado. Outro evento foi o dia em que eu assistia ao
Gilberto Gil cantando Refazenda na TVE, e, abruptamente, meu pai veio e
desligou a televisão dizendo que na casa dele não tocaria música de comunista.
O cerco dele fazia-se bem sentido quando elevava as críticas às performances de
Homem com H do Ney Matogrosso em programas que ele assistia.
Aos poucos,
porém, a identificação que tanto tive com as músicas sertanejas e danças (como
o rastapé) foram perdendo sua força. As rádios Capital e Record foram
substituídas no meu gosto, primeiro pela rádio Mundial, por influência da Cidinha,
que tomava conta de mim e das minhas irmãs, e, depois, pela rádio Melodia,
influência dos primos Lucrécio e Luís Carlos, irmãos, que moravam a duas casas
da minha; Sérgio Reis, que era o ícone da nossa convergência, foi suplantado
pelos Beatles, o ícone da nossa divergência; a FM suplantava a AM na
constituição da rotina da minha vida (Até que entre mim e a AM houve um
reencontro por meio da minha controversa conexão com às rádios MEC-AM, CBN e
Tamoio, Programa Recordações Saudade, do Jose Duba).
Eu
era bastante identificado (e ainda levo alguns resquícios)
com o seu hábito de ouvir músicas sertanejas na garagem lá de casa,
principalmente no final de semana, ocasião em que bebia umas cervejas e,
calado, fechava-se num mundo só dele, colocava seus pensamentos sabe-se lá
onde, presumidamente nas experiências afetivas que teve com minha mãe, com a
trajetória da história deles. A identificação foi tanta que até hoje lembro das
músicas, em especial de Cama de casal,
de Chitãozinho e Chororó. Era tocar essa música e ele ficar visivelmente sensibilizado,
chorando lá no fundo da garagem, perto do som, com o copo de cerveja, sem falar
abertamente para mim, que por aquele espetáculo era continuamente atravessado e maculado. Essa,
somada à experiência do encontro entre ele e os irmãos e amigos para tomar
cerveja e se emocionar por amor, foi a minha única escola de aprendizagem do amor até
que emerge o instituinte que me corrompe.
Aquelas
aprendizagens sobre o amor não me faziam nada bem e, à época, achava que delas
conseguiria fugir; ingenuamente, costumava dizer-me: "chorarei de alegria pela
mulher que estará ao meu lado". Abri-me então à influência da Cidinha e de suas
aventuras pelo amor, às histórias de como havia sido o baile no Clube
Seropédica no final de semana e das músicas que eles gostavam e diziam ser a “nossa
música”. Cuidando da gente e da casa, ela sintonizava o rádio na Mundial
(AM-860) e adorava os programas do Alberto Brizola e do Oduvaldo Silva (show
dos bairros). Quando tocava as que mais gostava, ela parava e suspirava. Eu
adorava ver aquilo. Meu pai, Aloísio e Abeilardinho até criaram uma discoteca
na Igreja São Benedito, em 1985, e lá aprofundei-me nessa linha, mas o forte
eram músicas românticas e de discoteca estrangeiras que tocavam nas novelas.
Um
dia, quando Lucrécio manobrava na esquina o chevette branco do pai, seu Nemésio, ouvi uma música que de pronto me tomou-me de assalto, mexendo bastante comigo.
Lembro dele me respondendo: “é Linda Juventude, do 14 Bis, na rádio melodia,
FM-91,7. É isso que você tem que ouvir”. É o marco da minha entrada no mundo
FM, na MPB que não a caipira e as melosas que a Cidinha tanto gostava de ouvir o
Oduvaldo Silva anunciar. Pelo Lucrécio, cheguei ao Luís Carlos, figura
espetacular, apaixonado pelos Beatles e que fazia para mim uns desenhos irados
de gente tocando guitarra, com umas mensagens muito loucas (que passei a colar
na parede do meu quarto e ter problema com meu pai). Desenhos feitos na parte
de trás de cartazes de cigarros que eu pegava nos bares ali perto. Com Luís
Carlos, ouvi minha primeira música dos Beatles, Yesterday. Passei a ir direto à
casa deles, para sofrimento da Dona Conceição, para ouvir os Beatles; em casa,
pedia ao meu pai para ter um rádio para escutar a Melodia, afastando-me progressivamente
das aprendizagens com a Cidinha e com ele.
O
amor que eu queria cantar era do 14 Bis (nem tanto o dos Beatles, que virou
minha banda favorita) e que tinha na música Nova manhã a
principal referência. Talvez falasse-me essa música de um amar que, ainda que
com pontas de dor, tivesse elaboração mais positiva da experiência, que me
tirasse do fundo daquela garagem e me lançasse no mundo, em um novo dia, em uma
nova manhã, enfim, em outras possibilidades de sorrir e chorar por amor que
logo voltassem os envolvidos aos risos.
O instituinte estabeleceu-se e, para permanecer, exige-me um continuo processo de reelaboração de suas motivações. Tornou-se farol na formação da minha identidade, produção da minha subjetividade e navegação pela vida. Passados 35 anos, onde fui parar? Saí da garagem, estou na estrada, nesse desafio de viabilizar um ser homem em estruturas e orientações flexíveis, mais adaptativas que as do meu pai e do seu tempo. Tornei-me pai e meus filhos são os que têm a dizer algo sobre isso. Meu pai ficou naquela garagem e fez dela o seu lugar, permanecendo fiel e perseverante no que desejava para ser o homem que foi ou pôde ser: o gorilão da horda, o mítico Antônio Goulart, o Ratão, o amado Mineiro. Entre as muitas coisas que admiro nele, tem lugar especial para mim o quanto ele perseverou no desejo dele. Levo comigo a impressão de que estou perto de achar o meu ‘lugar’, um em que talvez me assente e possa lidar mais produtivamente com o perseverar no que desejo, o estabelecer regras e interdições (quem sabe a mim mesmo), o entrar em contato com os atraentes e corruptíveis instituintes e o fazer o devido luto dos destituídos.
'Soltando as palavras nas estradas', estou a caminho e realizo que as palavras de Milton Nascimento que tanto me marcaram três anos à frente (1989) tomam outro sentido para mim. O “minha casa não é minha e nem é meu esse lugar” vai sendo ressignificado, pois aquela era mais do que minha casa -- era o meu lar -- e Seropédica é sim meu lugar. A ideia era ser o máximo possível autêntico, original e idiossincrático, mas fui atravessado pelas palavras e cenas daquela época e elas estão impressas na memória, acionando facilmente fortes emoções. Sei de cor todas as músicas que embalavam meu pai e tios, como sei as do 14 Bis, dos Beatles e do Milton Nascimento. Fica uma aprendizagem importante: ao não dar conta da importância do perseverar no desejo e de enfrentar os inevitáveis conflitos que isso faz emergir, aprendi a buscar rotas alternativas para chegar aos meus objetivos, o que tem um preço bem diferente do de preservar. Tais rotas, longas e sinuosas, trouxeram-me até os 49 anos e sei onde ficam os atalhos que me levarão àquela garagem para reconciliar-me com meu pai.
Nova Manhã - https://www.youtube.com/watch?v=zHdZi7R7Uf8
Cama de Casal - https://www.youtube.com/watch?v=GUD8JdmyDJg
Que texto e que memória!
ResponderExcluirMuito bacana preservar essas lembranças, parabéns.
Inebriante texto! Que prazer enorme conhecer um pouco mais meu querido e amado mestre que tanto aprendi e persevero aprendendo ...
ResponderExcluirComo me sinto tocada pelas suas narrativas e pela análise deste tempo de convivência familiar!!
ResponderExcluirAdoro ler seus textos reflexivos mesclados com memórias. Temos a mesma idade, histórias bem diferentes, mas que cruzaram nos caminhos ruralinos!
ResponderExcluir