terça-feira, 24 de novembro de 2020

Apaixonado sublimando

 Malu e Leo,

Novamente desabafo com vocês. Afinal, vocês têm a sensibilidade e inequívoca relação com a arte e a escrita; algo que pensei ter, mas que pelo entendi de um evento recente, não é bem assim: foi um engano.

Na sexta, primeiro de abril, tive mais um daqueles momentos que classifico como fundamentais para a análise e entendimento da minha vida e do meu viver. Outra vez ocorre num momento tão despretensioso, comezinho, quando não estou com a disposição nem com a mente orientada para temas existenciais. Outra vez acontece algo a emergir do nada e a atingir diretamente uma questão central da minha vida, esta que é cheia delas.

Assim que entrei na sala de aula, o professor perguntava à turma: vocês sabem o que difere um poeta genuíno, um escritor de fato, de um apaixonado sublimando? A turma tentou algumas respostas, mas o professor sentenciou: o primeiro não para de escrever quando suas dores passam; e continuou explicando que o apaixonado direciona sua energia ou impulso sexual, a energia da libido, para uma atividade aceitável, com valor social positivo. Toda energia que embala a paixão, toda pulsão, principalmente se há frustração de uma realização, é convertida numa criação que protege o ego do apaixonado. Ele escreve como mecanismo de defesa do ego dele, não como seu ofício, lide, vocação ou prática com a qual se encontrou ou que a ela dedique sua vida. Assim que sai da sua frustração, que sua paixão volte ao rumo sem frustração, o apaixonado para de escrever.

Esclareço a seguir o ponto em que esta pergunta do professor alcança minha vida. Desde muito cedo pergunto-me sobre minhas vocações, para o que eu serviria nessa vida, para o que eu haveria nascido. Fui à vida tentando encontrar respostas. Nunca me identifiquei com as atividades da roça ou de ficar dentro de supermercados, estas que minhas duas famílias tão bem executaram. Eu logo vi que elas não eram a “minha praia”, mas me envolvi para ver o que aconteceria. Tenho muitas coisas a lhes falar sobre meu envolvimento com elas. Identifiquei-me com a atividade empreendedora – tive meu pequeno negócio de venda de peixes –, com marketing – cheguei a estudar na ESPM e tentar carreira no mercado. Cheguei de pára-quedas à carreira de docente e pesquisador, identificando-me mais com a primeira do que com a segunda. Tornei-me professor universitário, tentei fazer atividades de consultoria em marketing, mas sempre dei pouca atenção à atividade de escrever, que um dia emergiu para mim e com a qual, de fato, mais me identifiquei.

Em busca do que me fazia bem, de uma prática com a qual me identificasse, descobri-me um dia escrevendo num bloco que há muito jazia pela casa. Não mais que de repente, comecei a escrever, fazer registros, ter diários e por para fora minhas apreensões. Quando em contato com elas, eu naturalmente corria aos lápis ou canetas e às folhas para por pra fora o que sentia, pois infelizmente nem sempre tive ouvintes para elaborá-las comigo. Também sempre quis registrar temendo não estar aqui para contar a vocês e aos netos o que vi da vida. Comecei a escrever.

Escrevi e pus muitas coisas nos cadernos, diários. De ideias quaisquer às minhas alegrias e dores com o amor, registrei boa parte do que me aconteceu dos 18 anos até aqui, 45 anos. Digo boa parte porque tem coisas que não escrevi, houve época em que não recorri aos cadernos para desabafar ou para soltar o que me vinha à mente. A rotina estava pesada, as lutas da alma acontecendo e eu deixando de ir às páginas. Eu sempre leio estas épocas de apagão como ‘vacilos que dei na lide de escrever’.

Fui para vida carregando comigo a sensação de que deveria dar mais atenção à escrita, que deveria dar mais atenção à minha fantasia de ser escritor. Confesso-lhes que nada do que fiz em termos de ocupação, ainda que a maioria tenha me dado alegria, proporcionou-me alegria semelhante a da criação e conclusão de um texto. Que prazer me dão os textos! Mas eu sempre acreditei que não dei a eles a atenção que deveria. Como resultado, chego aos 45 anos tendo escrito livros técnicos de marketing e gestão e ainda doido para ir às páginas ou tela de computador e escrever.

Quanto me vi na vida gastando energia na indefinição sobre o quê e quando eu iria concentrar meus esforços vitais. Passei os últimos 10 anos experimentando momentos muito desagradáveis questionando-me sobre qual atividade eu deveria focar na minha vida, dado o descontentamento e cansaço relacionados a esta rotina que levo como professor e pesquisador. Ainda desenvolvo muitas atividades que consomem muitas energias e sem que elas me gerem um contentamento de alma realizada, sempre levo comigo a sensação de que me falta algo e que este estaria relacionado à lide de escrever.

Mas no dia primeiro, ao ouvir o professor, saí com a sensação de que uma vez mais não fui sensível ao identificar o ofício, lide, vocação ou prática com a qual me encontrarei e à qual deveria ter dedicado a minha vida; a que enfim explicaria para o que eu sirvo nessa vida, para o quê eu nasci. Doeu-me pensar que minha recorrida aos diários, às folhas e lápis ou canetas, nada mais era do que um mecanismo de defesa do meu ego, de que não passo de um desorientado apaixonado a sublimar.

13-04-16

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