Em Setembro de 1990, apaixonado por uma menina, fui à casa da sua avó, lugar onde costumava ficar em alguns finais de semana. Era semana do aniversário dela. Para declarar minha paixão, preparei todos argumentos possíveis, pus a melhor roupa que tinha. Ao chegar, sou informado de que ela estava na casa do Martin Freire: “Ah, ela vai demorar por lá. Ela adora ele, são grandes amigos”. “Esse Martin está indo longe demais”, pensei à época.
Martin Freire marcou definitivamente a minha vida e, mesmo tendo sido informado disso, não se permitiu saber quando, como e quanto. Curiosamente, o não-dito ficará como a marca do nosso encontro nessa vida. Para mim, o pouco dito foi surpreendente, restaurador, reparentalizador, apaziguador. Martin chegou onde só os que têm muitos dons chegam, e, por mais que não cresse nisso, foi um homem de realizações.
O final dos anos 80 e início dos 90 foram definitivos para minha história e Martin Freire é uma importante personagem dela. Não mais que de repente ele emerge nas crônicas diárias da vida que eu levava entre o km 49, o Ecologia e a UFRRJ. Emerge e assume uma centralidade que, somada a outros fatores, provocará uma das maiores inflexões em minha história. Não foi coisa qualquer: foi coisa grande, imensa e intensa, como ele era. Foi da ordem do como eu mudo a maneiro como me compreendo, me defino e me enuncio ao mundo. Foi da ordem do identitário, do desenvolvimento, realização e consolidação da minha identidade pessoal e social, do autoconceito pessoal. Foi o processo de saber quais eram os meus dons e como eles deveriam informar o meu viver. Processo que passa pela emergência do Marco Bauhaus, da minha conexão com o ideário urbano e cosmopolita, ao marketing e à propaganda, em contraposição à escolha de ser da área de agropecuária e que me conectava ao CTUR, e que culmina no Marco Souza que estou e ainda reinvento. Processo que passa pela minha identificação com a criatividade, a literatura, a escrita, o jazz, o chorinho, arte... cultura, e que me fez dizer: é isso o que eu quero para mim.
A passagem do início do texto é uma inúmeras aparições dele na crônica da minha vida. Ele já pairava e muito nas falas de amigos do CTUR (1988-90) e de amigos do km 49: era Martin Freire aqui, ali, lá e acolá, figura fácil e destacada em todas as narrativas sobre o que era feito e podia ser feito naquela época: “Fomos à casa do Martin”; “Estivemos com o Martin”; “Fizemos um churrasco, aí o Martin chegou”; etc. Só dava Martin Freire e aquilo me incomodava: o cara era insaciável, articulado, polivalente, brilhante, quase imanente, um furacão que passava em paralelo a minha vida. As narrativas sobre aquela figura eram as mais ricas e interessantes possíveis e eu vivia, à distância, a mapear seus dons. A dinâmica da aparição dessa personagem ganha em volume com o passar do tempo: presença no teatro, na política, nos grupos da UFRRJ, nas noites em Seropédica. Marcas da avassaladora vida de Martin Freire.
Quem era afinal a figura cuja presumida onipresença e onipotência me incomodava tanto? Por que me incomodava tanto? Onde ficava a mágica casa que todos amavam estar nela? Que jogos eram aqueles que envolvia a todos? O que fazia ele para ter desempenho social tão marcante? Por que tantos e fantásticos dons?
Eu não assumia os sentimentos que emergiam em mim até o dia em que finalmente eu vi quem era Martin Freire, numa peça de teatro, no Gustavão. Quando o vi antes da peça, pensei assim: “É esse aí o encantador das multidões de jovens, que rouba a atenção e o coração dos meus amigos e colegas? Essa figura extravagante e ruidosa que tem passe livre para incidir sobre os grupos e rodas, para do nada se jogar nos colos, dar gritos etc.?”. Começa a peça, ele dá um show, cresce ainda mais. Adorei a peça e a personagem dele. A senha do viver estava clara: “Assume que você tem inveja. Você inveja Martin Freire, Marco”.
Foi chocante o dia do teatro. Fisicamente, ele não tinha nada a ver com a figura que eu imaginava e projetava ser, mas em termos de espírito, aura, energia, ah, estava tudo confirmado. Eu fantasiava ser ele metido, arrogante, soberbo etc. e ele não era nada daquilo. Um pouco mais à frente, vem o período da rendição e a providencial atualização da senha: assumo minha admiração por Martin Freire. Ele continuará a fazer parte da crônica. Estará no histórico dia em que um grupo de amigos pega a caixa de cerveja no alto de um pau de sebo numa festa em frente à sala de estudo (Aliás, este grupo não demorará para apresentar uma das safras mais ricas de profissionais e cidadãos que a UFRRJ já formou. Que grupo!). Depois vem mais teatro, parceria com Nogueira, KIHU pra lá e pra cá, Seropédica e as noites, as conexões políticas, e por aí vai se estendendo a força mobilizadora da presença de Martin Freire.
Por anos nutri gratuita e silenciosamente um ingênuo desafeto pelo Martin, enquanto ele cumpria o importante papel de ser a referência marcante e ruidosa que eu usaria para pautar decisões importantes que tomei sobre o quê e quem eu poderia ser nessa vida. Na maior parte do tempo, isso deu-se de maneira 'inconsciente', pois ele não constava nos meus diários, não foi pauta de resenhas com amigos, nem assunto em setting terapêutico, onde eu poderia lidar com o por que e como seus dons me afetavam. Invejei Martin Freire e o usei como referência para definir o percurso que seguiria para conscientizar-me dos meus dons e estabelecer-me, e o fiz sem saber como ele era, sem jamais ter interagido com ele, baseado apenas nas narrativas, nas reações das pessoas quando falavam dele e de estar com ele. No fundo, eu não queria ser igual a ele, pois meu querer ser alguém passava pelo autentico e o original, mas eu queria ser tão interessante, intenso, arrebatador ou criativo quanto ele.
Eu morria de inveja de uma personagem com quem só tive a primeira conversa pessoal em 2011, no trailer do Marcelo. Estava sentado à espera do Ricardo Oliveira para beber cerveja e falar da nossa candidatura a diretores do ICHS. Martin aparece, vai até minha mesa, me cumprimenta e do nada começa a falar: “Ó, estou apoiando a chapa de vocês, pedindo voto. Vocês vão ganhar. Ricardo é um cara muito bom dessa safra nova do Reuni. E, para mim, Marco Souza, você é uma das pessoas mais inteligentes da Rural. Eu concordo com suas falas nas reuniões e tudo o que você fala nos seus blogues. Se você vier candidato a alguma coisa na Rural, eu voto em você. É sério tá, pois vou começar a beber agora”. Ouvir aquelas palavras direto de Martin Freire foi surpreendente, contagiante. Eu queria dizer que o que ele via em mim também era reflexo do que ele fora para mim, mas ele saiu, foi para o balcão e lá ficou bom tempo conversando com outras pessoas, sempre chamando atenção, sempre marcante. Depois aproximou-se da nossa mesa. Na ocasião, tentando dizer tudo o que ele significava para mim, confessei minha inveja e a importância que ele tinha e sua reação foi: “Ah, para Marco, um professor com inveja de mim? Quem sou eu?”. Tentei explicar que era verdade e ele não deixava eu continuar. Eu dizia que ele estava atualizando a conversa, que a coisa era mais pretérita e longeva, mas ele não deixava: “Outra hora a gente fala disso”. Algo o incomodava e ele não me deixava acessar.
Voltamos a nos encontrar outras vezes e ele passou a me cumprimentar com um abraço gostoso, acolhedor e validador que sempre encantou a todos. Ele sempre me reforçava, elogiava, incentivava. Descobrimos ter a mesma idade. Falávamos de Seropédica, da UFRRJ, da vida, de filhos, de tudo o que acontecia nas rodas em que estávamos, mas quando eu falava sobre ele ter sido importante em minha vida, ele sempre dizia: “Ah, lá vem você com essa história...um professor com inveja de mim...cara, fiz muita loucura nessa vida, algumas coisas podiam ser diferentes...ainda tem a porra da tese...etc. etc.”. Falava como se tivesse que dar para mim explicação sobre como viveu, o que fez ou deixou de fazer, mas não deixava que falássemos do que ele sentia e talvez precisasse por pra fora. Nunca falamos abertamente de que ser alguém mais pleno, original, intenso e denso era mais importante do que ter o título de professor ou coisa parecida. Não consegui realmente conhecer Martin e a mítica casa dele, como meus amigos conseguiram.
Sua passagem deixa escancarada a cratera que jaz sob todo não-dito das relações humanas. Não-dito que em parte agora segue escrito. Obrigado por tudo, Martin Freire. Invejei você e aprendi que mais gratificante e transformador era admirar e ser o máximo possível parecido com você: um viver informado pelos dons, não pelos medos. Você foi rico em dons, pleno, absoluto, intenso, denso, possível e realizador. Seu viver dispensava justificativas, explicações ou esclarecimentos.