terça-feira, 23 de novembro de 2021

Coração e mão X Cérebro e garganta

Um conhecido faleceu e no dia seguinte fui me solidarizar com os filhos, principalmente os ‘especiais’, um menino e uma menina totalmente dependentes dele. Quando cheguei, duas pessoas discutiam intensamente. Assim que dei meia volta, a voz de um dos envolvidos soou alto: 

─ Marquinho, vem cá ajudar na solução de um problema! O insensível aqui tá insistindo num absurdo.

─ Isso! Precisamos de mais uma pessoa coerente para resolver essa questão.

Pensei em fingir que não ouvi, mas a amizade com o falecido era de longa data. Decidi entrar sabendo que seria o mediador do intenso duelo entre ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’. Duelavam a filha do falecido e o esposo da irmã. O motivo era o que fazer com os ‘filhos especiais’ já que o falecido era viúvo.

A irmã defendia que nada mudasse na rotina deles, que permanecessem em casa para serem visitados, fossem abastecidos pela pensão de pai e mãe e que demais irmãos e famílias se revezassem na gestão. Por sua vez, o cunhado defendia que custos fossem priorizados e reduzidos, que se reduzisse o número de visitas a eles ou do que era oferecido aos visitantes e, por fim, que estudassem uma futura colocação dos irmãos numa instituição onde recebessem atenção especial, o que amenizaria para todos os encargos do revezamento.

Explicadas as posições, ambos falaram: “É tão óbvio e ela(e) não quer ver”. 

Em nenhum momento me coloquei como simpático a uma das posições, mas empático a elas: todos queriam o melhor, mas não conseguiam perceber como pintavam o óbvio e o transformavam no quadro. Isso me permitiu compreender que, ao pintar o quadro para análise, cada um colocava como figura ou óbvio o que sua experiência e habilidades e competências alcançavam, o que, logicamente, deixava as do outro como fundo no quadro da obviedade.

Não demorei para decifrar a senha por trás daquele código do viver: precisam se conhecer como virtudes, não como ‘insensibilidade’ e ‘incoerência’. 

Irmã mais velha, a ‘incoerência’ esteve próxima aos pais nos cuidados desde que os irmãos nasceram; sabia quanto que as visitas eram caras para eles, o que a permitia olhar aquela realidade e planejar com facilidade o ambiente, os próximos passos e onde cada um da família entraria nos cuidados, faltando apenas ajustes para o revezamento. Compreendi que nela predominavam afeto e expediente ou coração e mão. 

Casado com a irmã mais nova que ela, a ‘insensibilidade’ era professor universitário, estudioso de gestão e estratégia. Morava longe dali e tinha informações precisas sobre custo de vida e o que ficaria como pensão, sabia que uma pessoa precisaria ser contratada para ficar durante o dia, enquanto os demais revezariam toda noite e temia pela subsistência do projeto. Sua habilidade para argumentar era impressionante, o que certamente fez a ‘incoerência’ gritar por minha ajuda. Compreendi que ele era pensamento e comunicação poderosos ou cérebro e garganta.

O óbvio ao que cada um fazia menção era as competências, habilidades e crenças que explicavam o melhor jeito que ambos encontraram para estar nessa vida e produzir suas virtudes. Logicamente, faziam uso disso no duelo e o resultado não estava bom para ninguém, principalmente para os dependentes que a tudo escutavam e de bobos não tinham nada. “É da gente que estão falando, Marquinho?”, me perguntaram quando fui cumprimentá-los.

Quando finalmente falei, procurei mostrar o que via como quadro e relação figura x fundo: concordava com tudo o que disseram, mas lá no quarto estavam ‘as figuras’, aqueles que deviam ser priorizados para escuta, entendimento da realidade e busca por solução; os sentimentos e pensamentos dos dois deveriam ser figura e não fundo no quadro. Falei para ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’ que elas começavam a pintura por suas virtudes, ao invés de usá-las para dar conta do desafio que a pintura do quadro demandava e que dificilmente chegariam a qualquer conclusão se não reconhecessem que o obvio é mais relativo do que se imagina e se vê. A ‘insensibilidade’ resolveu parar e fazer como sugeria e os irmãos foram trazidos à sala e ouvidos.

Gastei tempo apresentando coração e mãos ao cérebro e garganta, finalmente se conheceram como virtudes e não como ‘insensibilidade’ e ‘incoerência’. Fiquei sabendo depois que optaram por manter as crianças em casa.    

Guardei o precioso insight que me veio de, ao invés de julgá-los, lê-los e representá-los como dimensões predominante e por onde as virtudes se enunciam: num predominava o afeto, o fazer pragmático, o expediente; noutro a reflexão, a estratégia, o cálculo, a facilidade para construir e expor argumentos. 

Ficaram lições: somos coração, mãos, cérebro e garganta, mas um predominará na viabilização das virtudes que podemos produzir e aprender a negociar seu uso ou aplicação; esta aprendizagem é fundamental, pois as razões do coração nem sempre são compatíveis com as do cérebro e as mãos estão sempre mais próximas da realidade do que a garganta; por fim, o óbvio é sempre o que escolhemos como figura nos quadros da vida e sempre estará associado aos que nossas experiências, competências e habilidades alcançam.

(23 de novembro de 2021)


8 comentários:

  1. Verdade...e todos nós que temos família um dia precisaremos decidir entre coração e razão...

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  2. Como sempre, Marquinho... Retumbante !!! Que conectadas, a garganta, as mãos, o cérebro e o coração, possam ter dado vez e voz aqueles mais impactados pela decisão final de todo o embrolio... Já na etimologia da palavra é cruel.. "in - fan"... Sem voz... Mas.. sinceramente torço para que tua intervenção tenha servido para que os parentes olhem com sensibilidade e ouçam com atençaõ, as lagrimas e murmúrios dos pequenos infantes.. Um forte e fraterno abraço. Continue brilhando por ai.. !!

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  3. Acho que no próximo capítulo você pode discorrer sobre as obviedades relativas e seu papel numa sociedade extremismos, ódio e falta de empatia. Da casa para a rua… Muito bom!

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  4. E a primeira vez que entro num blog aliás nem imagino como funciona
    Parece um pequeno livro escrito em parágrafos

    Mas a história ( não entendi se é verifica ou não ), é uma lição de vida

    Muito bom
    Parabéns Abs

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