segunda-feira, 25 de abril de 2022

Escreva sua história na velocidade que seu lápis e papel permitirem

 Manhã de 22 de abril de 2022. Estava subindo o Belvedere a caminho de Paracambi. Pedalava devagar, em marcha leve; contemplava a beleza da mata por trás do Posto de Gasolina no Belvedere e ouvia Together, uma música relaxante*. Momentos antes eu me questionava se deveria colocar uma marcha um pouco mais pesada e imprimir esforço condizente com quem tem planos para pedalar grandes distâncias. Como decidi há alguns anos que após os cinquenta eu iria fluir pela vida e fruir bem mais dela, resolvi o dilema num oportuno pensamento: siga seu rumo e escreva sua história na velocidade que seu lápis e papel permitirem. 

De repente uma pessoa atrás de mim faz o som de um pigarro. Defini que era outro ciclista, não dei atenção e esperei que ele me ultrapassasse. Novamente o pigarro e logo me dou conta de que a pessoa está chamando minha atenção. Continuei olhando para frente, mas pensativo sobre o porquê dela não me ultrapassar ou se, afinal, era um conhecido. Momentos depois uma voz de criança soa no ar: “sua garrafinha d’agua está quase caindo”. Pus a garrafa no lugar e resolvi olhar para trás e agradecer. Um menino pedalava sorridente, duas alças pretas indicavam que estava com uma mochila em suas costas. Agradeci, continuei pedalando, agora com mais atenção porque a pista estava afunilando e chegávamos ao encontro com a Rodovia Presidente Dutra, um lugar muito perigoso e sem muito espaço entre a pista de acesso e a defensa metálica.

Quando acessávamos a entrada do posto do Belvedere, o menino começou a me ultrapassar e sorridente disse: “passei você e com o pneu furado, hein!” Além de bem humorado, o danado era competitivo, me chamava para uma disputa. Fingi que competi, mas desde o início compreendi que estávamos juntos e que ele era o vencedor do dia. Ele me ultrapassou fazendo muito esforço com sua velha bicicleta e o pneu da frente estava realmente furado. Perguntei onde ia e ele respondeu que iria vender cocada na porta da pastelaria, que estava atrasado. Perguntei nome e idade, e Júlio, sempre sorridente, respondeu que tinha 12 anos.

Perto da pastelaria ele parou, tirou a mochila das costas, abriu e a mostrou para mim, que parei a alguns metros dele. A cena era marcante: encostado na velha bicicleta com pneu furado e com a mochila à mão, o bravo menino de 12 anos contempla sorridente o homem de 51 anos, devidamente paramentado (roupa, capacete etc.), ofegante, sem sorrir, segurando entre suas pernas o quadro da moderna bicicleta, bebendo água na garrafinha e em sua caixinha de som continua tocando a música together.

Júlio deixou a bicicleta e começou a ocupar o posto de trabalho. Logo me dei conta de que estava sem dinheiro e não tinha como ajudar o bravo e simpático menino. Despedi-me dele chamando-o de Júlio das Cocadas e desejando boas vendas. Parei depois da pastelaria para pensar em tudo o que tornava a situação inusitada e marcante. Primeiro, estava eu aproveitando a vida, acreditava estar sozinho, curiosamente ouvia uma música chamada together, mas silenciosamente e a caminho do trabalho me fazia companhia na subida do morro um menino de 12 anos, que só se anunciou quando viu que minha garrafa d’agua estava caindo. Segundo, lembrei imediatamente de quando tinha a mesma idade dele e ganhei uma velha bicicleta de meu pai: à época eu reclamei dela não ser nova, como a dos colegas, embora fosse toda cromada. Por fim, minha sorte foi diferente da de Júlio, pois, mesmo que tenha andado várias vezes com o pneu furado, a velha bicicleta cromada me servia para curtir a vida, não para trabalhar. Ainda mais importante: quando usava a velha cromada para ir à escola, era ‘lápis e papel’ que eu levava, não cocadas.  

Quando montei na bicicleta e continuei as pedaladas, ouvi a voz de Júlio perguntando para onde eu iria e me desejando boa viagem. Ele ia em direção ao bebedouro do posto de gasolina. Respondi que ia para Paracambi e perguntei onde ele morava. Humoradamente, expondo toda meninice dos seus 12 anos, disse que morava no São Miguel, segundo ele, “um bairro longe, que sobe morro e desce morro com pneu furado para chegar lá”. Como logo produzo imagens com as falas das pessoas, imaginei como seria o desenho que Júlio produziu em sua mente ao falar de onde vinha para trabalhar. Continuei meu caminho até Paracambi fazendo em minha mente uma pintura simbólica dos morros que subi e desci, traçando um mapa diferente dessa jornada que semanalmente faço para aproveitar a vida. Juntos escrevendo essa história estavam Júlio das Cocadas, eu e o menino de 12 anos que só deixarei de ser quando minha história tiver um ponto final.   

* https://www.youtube.com/watch?v=gEb_BB-OTxQ&t=522s