domingo, 1 de novembro de 2020

Da riqueza em que não se toca e que nos trouxe até aqui

Seropédica, 22 de agosto de 2006. Experimentei hoje um dos momentos mais bonitos e felizes da minha vida. Meu objetivo era visitar tia Conceição e saber da sua saúde, assolada por forte depressão, mas o que lá ocorreu superou minhas expectativas, ensinando-me algo mais sobre o que significa riqueza.

Quando cheguei em sua casa, ela conversava com o tio Antônio na sala, enquanto tia Ana e tia Mariana faziam sala para os dois. Na cozinha tinha mais pessoas, mas resolvi permanecer para depois cumprimentar os outros. Pelas vozes que ouvia, sabia se tratar de outros tios e primos, muitos deles filhos da tia Conceição. Em silêncio observei a conversa dos tios mais velhos da família da minha mãe, ambos com mais de 70 anos. Falavam da infância vivida em Pedro Teixeira, da vida dura que tiveram, das limitações e desafios para sobreviver quando as crianças mais velhas tinham que ajudar os pais na lide diária. Uma vez mais a vida me colocava na posição de observador privilegiado de pessoas cujas narrativas dão conta de toda história que antecede minha vinda ao mundo: suas vidas atravessam a vida da minha mãe, irmã mais nova. Contavam suas vidas e eu no gostoso de exercício de imaginar os momentos narrados, mesmo sabendo que conhecia Pedro Teixeira e Lima Duarte o suficiente para reconhecer os locais descritos.

Um momento de extrema sensibilidade ver meus tios falarem de uma vida da qual estamos bem distantes hoje em dia. Suas falas mostravam a relação mais próxima com a natureza e, consequentemente, com os alimentos que consumiam e com a paisagem da qual faziam parte. Palavras e rostos que comunicavam quanto sofreram e lutaram. Meus tios e tias atravessaram décadas e caminhos acreditando na vida, na família, em Deus, no trabalho e na correção de caráter; passaram por muitas mudanças do mundo sem que tivessem o auxílio de conhecimentos obtidos em escolas e livros; ao seu jeito resistiam e se adaptavam a essa loucura que é a mudança de valores experimentada pela sociedade. Inevitavelmente, lembrei-me da minha mãe e em silencio chorei sua morte, que completará 25 anos no mês seguinte. Ela fez parte dessa jornada de Ferreiras e Oliveiras que começou em Pedro Teixeira e Lima Duarte. Jornadas marcadas por dificuldades, mas também por muitos êxitos. 

Tempo depois chegaram outros primos e também os tios Tiãozinho e Zé Grande e as respectivas esposas. A casa encheu ainda mais. Finalmente, fui para a cozinha, repleta de pessoas que estavam bem, sorriam soltas e aliviadas, faziam barulho comemorando a melhora da tia Conceição e, certamente, a dinâmica daquele encontro marcado pelo destino, por Deus. A impressionante cena da casa cheia me fazia fixar numa imagem que carrego de como deveria ser a minha vida: próxima dos parentes e sempre os encontrando em cozinhas repletas de gente proseando e narrando suas histórias. 

Todos na cozinha proseavam animadamente e, depois de cumprimentá-los, fiquei apenas observando. Dei-me conta de que era 18 horas, horário que automaticamente me leva ao tempo em que meu pai ouvia a ave-Maria pelo rádio, pedia que ficássemos em silêncio e ao final nos dava água benta para beber. Não sou religioso, desenvolvi pouca espiritualidade, mas são sagradas para mim a imagem do copo sobre o rádio e a inconfundível melodia da ave-Maria saindo de uma frequência AM. Nossa casa era iluminada por fortes lâmpadas florescentes, as mesmas que iluminavam a cozinha da tia Conceição e faziam aumentar a intensidade da experiência. Hoje, não tinha rádio ligado, nem a ave-maria sendo declamada, mas tinha um raro encontro de gente de muita fé; encontro que há muito eu não via e que a alegria generalizada tornava o momento ainda mais importante. Lamentavelmente, criamos o mal hábito de só nos encontrarmos para chorar e nos despedirmos dos mortos. 

O cheiro de café passado na hora deixava o ambiente ainda mais gostoso e eu, que a tudo observava, ia súbita e imageticamente sendo abraçado por minha mãe. Estava na privilegiada condição de representante dela naquele momento que tinha a cara dela: se lá estivesse, estaria gargalhando alto na cozinha, como sempre fazia. Como me fez bem o momento em que pude ser o representante de um dos 12 filhos que Marcelino e Júlia tiveram, e que passaram, ainda que por momentos e intensidade diferentes, por tudo o que Tia Conceição e tio Antônio falavam na sala. Pessoas que sobreviveram aos desafios de uma vida estabelecida num lugar pobre e adverso, que venceram picadas de cobras e as desventuras do vovô, que cedo adoeceu e pobre ficou; pessoas que, como puderam, ajudaram-se umas as outras para prosseguir. 

Mesmo estando na condição privilegiada, acabei lamentando a ausência da minha mãe. Lamentei e chorei, ainda que ela me abraçasse naquele instante e que ao meu lado estivesse sentada e olhando feliz tudo o que acontecia. Essa sensação de perda é irreparável e quantos encontros como esses não se perderam nesses quase 25 anos em que se foi. Toquei o território das perdas e logo o traço melancólico que herdo dessa família se fez presente: entre todos que lá estavam, eu era o mais novo; fiquei fitando homens e mulheres com mais de 50 anos e que trazem no rosto a marca do tempo que passou de forma muito especial: nossa família foi marcada por perdas muito prematuras como a da minha mãe, dos tios Jacinto e do tio Fernando, dos primos Vilmar, Pedrinho, Marinho, Rosângela e de outros primos e tios de quem não me lembrava no momento. 

Sob forte emoção, tentei me prender ao que posso viver, esquecendo o que não pode mais ser vivido. Transitava entre a sala e a cozinha ouvindo atentamente às conversas e em silêncio permaneci tentando decifrar a senha do extraordinário momento. Até que veio um estalo: os desafios que nos espreitam hoje são bem diferentes dos que essas mulheres e homens tiveram lá atrás; nós, mais remediados e estudados, precisamos reconhecer que o grande fantasma é a desintegração das relações provocadas por essa vida que nos faz sair para outras cidades e viver outros grupos de pessoas, negligenciando os reencontros com os que proporcionaram oportunidade e aprendizagens fundamentais para que muito bem estejamos.

Sim, ali estava apenas uma parte da família de minha mãe, uma parte de toda riqueza imaterial que nos trouxe até aqui. Sim, foi uma festa rever tio Noquinha, tia Zilda, tia Julinha e muitos outros. Ainda assim, feliz e sensibilizado com a experiência e sabedor da senha desse código do viver, revisitei uma sensação desconfortável: nós, os mais jovens, as segunda e terceira gerações, deveríamos estar mais próximos e unidos para enfrentar os desafios desse tempo, mantendo alguns valores históricos. A riqueza material média que temos, maior que a da geração anterior, passa a falsa sensação de que somos melhores ou mais fortes e não fará brotar nos amigos de ocasião os sentimentos e emoções que ajudam a explicar a trajetória da família até aqui. Não podemos nos esquecer de que sozinhos não vamos longe e que é muito rico, raro e nobre o que move os que realmente escolhem estar ao nosso lado nessa dura caminhada pela vida.

2 comentários:

  1. Sinto as mesmas indagações e sensações vividas por você.
    Tenho em mim a necessidade constante de beber desta fonte fecunda que é a união, cumplicidade e empatia que nossos entes amados nos deixaram. Tenho certeza de que este é o maior tesouro que herdamos e que deve ser exercitado e passado para nossos filhos.

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  2. Emocionante real e por que não, triste constatação esta da ausência cada vez maior de laços e afetos!

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