Um conhecido faleceu e no dia seguinte fui me solidarizar com os
filhos, principalmente os ‘especiais’, um menino e uma menina totalmente
dependentes dele. Quando cheguei, duas pessoas discutiam intensamente. Assim
que dei meia volta, a voz de um dos envolvidos soou alto:
─ Marquinho, vem cá ajudar na solução de um problema! O
insensível aqui tá insistindo num absurdo.
─ Isso! Precisamos de mais uma pessoa coerente para resolver
essa questão.
Pensei em fingir que não ouvi, mas a amizade com o falecido era
de longa data. Decidi entrar sabendo que seria o mediador do intenso duelo
entre ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’. Duelavam a filha do falecido e o
esposo da irmã. O motivo era o que fazer com os ‘filhos especiais’ já que o
falecido era viúvo.
A irmã defendia que nada mudasse na rotina deles, que permanecessem
em casa para serem visitados, fossem abastecidos pela pensão de pai e mãe e que
demais irmãos e famílias se revezassem na gestão. Por sua vez, o cunhado
defendia que custos fossem priorizados e reduzidos, que se reduzisse o número
de visitas a eles ou do que era oferecido aos visitantes e, por fim, que
estudassem uma futura colocação dos irmãos numa instituição onde recebessem
atenção especial, o que amenizaria para todos os encargos do revezamento.
Explicadas as posições, ambos falaram: “É tão óbvio e ela(e) não
quer ver”.
Em nenhum momento me coloquei como simpático a uma das posições,
mas empático a elas: todos queriam o melhor, mas não conseguiam perceber como
pintavam o óbvio e o transformavam no quadro. Isso me permitiu compreender que,
ao pintar o quadro para análise, cada um colocava como figura ou óbvio o que
sua experiência e habilidades e competências alcançavam, o que, logicamente,
deixava as do outro como fundo no quadro da obviedade.
Não demorei para decifrar a senha por trás daquele código do
viver: precisam se conhecer como virtudes, não como ‘insensibilidade’ e
‘incoerência’.
Irmã mais velha, a ‘incoerência’ esteve próxima aos pais nos
cuidados desde que os irmãos nasceram; sabia quanto que as visitas eram caras
para eles, o que a permitia olhar aquela realidade e planejar com facilidade o
ambiente, os próximos passos e onde cada um da família entraria nos cuidados,
faltando apenas ajustes para o revezamento. Compreendi que nela predominavam
afeto e expediente ou coração e mão.
Casado com a irmã mais nova que ela, a ‘insensibilidade’ era
professor universitário, estudioso de gestão e estratégia. Morava longe dali e
tinha informações precisas sobre custo de vida e o que ficaria como pensão,
sabia que uma pessoa precisaria ser contratada para ficar durante o dia,
enquanto os demais revezariam toda noite e temia pela subsistência do projeto.
Sua habilidade para argumentar era impressionante, o que certamente fez a
‘incoerência’ gritar por minha ajuda. Compreendi que ele era pensamento e
comunicação poderosos ou cérebro e garganta.
O óbvio ao que cada um fazia menção era as competências,
habilidades e crenças que explicavam o melhor jeito que ambos encontraram para
estar nessa vida e produzir suas virtudes. Logicamente, faziam uso disso no
duelo e o resultado não estava bom para ninguém, principalmente para os
dependentes que a tudo escutavam e de bobos não tinham nada. “É da gente que
estão falando, Marquinho?”, me perguntaram quando fui cumprimentá-los.
Quando finalmente falei, procurei mostrar o que via como quadro
e relação figura x fundo: concordava com tudo o que disseram, mas lá no quarto
estavam ‘as figuras’, aqueles que deviam ser priorizados para escuta,
entendimento da realidade e busca por solução; os sentimentos e pensamentos dos
dois deveriam ser figura e não fundo no quadro. Falei para ‘incoerência’ e
‘insensibilidade’ que elas começavam a pintura por suas virtudes, ao invés de
usá-las para dar conta do desafio que a pintura do quadro demandava e que
dificilmente chegariam a qualquer conclusão se não reconhecessem que o obvio é
mais relativo do que se imagina e se vê. A ‘insensibilidade’ resolveu parar e
fazer como sugeria e os irmãos foram trazidos à sala e ouvidos.
Gastei tempo apresentando coração e mãos ao cérebro e garganta,
finalmente se conheceram como virtudes e não como ‘insensibilidade’ e
‘incoerência’. Fiquei sabendo depois que optaram por manter as crianças em
casa.
Guardei o precioso insight que me veio de, ao invés de
julgá-los, lê-los e representá-los como dimensões predominante e por onde as
virtudes se enunciam: num predominava o afeto, o fazer pragmático, o
expediente; noutro a reflexão, a estratégia, o cálculo, a facilidade para
construir e expor argumentos.
Ficaram lições: somos coração, mãos, cérebro e garganta, mas um
predominará na viabilização das virtudes que podemos produzir e aprender a
negociar seu uso ou aplicação; esta aprendizagem é fundamental, pois as razões
do coração nem sempre são compatíveis com as do cérebro e as mãos estão sempre
mais próximas da realidade do que a garganta; por fim, o óbvio é sempre o que
escolhemos como figura nos quadros da vida e sempre estará associado aos que
nossas experiências, competências e habilidades alcançam.
(23 de novembro de 2021)