quarta-feira, 15 de outubro de 2025

De professor a um promotor e regulador de encontros de transformação

Verdade seja dita: eu não queria ser professor. Aconteceu. E não foi encaixe perfeito. Embora alguns vissem em mim um professor, a senha não estava visível e eu não dava atenção às pistas.

Curiosa e ironicamente, durante anos a possibilidade de ser professor não me entusiasmou. Eu dei preferência à carreira na área de marketing e equivocadamente pensava em encontro e encaixe perfeito entre sujeito e seu desejo e ‘lugar’.

Em diversos momentos, eu disse que não seria professor, inclusive da Rural, onde era TAE. Na prática, mesmo sabendo da importante posição da docência no processo ensino-aprendizagem e estando de diferentes maneiras ligado a ela, eu, por falta de entusiasmo, a negava. Mais: mesmo sabendo da importância do ‘lugar’ professor na minha relação com a Rural, eu ainda estava ligado à ideia de trabalhar em marketing e também de escapar à sombra do meu pai — ele era uma lenda.

Demorei a ver o professor que outras pessoas viam em mim e faziam questão de apontar. Lembro-me vividamente de uma ocasião em especial, em janeiro de 1995. Eu trabalhava no Câmpus Seropédica e fazia pós-graduação em Sistemas de Informações, à noite, na UFF, em Niterói. Para dar conta dos deslocamentos, dormia na casa de um primo (Fernandinho) em Campo Grande. Um dia, às cinco da manhã, quando saía de sua casa para trabalhar, ele veio até a mim e disse algo assim: “Marco, sei que você está lutando para ser um profissional de mercado, mas não posso deixar de dizer que você pode ser professor, aliás, um grande e excelente professor é o que vejo quando penso em você e nessa luta para mudar sua condição profissional”. Foi mais um dia de muita luta com senha clara pra alguém e de identificação e decifração difíceis para mim.

Apesar dos estímulos, eu reiteradamente disse ao Fernandinho e aos demais que seria profissional de marketing. 

O mercado e eu não nos 'encontramos’. Veio a docência, e sem sinais. Fiz uma visita a pai, na Rural, e vi o comunicado de um concurso para professor substituto justamente na área de marketing. Fui professor de marketing durante 22 anos e duas coisas me incomodaram nesse tempo: não aguentava mais a área e o ‘lugar’ ou papel da docência. Com o tempo, eu não me via nem me definia como professor. O ‘encontro’ perfeito, o tal ‘encaixe’ que tanto falam entre uma pessoa e a docência, não me seria possível. E a questão logo se mostrou maior: eu precisava mudar meu modo de estar na vida: ser potência e produção aonde estivesse e não um perspicaz descobridor do meu lugar na vida.

Produzindo a mudança, mergulhei na psicologia. Ao mesmo tempo imprimi um delicado processo de ressignificação do papel e posição da docência no processo ensino-aprendizagem. Um processo autoral — não tive modelos — e desafiador: enquanto estive com a atenção dividida entre várias frentes, eu não percebi nem compreendi o que acontecia no contexto da lecionação e no processo de ensino-aprendizagem no ensino superior. 

Dito de outra maneira: um concurso me fez professor, mas não fui devidamente treinado para isso, isto é, para o lugar de ensino no processo; tornei-me diretor de um Instituto e também não fui treinado para isso, isto é, administrar uma complexa estrutura de operacionalização do processo ensino-aprendizagem. Não fui preparado e não estive imbricado com isso: na Rural, diretor de Instituto é sindico, político, exceto uma articulador de contextos de ensino e aprendizagem.

Longe da gestão e submerso na psicologia, retorno prioritariamente às salas de aula. Defronto-me com um complexo contexto e este impôs o desafio de buscar novos sentidos para minha relação com o trabalho e com a Rural, para o entendimento do desencontro e do desencaixe. Tornava-se imperioso chacoalhar ‘o professor’ e o seu papel e posição no processo ensino-aprendizagem. Bem, se é que se ensina algo para alguém, quanto nos cabe do tanto de ensino e de aprendizagem que potencialmente se tem nesse processo? Durante anos eu convivi com a sensação de que aprendia mais do que ensinava, não estava seguro da minha efetividade.

Simbolicamente falando, a ideia de ensino e a imagem de um professor remetem a uma condição de sapiência e o processo de especialização sugere um presumido amplo e profundo domínio de conceitos específicos. Um papel que é tido como vital e, às vezes, soberano. Eu não me vi nesse lugar em nenhum momento. Ensinar, se se consegue isso, precisava de revisão urgente. 

À clássica figura do professor é projetada uma reserva especial de conhecimento, sabedoria e capacidade de ensino. Entretanto, minhas experiências e minha formação ampla e variada mostraram que eu estava distante do clássico professor e que, naquele momento da minha vida pessoal e profissional, era inevitável chacoalhar. 

O contexto abraçava a minha intuição e mal-estar. Uma vez longe da cadeira de diretor, busquei maior envolvimento com as aulas da graduação (na EaD e presencial) e dei sequência ao meu retorno às salas de aula também como aluno de psicologia. Deparei-me então com um cenário complexo:

·         A solidão e dificuldades enfrentadas pelos alunos no EaD e a convivência com a mediação tecnológica da modalidade mostraram com clareza minhas fragilidades técnicas e que o potencial para aprendizagem que existe nela é subaproveitado;

·         Durante quatro anos e meio de formação em Psicologia, regularmente acontecia de eu sair de uma sala de aula como aluno e entrar na sala em frente para lecionar; eu diariamente lidava com as dificuldades no lugar ‘aluno’ para ter aprendizagem efetiva e momentos depois era testado no ‘lugar’ professor para produzir essa efetividade; essa situação produzia uma experiência de ambiguidade e falta de sinceridade comigo mesmo, pois, como poderia cobrar uma coisa numa sala e não entregá-la na outra?;

·         Os conhecimentos em Psicologia e o estágio em clínica me desafiaram pessoal e profissionalmente; muitos pacientes do Serviço de Psicologia Aplicada, onde estagiei, eram discentes da Rural e durante dois anos ouvi relatos sobre sofrimento psíquico no processo formativo deles e o papel crucial da relação com docentes e seus métodos de ensino nesse sofrimento; a sala de aula tornara-se um dos ambientes mais ansiogênicos e aversivos da vida dos estudantes;

·         Dimensão relacional e afetiva: às memórias e afetos positivos ligados a muitas pessoas com as quais convivi tornaram minha jornada gratificante e substantiva; muitos ex-alunos tornaram-se amigos pessoais, alguns docentes na Rural e em outras IFES e com os quais colaboro regularmente, outros me oferecem produtiva e oportuna locução sobre a realidade do mercado e constantemente trocam experiências e materiais comigo ou voltam para dar palestras; essa relação demonstrava as lacunas entre a realidade das organizações e do mercado e o conteúdo explorado por mim em sala de aula; a dimensão relacional e afetiva estava se perdendo, entretanto;

·         A maioria dos meus alunos já estagiava; eles chegavam cansados às aulas e com a visão de que a prática era mais importante do que a teoria; eles realmente criam que, se houvesse uma verdade, ela estaria no mercado de trabalho, não no ambiente de formação, muitas vezes visto e definido como ‘pedágio necessário’, jamais como ‘via’ ou ‘caminho’; o desafio diário era mostrar a eles que a teoria também é importante e, quanto mais estiver aliada à prática, melhor para eles;

·         Internet, laptops, smartphones (Ainda não era Inteligência artificial!) cada vez mais presentes em sala de aula facilitando as atividades e escancarando uma importante realidade: a quantidade e disponibilidade de conhecimento é algo avassalador; a produção e acesso a tanto conhecimento desafiam a... 

        (i) criação de cursos e estruturação de disciplinas e 

        (ii) as condições do professor de se manter atualizado com o que supostamente é melhor e de ter uma visão sistêmica e crítica sobre como se dão transformações e inflexões na área em que ele atua;

·         Peso do transporte no desempenho dos alunos: com o passar dos anos, chegar à Rural passou a consumir mais tempo, energia física e mental e dinheiro; os alunos comumente relatavam esse fator e ele era compatível com uma pesquisa que fiz junto aos alunos de Administração, em 2011, quando ministrei a disciplina IH-113 – Administração de Transportes: entre outras coisas, a pesquisa relatava que 18,4% dos alunos já realizavam o par 2x2 de deslocamentos (dois de ida - dois de volta) e que chegava a 10% o número de estudantes que semanalmente gastavam acima de 32 horas no transporte para estudar e estagiar.    

Além de já lidar com o subaproveitamento do EaD (pela Rural e também por mim) e o excesso de trabalho relativos à produção de TCC, quando me dei conta a aula presencial estava em processo de banalização e de evitação. Uma ironia para quem, após se entusiasmar e aprender a desejar o estar em sala de aula como docente, assumiu os seguintes paradigmas:

(i ) uma turma da modalidade presencial é uma reunião física única de potencial cognitivo, motivacional, emocional bem acima da média e do que raramente se vê nas organizações; as aulas (encontros?) são uma forma de explorar esse potencial; 

(ii) precisamos aproveitar o fato de estarmos próximos para relacionarmo-nos, conhecermo-nos e admirarmo-nos, precisamos conceber o outro de uma maneira mais ampla, não apenas por potencial cognitivo, mas fundamentalmente pelos pontos marcantes da trajetória, das superações, enfim, pela maneira como chegou até ali.

Eu jamais havia pensado que um dia teríamos que procurar razões para defender a aula presencial, justificar sua existência, garantir que ela tivesse ocupação real e substantiva, não meramente utilitária, ilustrativa e penosa ou pedágio necessário. A cobrança de presença em sala de aula havia se tornado um fator gerador de incômodos, virou um artificio que garante, pelo menos, a ocupação ilustrativa: aquela em que o aluno entra para garantir a presença e não ser punido e, por meio da tecnologia, passeia com seu desejo e ideias por outros lugares e paragens da crônica da sua vida universitária, como festas e polêmicas em redes sociais. 

Em outras palavras, o presenteísmo[1] – o estar presente, mas ausente em mente ou comportamento, afetando a produtividade – passa a ser institucionalizado. Entretanto, ainda que se saiba da dificuldade de chegar até a aula depois do fardo do deslocamento, tornou-se crucial que o aluno queira e acredite no que vai encontrar nela. Nesta vida, é fundamental acreditarmos que acordamos e saímos de casa para ir ao mundo, termos encontros com outras pessoas e produzirmos experiências substantivas. 

Comecei a repensar a docência, sua posição e papel ocupados no processo ensino-aprendizagem. Primeiro, compreendi que a disciplina que ministro significava 1/49 avos de carga teórica no itinerário de formação dos futuros profissionais e que eu precisava me ajustar realisticamente a isso e definir como efetivamente contribuiria nesse nosso encontro. “Se o conteúdo é amplo e acessível em diversas fontes – hoje são mídias – com o quê o aluno vai se conectar e no que investirá seu desejo?”, eu me perguntava e ainda me pergunto. Quando planejava conteúdos e processos avaliativos, eu regularmente me perguntava “como posso transformar esses 1/49 avos de experiência em sala de aula em algo efetivo e gratificante para mim e para essas pessoas? Esta disciplina é dada no segundo período, não nos veremos mais e não sei o que levarão desse encontro”.

 Entre outras mudanças pessoais, o complexo contexto me apontou que são as relações interpessoais – ou encontros, resgatando a perspectiva Espinozista – que potencializam as mudanças nas pessoas, não as informações e conhecimentos da disciplina sozinhos. Dessa maneira, orientei-me por algumas premissas para promover a mudança:

·         Meu afeto e desejo pelo papel que desempenho na sala de aula precisam estar orientados àqueles momentos e à reunião única;

·         O afeto e desejo do aluno pelo papel que desempenha na sala de aula precisam estar orientados àqueles momentos e à reunião única;

·         Minha experiência e suposto conhecimento e a experiência e suposto conhecimento dos alunos devem ser somados ao vasto e acessível conhecimento da área e com o providencial aporte da presença de ex-alunos em sala (quando possível) e de casos práticos;        

·         O momento deixaria de ser aula, algo que alguém com suposto conhecimento ministraria para um público passivo; ele passaria a ser encontro;

·         Teoricamente, seria o encontro entre nossas experiências, afetos, desejos e supostos conhecimentos e o estado da arte e da prática do conhecimento em questão;

·         Meu papel[2] então seria promover, viabilizar e regular tal encontro.

Quando me dei conta, eu não era mais um professor, como as pessoas projetavam e esperavam, mas sentia e me via como um promotor e regulador de encontros de transformação ou encontros transformadores. Eu tinha segurança e confiança de que os encontros e meu desempenho neles – medido pela preparação do mesmo, pela vontade de estar nele e pela empatia e sincera disponibilidade para o outro, para as relações – potencializariam experiências que efetivamente mudam pessoas, inclusive a mim mesmo. 

Eu não dava mais aulas, promovia e regulava encontros de transformação numa disciplina que representa 1/49 avos do itinerário de formação em crédito teóricos de um futuro profissional de Administração, Administra Pública, Contabilidade e Hotelaria, publico que atualmente cursa Psicologia Aplicada à Administração.

 O modelo de atuação, ainda em aperfeiçoamento, ficou assim:

(i)    No primeiro encontro, os alunos recebem casos criados por mim, um mapa dos demais encontros, dividem-se em duplas ou trios e individualmente apresentam os conceitos ou representações que têm sobre os itens que compõem os eixos temáticos da disciplina;

(ii)    O mapa indica o item que será abordado em cada encontro, o que deve ser trazido individualmente e em grupo, relativo ao item – geralmente definições e/ou reportagens de periódicos não-acadêmicos – e se haverá a presença ou não de um ex-aluno para depoimento sobre o item;

(iii)   Durante cada encontro os itens são explorados de maneira geral e dentro dos casos usados na disciplina;

(iv)   Durante o semestre os conceitos apresentados individualmente no primeiro encontro são revisitados, refeitos e os alunos comunicam como que suas posições pessoais evoluíram em relação a eles;

(v)   Ao final do semestre, faz-se nova apresentação individual dos conceitos ou representações que eles têm sobre os itens. O objetivo é captar o ganho que se teve em termos de ideias, riqueza semântica, sentimentos e atitudes sobre os itens e o papel que a disciplina tem na formação deles.

Em termos práticos, a implementação sofre muitos reveses, pois, entre outras coisas, os alunos não costumam frequentar a primeira semana, eles faltam bastante durante os encontros, temos tido cancelamento de aulas por diferentes questões (energia elétrica, falta d’água, violência no entorno, paralisações, queimadas etc.), enfrentamos greves e há muita dificuldade para se compreender o que significa uma aula virar um encontro. Pra piorar, por vezes ainda estou oferecendo conteúdos em encontros totalmente expositivos e precisando apresentar outro modo de avaliação[3].

Entretanto, a mudança fez com que eu me sentisse mais potente e sincero comigo mesmo e com os alunos e mais flexível e tranquilo com o inerente desconforto de não haver encaixes perfeitos entre sujeito e seu desejo e os lugares. 

Ainda estou em fase de melhor estruturação dessa perspectiva, mas os resultados, apesar das resistências, têm sido promissores. O melhor indicador disso é o reencontro com alunos que não eram de Administração, mas tiveram aula de marketing comigo em outra formação e fizeram reingresso ou transferência. Quando cursam Psicologia Aplicada à Administração comigo, eles deixam claro quanto que a experiência de estar em sala de aula comigo mudou e como se sentem bem com isso. 

Não é nada fácil fazer com que os alunos entendam que o que temos são encontros e que neles devemos levar nossa potência e conhecimento para compartilhamento e mutua afetação. Esta perspectiva leva o aluno à compreensão de que o desejo, o conhecimento e o desempenho dele afetam a qualidade dos encontros, de todos os que ele têm, não apenas dos que acontecem em sala de aula, e isso exige sim maturidade.  

Que vá ao conhecimento quem o deseja.

[1] Garrido, Giovanna; Vazzoler Mendonça, Adriana; Marques de Oliveira Lopes, Kelly; Silveira, Marco Antonio PRESENTEÍSMO: CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DE UM MAL SUBTERRÂNEO Revista de Ciências da Administração, vol. 19, núm. 48, agosto, 2017, pp. 54-67

[2] Quanto à posição do professor no processo ensino-aprendizagem, os elementos ou objetos de mediação (livros, revistas etc.) ganharam, com a mudança tecnológica, destaque, relevância e também papel. O aluno pode autonomamente hoje acessar a IA e aprender. 

[3] É o que está acontecendo nesse semestre, em função da greve que tivemos no semestre passado.

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