quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Uma confissão

Quem me conhece sabe que sou uma pessoa questionadora e avessa a qualquer perspectiva metafísica. Refiro-me àquelas que se opõem à experiência sensível da imanência e que ainda trazem regras e normas destinadas a enquadrar e qualificar o viver, funcionando como lente interpretadora e manual da vida. Gosto de ter perspectivas menos sobrenaturais e idealizadas para lidar com a vida e seus desafios.

Entretanto, ainda que avesso, guardo um pequeno espaço para uma perspectiva algo metafísica; é possível vê-la em um lugar especial do meu pequeno mundo. Pois é, às vezes meu mundo é uma pequenez em espaços amplos que crio; noutras, é uma amplidão de pequenezes que se acomodam como podem, ainda que eu não as tenha pedido.  

A perspectiva que me marcou significativamente e ocupa esse espaço é algo supersticiosa, principalmente pela convivência com meu pai, que era um supersticioso profissional. Dá para ver nela algo de crenças ou ideias sem coerência ou razão alguma. Algumas situações que vivi enquanto estive com meu pai me deixaram essa perspectiva alternativa para interpretar o viver, e que não refuto, por mais estapafúrdia que pareça e mesmo que nada pareça ter comigo. Ela advém da experiência com duas das grandes paixões do meu supersticioso pai — o jogo de baralho e o futebol —, com as quais tive de lidar de maneira enciumada.

Ciúmes à parte, não é fácil misturar futebol e jogo de cartas e, disso, extrair uma lente para interpretar a vida, porque as cartas, na sequência em que saem do baralho ou do descarte do oponente, não comportam facilmente superstições e grandes surpresas: aquelas em que o real da vida nos surpreende com algo absurdamente novo, desconhecido, que ultrapassa nossa experiência, memória e capacidade de imaginar, impondo-nos ainda uma grande sensação de fracasso. Com as cartas, o máximo que podemos fazer é um gesto parecido com o de rezar ou orar e pedir para que a carta desejada saia naquele instante — e nisso meu pai era um artista.

Por sua vez, o jogo de futebol, ah, ele sim comporta essas artimanhas do real em nos colocar no devido lugar e também, como resposta, essas perspectivas metafísicas para interpretá-lo (e que geralmente usamos para interpretar a vida). Meu pai jogava e comandava times com seu arsenal de gestos e comportamentos que indicavam o privilegiado espaço para o imponderável ser generoso com ele, e não com os adversários.

Independentemente dessa maior ou menor possibilidade que cada jogo oferece para se reprimir e ainda enquadrar o real da vida, eu misturei as possibilidades para gerar essa perspectiva alternativa de interpretar o viver, cujo uso às vezes faço — ou melhor, pego-me fazendo, quase que inconscientemente.

Essa perspectiva é mais ou menos assim:

“A vida — essa irrequieta senhora, dona do agora e das possibilidades, ela em si o jogo — propõe e trava um curioso jogo de cartas conosco. Apesar dos trunfos que tem nas cartas à sua mão, a vida por vezes esquece que é oponente e quer que a gente mergulhe nela, isto é, que a gente vá às compras ou ao descarte de cartas sem medo e tente bater o jogo ou fazer o(s) gol(s) decisivo(s).

Quando não mergulhamos no jogo — nela própria —, a vida então começa a brincar com nossa obsessiva necessidade de que imaginações, projeções, previsões e planejamentos determinem a realidade ou impeçam o real da vida de nos apresentar algo que supere nossa experiência e imaginação. Isto é, a vida brinca com nossa vontade de controlar tudo e acabar com o jogo e suas surpresas.

Como realmente esperamos que nossas ideias e expectativas prevaleçam sobre a combinação de possibilidades que a vida aleatoriamente promove e nos oferece, a dinâmica do jogo fica mais ou menos assim: em contato com o real da vida, a gente não se contenta com o que agora experimentamos e temos receios de ir ao baralho para ter novas cartas ou de descartar algumas que estão à mão sem uso. A gente quer determinar a realidade; fazemos uso da imaginação, da projeção, da previsão e, claro, do planejamento do amanhã — coisa que nos toma um baita tempo enquanto o jogo corre.

A gente põe o planejamento em prática, vai à luta, os dias passam, as coisas vão acontecendo e, quando nos damos conta, o agora está pressionando o planejado, como se a vida quisesse, molecamente, bater o jogo ou fazer o gol, determinando a dinâmica e como dele sairemos. A gente tenta reagir, remonta ao planejado, mexe nos fatores sobre os quais crê ter algum controle, mas a vida dá as cartas, toca a bola, traz o controle do jogo para si, quer determinar a feição que os dias terão, enfim, o rumo de nossas histórias.”


Às vezes, pego-me interpretando o viver assim.

17/9/23 e 17/10/23


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