quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Uma confissão

Quem me conhece sabe que sou uma pessoa questionadora e avessa a qualquer perspectiva metafísica. Refiro-me àquelas que se opõem à experiência sensível da imanência e que ainda trazem regras e normas destinadas a enquadrar e qualificar o viver, funcionando como lente interpretadora e manual da vida. Gosto de ter perspectivas menos sobrenaturais e idealizadas para lidar com a vida e seus desafios.

Entretanto, ainda que avesso, guardo um pequeno espaço para uma perspectiva algo metafísica; é possível vê-la em um lugar especial do meu pequeno mundo. Pois é, às vezes meu mundo é uma pequenez em espaços amplos que crio; noutras, é uma amplidão de pequenezes que se acomodam como podem, ainda que eu não as tenha pedido.  

A perspectiva que me marcou significativamente e ocupa esse espaço é algo supersticiosa, principalmente pela convivência com meu pai, que era um supersticioso profissional. Dá para ver nela algo de crenças ou ideias sem coerência ou razão alguma. Algumas situações que vivi enquanto estive com meu pai me deixaram essa perspectiva alternativa para interpretar o viver, e que não refuto, por mais estapafúrdia que pareça e mesmo que nada pareça ter comigo. Ela advém da experiência com duas das grandes paixões do meu supersticioso pai — o jogo de baralho e o futebol —, com as quais tive de lidar de maneira enciumada.

Ciúmes à parte, não é fácil misturar futebol e jogo de cartas e, disso, extrair uma lente para interpretar a vida, porque as cartas, na sequência em que saem do baralho ou do descarte do oponente, não comportam facilmente superstições e grandes surpresas: aquelas em que o real da vida nos surpreende com algo absurdamente novo, desconhecido, que ultrapassa nossa experiência, memória e capacidade de imaginar, impondo-nos ainda uma grande sensação de fracasso. Com as cartas, o máximo que podemos fazer é um gesto parecido com o de rezar ou orar e pedir para que a carta desejada saia naquele instante — e nisso meu pai era um artista.

Por sua vez, o jogo de futebol, ah, ele sim comporta essas artimanhas do real em nos colocar no devido lugar e também, como resposta, essas perspectivas metafísicas para interpretá-lo (e que geralmente usamos para interpretar a vida). Meu pai jogava e comandava times com seu arsenal de gestos e comportamentos que indicavam o privilegiado espaço para o imponderável ser generoso com ele, e não com os adversários.

Independentemente dessa maior ou menor possibilidade que cada jogo oferece para se reprimir e ainda enquadrar o real da vida, eu misturei as possibilidades para gerar essa perspectiva alternativa de interpretar o viver, cujo uso às vezes faço — ou melhor, pego-me fazendo, quase que inconscientemente.

Essa perspectiva é mais ou menos assim:

“A vida — essa irrequieta senhora, dona do agora e das possibilidades, ela em si o jogo — propõe e trava um curioso jogo de cartas conosco. Apesar dos trunfos que tem nas cartas à sua mão, a vida por vezes esquece que é oponente e quer que a gente mergulhe nela, isto é, que a gente vá às compras ou ao descarte de cartas sem medo e tente bater o jogo ou fazer o(s) gol(s) decisivo(s).

Quando não mergulhamos no jogo — nela própria —, a vida então começa a brincar com nossa obsessiva necessidade de que imaginações, projeções, previsões e planejamentos determinem a realidade ou impeçam o real da vida de nos apresentar algo que supere nossa experiência e imaginação. Isto é, a vida brinca com nossa vontade de controlar tudo e acabar com o jogo e suas surpresas.

Como realmente esperamos que nossas ideias e expectativas prevaleçam sobre a combinação de possibilidades que a vida aleatoriamente promove e nos oferece, a dinâmica do jogo fica mais ou menos assim: em contato com o real da vida, a gente não se contenta com o que agora experimentamos e temos receios de ir ao baralho para ter novas cartas ou de descartar algumas que estão à mão sem uso. A gente quer determinar a realidade; fazemos uso da imaginação, da projeção, da previsão e, claro, do planejamento do amanhã — coisa que nos toma um baita tempo enquanto o jogo corre.

A gente põe o planejamento em prática, vai à luta, os dias passam, as coisas vão acontecendo e, quando nos damos conta, o agora está pressionando o planejado, como se a vida quisesse, molecamente, bater o jogo ou fazer o gol, determinando a dinâmica e como dele sairemos. A gente tenta reagir, remonta ao planejado, mexe nos fatores sobre os quais crê ter algum controle, mas a vida dá as cartas, toca a bola, traz o controle do jogo para si, quer determinar a feição que os dias terão, enfim, o rumo de nossas histórias.”


Às vezes, pego-me interpretando o viver assim.

17/9/23 e 17/10/23


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

De professor a um promotor e regulador de encontros de transformação

Um não-professor fugindo de uma sombra

Verdade seja dita: eu não queria ser professor. Aconteceu. E não foi encaixe perfeito. Embora alguns vissem em mim um professor, a senha não estava visível e eu não dava atenção às pistas.

Curiosa e ironicamente, durante anos a possibilidade de ser professor não me entusiasmou. Eu dei preferência à carreira na área de marketing e equivocadamente pensava em encontro e encaixe perfeito entre sujeito, seu desejo e ‘lugar’. "Lá eu serei mais potente", dizia para mim mesmo.

Em diversos momentos, eu disse que não seria professor, inclusive da UFRRJ, onde era Técnico Aadminstrativo em Educação. Na prática, mesmo sabendo da importante posição da docência no processo ensino-aprendizagem e estando de diferentes maneiras ligado a ela, eu, por falta de entusiasmo, a negava. Mais: mesmo sabendo da importância do ‘lugar’ professor na minha relação com a Rural, eu ainda estava ligado à ideia de trabalhar em marketing e também de escapar à sombra do meu pai — ele já era uma lenda da UFRRJ.

Demorei a ver o professor que outras pessoas viam em mim e faziam questão de apontar. Lembro-me vividamente de uma ocasião em especial, em janeiro de 1995. Eu trabalhava no Câmpus Seropédica e fazia pós-graduação em Sistemas de Informações, à noite, na UFF, em Niterói. Para dar conta dos deslocamentos, dormia na casa de um primo (Fernandinho) em Campo Grande. Um dia, às cinco da manhã, quando saía de sua casa para trabalhar, ele veio até a mim e disse algo assim: “Marco, sei que você está lutando para ser um profissional de mercado, mas não posso deixar de dizer que você pode ser professor, aliás, um grande e excelente professor é o que vejo quando penso em você e nessa luta para mudar sua condição profissional”. Foi mais um dia de muita luta com senha clara pra alguém, porém de identificação e decifração difíceis para mim.

Apesar dos estímulos, eu reiteradamente disse ao Fernandinho e aos demais que seria profissional de marketing

Desencontro e desencaixes marcados

O mercado e eu não nos 'encontramos’. Veio a docência, e sem sinais. Fiz uma visita ao meu pai, na UFRRJ, e vi o comunicado de um concurso para professor substituto justamente na área de marketing. Passei no concurso, não pude assumir; virei docente voluntário, foi muito bom!, virei efetivo em 2002.

Fui professor de marketing durante 22 anos e duas coisas me incomodaram nesse tempo: não aguentava mais a área em que fui ao encontro dela e o ‘lugar’ ou papel da docência. Com o tempo, eu não me via nem me definia como professor. O ‘encontro’ perfeito, o tal ‘encaixe’ que tanto falam entre uma pessoa e a docência, não me seria possível. Tampouco houve o famoso "foi a docência quem me escolheu. E a questão logo se mostrou maior: eu precisava mudar meu modo de estar na vida: ser potência e produção aonde estivesse -- a verdadeira senha -- e não um perspicaz descobridor do meu lugar na vida.

Produzindo a mudança, mergulhei na Psicologia. Ao mesmo tempo imprimi um delicado processo de ressignificação do papel e posição da docência no processo ensino-aprendizagem. Um processo autoral — não tive modelos — e desafiador: enquanto estive com a atenção dividida entre várias frentes, eu não percebi nem compreendi o que acontecia no contexto da lecionação e no processo de ensino-aprendizagem no ensino superior. 

Dito de outra maneira: um concurso me fez professor, mas não fui devidamente treinado para isso, isto é, para o lugar de ensino no processo; tornei-me diretor de um Instituto e também não fui treinado para isso, isto é, administrar uma complexa estrutura de operacionalização do processo ensino-aprendizagem. Não fui preparado e não estive imbricado com isso: na UFRRJ, diretor de Instituto é sindico, político, exceto uma articulador de contextos de ensino e aprendizagem.

Professor: realidade ou imagem?

Longe da gestão e submerso na Psicologia, retorno prioritariamente às salas de aula. Defronto-me com um complexo contexto e este impôs o desafio de buscar novos sentidos para minha relação com o trabalho e com a UFRRJ, para o entendimento do desencontro e do desencaixe. 

Tornava-se imperioso chacoalhar ‘o professor’ e o seu papel e posição no processo ensino-aprendizagem. 

Bem, se é que se ensina algo para alguém, quanto nos cabe do tanto de ensino e de aprendizagem que potencialmente se tem nesse processo? Durante anos eu convivi com a sensação de que aprendia mais do que ensinava, não estava seguro da minha efetividade.

Simbolicamente falando, a ideia de ensino e a imagem de um professor remetem a uma condição de sapiência e o processo de especialização sugere um presumido amplo e profundo domínio de conceitos específicos. Um papel que é tido como vital e, às vezes, soberano. Eu não me vi nesse lugar em nenhum momento. Ensinar, se se consegue isso, precisava de revisão urgente. 

À clássica figura do professor é projetada uma reserva especial de conhecimento, sabedoria e capacidade de ensino. Entretanto, minhas experiências e minha formação ampla e variada mostraram que eu estava distante do clássico professor e que, naquele momento da minha vida pessoal e profissional, era inevitável chacoalhar.

Complexidade e desencontros

O contexto abraçava a minha intuição e mal-estar. Uma vez longe da cadeira de diretor, busquei maior envolvimento com as aulas da graduação (nas modalidades à distância - EAD e presencial) e dei sequência ao meu retorno às salas de aula também como aluno de Psicologia. Deparei-me então com um cenário complexo:

·         A solidão e dificuldades enfrentadas pelos alunos no EAD e a convivência com a mediação tecnológica da modalidade mostraram com clareza minhas fragilidades técnicas e que o potencial para aprendizagem que existe nela é subaproveitado;

·         Durante quatro anos e meio de formação em Psicologia, regularmente acontecia de eu sair de uma sala de aula como aluno e entrar na sala em frente para lecionar; eu diariamente lidava com as dificuldades no lugar ‘aluno’ para ter aprendizagem efetiva e momentos depois era testado no ‘lugar’ professor para produzir essa efetividade; essa situação produzia uma experiência de ambiguidade e falta de sinceridade comigo mesmo, pois, como poderia cobrar uma coisa numa sala e não entregá-la na outra?;

·         Os conhecimentos em Psicologia e o estágio em clínica me desafiaram pessoal e profissionalmente; muitos pacientes do Serviço de Psicologia Aplicada, onde estagiei, eram discentes da UFRRJ e durante dois anos ouvi relatos sobre sofrimento psíquico no processo formativo deles e o papel crucial da relação com docentes e seus métodos de ensino nesse sofrimento; a sala de aula tornara-se um dos ambientes mais ansiogênicos e aversivos da vida dos estudantes;

·         Dimensão relacional e afetiva: às memórias e afetos positivos ligados a muitas pessoas com as quais convivi tornaram minha jornada gratificante e substantiva; muitos ex-alunos tornaram-se amigos pessoais e com eles colaboro regularmente, outros me oferecem produtiva e oportuna locução sobre a realidade do mercado e constantemente trocam experiências e materiais comigo ou voltam para dar palestras; essa relação demonstrava as lacunas entre a realidade das organizações e do mercado e o conteúdo explorado por mim em sala de aula; a dimensão relacional e afetiva estava se perdendo, entretanto;

·         A maioria dos meus alunos já estagiava; eles chegavam cansados às aulas e com a visão de que a prática era mais importante do que a teoria; eles realmente criam que, se houvesse uma verdade, ela estaria no mercado de trabalho, não no ambiente de formação, muitas vezes visto e definido como ‘pedágio necessário’, jamais como ‘via’ ou ‘caminho’; o desafio diário era mostrar a eles que a teoria também é importante e, quanto mais estiver aliada à prática, melhor para eles;

·         Internet, laptops, smartphones (Ainda não era Inteligência artificial!) cada vez mais presentes em sala de aula facilitando as atividades e escancarando uma importante realidade: a quantidade e disponibilidade de conhecimento é algo avassalador; a produção e acesso a tanto conhecimento desafiam a... 

        (i) criação de cursos e estruturação de disciplinas e 

        (ii) as condições do professor de se manter atualizado com o que supostamente é melhor e de ter uma visão sistêmica e crítica sobre como se dão transformações e inflexões na área em que ele atua;

·         Peso do transporte no desempenho dos alunos: com o passar dos anos, chegar à Rural passou a consumir mais tempo, energia física e mental e dinheiro; os alunos comumente relatavam esse fator e ele era compatível com uma pesquisa que fiz junto aos alunos de Administração, em 2011, quando ministrei a disciplina IH-113 – Administração de Transportes: entre outras coisas, a pesquisa relatava que 18,4% dos alunos já realizavam o par 2x2 de deslocamentos (dois de ida - dois de volta) e que chegava a 10% o número de estudantes que semanalmente gastavam acima de 32 horas no transporte para estudar e estagiar.    

A banalização do maior ativo: as relações.

Além de já lidar com o subaproveitamento do EAD (pela UFRRJ e também por mim) e o excesso de trabalho relativos à produção de TCC, quando me dei conta a aula presencial estava em processo de banalização e de evitação. Uma ironia para quem, após se entusiasmar e aprender a desejar o estar em sala de aula como docente, assumiu os seguintes paradigmas:

(i ) uma turma da modalidade presencial é uma reunião física única de potencial cognitivo, motivacional, emocional bem acima da média e do que raramente se vê nas organizações; as aulas (encontros?) são uma forma de explorar esse potencial; 

(ii) precisamos aproveitar o fato de estarmos próximos para relacionarmo-nos, conhecermo-nos e admirarmo-nos, precisamos conceber o outro de uma maneira mais ampla, não apenas por potencial cognitivo, mas fundamentalmente pelos pontos marcantes da trajetória, das superações, enfim, pela maneira como chegou até ali.

Eu jamais havia pensado que um dia teríamos que procurar razões para defender a aula presencial, justificar sua existência, garantir que ela tivesse ocupação real e substantiva, não meramente utilitária, ilustrativa e penosa ou pedágio necessário. A cobrança de presença em sala de aula havia se tornado um fator gerador de incômodos, virou um artificio que garante, pelo menos, a ocupação ilustrativa: aquela em que o aluno entra para garantir a presença e não ser punido e, por meio da tecnologia, passeia com seu desejo e ideias por outros lugares e paragens da crônica da sua vida universitária, como festas e polêmicas em redes sociais. 

Em outras palavras, o presenteísmo[1] – o estar presente, mas ausente em mente ou comportamento, afetando a produtividade – passa a ser institucionalizado. Entretanto, ainda que se saiba da dificuldade de chegar até a aula depois do fardo do deslocamento, tornou-se crucial que o aluno queira e acredite no que vai encontrar nela. Nesta vida, é fundamental acreditarmos que acordamos e saímos de casa para ir ao mundo, termos encontros com outras pessoas e produzirmos experiências substantivas. 

Encontros, não aulas

Comecei a repensar a docência, sua posição e papel ocupados no processo ensino-aprendizagem. Primeiro, compreendi que a disciplina que ministro significava 1/49 avos de carga teórica no itinerário de formação dos futuros profissionais e que eu precisava me ajustar realisticamente a isso e definir como efetivamente contribuiria nesse nosso encontro. 

“Se o conteúdo é amplo e acessível em diversas fontes – hoje são mídias – com o quê o aluno vai se conectar e no que investirá seu desejo?”, eu me perguntava e ainda me pergunto. Quando planejava conteúdos e processos avaliativos, eu regularmente me perguntava “como posso transformar esses 1/49 avos de experiência em sala de aula em algo efetivo e gratificante para mim e para essas pessoas? Esta disciplina é dada no segundo período, não nos veremos mais e não sei o que levarão desse encontro”.

 Entre outras mudanças pessoais, o complexo contexto me apontou que são as relações interpessoais – ou encontros, resgatando a perspectiva Espinozista – que potencializam as mudanças nas pessoas, não as informações e conhecimentos da disciplina sozinhos. Dessa maneira, orientei-me por algumas premissas para promover a mudança:

·         Meu afeto e desejo pelo papel que desempenho na sala de aula precisam estar orientados àqueles momentos e à reunião única;

·         O afeto e desejo do aluno pelo papel que desempenha na sala de aula precisam estar orientados àqueles momentos e à reunião única;

·         Minha experiência e suposto conhecimento e a experiência e suposto conhecimento dos alunos devem ser somados ao vasto e acessível conhecimento da área e com o providencial aporte da presença de ex-alunos em sala (quando possível) e de casos práticos;        

·         O momento deixaria de ser aula, algo que alguém com suposto conhecimento ministraria para um público passivo; ele passaria a ser encontro;

·         Teoricamente, seria o encontro entre nossas experiências, afetos, desejos e supostos conhecimentos e o estado da arte e da prática do conhecimento em questão;

·         Meu papel[2] então seria promover, viabilizar e regular tal encontro.

Quando me dei conta, eu não era mais um professor, como as pessoas projetavam e esperavam, mas sentia e me via como um promotor e regulador de encontros de transformação ou encontros transformadores. Eu tinha segurança e confiança de que os encontros e meu desempenho neles – medido pela preparação do mesmo, pela vontade de estar nele e pela empatia e sincera disponibilidade para o outro, para as relações – potencializariam experiências que efetivamente mudam pessoas, inclusive a mim mesmo. 

Eu não dava mais aulas, promovia e regulava encontros de transformação numa disciplina que representa 1/49 avos do itinerário de formação em crédito teóricos de um futuro profissional de Administração, Administra Pública, Contabilidade e Hotelaria, publico que atualmente cursa Psicologia Aplicada à Administração.

Um modelo em construção

 O modelo de atuação, ainda em aperfeiçoamento, ficou assim:

(i)    No primeiro encontro, os alunos recebem casos criados por mim, um mapa dos demais encontros, dividem-se em duplas ou trios e individualmente apresentam os conceitos ou representações que têm sobre os itens que compõem os eixos temáticos da disciplina;

(ii)    O mapa indica o item que será abordado em cada encontro, o que deve ser trazido individualmente e em grupo, relativo ao item – geralmente definições e/ou reportagens de periódicos não-acadêmicos – e se haverá a presença ou não de um ex-aluno para depoimento sobre o item;

(iii)   Durante cada encontro os itens são explorados de maneira geral e dentro dos casos usados na disciplina;

(iv)   Durante o semestre os conceitos apresentados individualmente no primeiro encontro são revisitados, refeitos e os alunos comunicam como que suas posições pessoais evoluíram em relação a eles;

(v)   Ao final do semestre, faz-se nova apresentação individual dos conceitos ou representações que eles têm sobre os itens. O objetivo é captar o ganho que se teve em termos de ideias, riqueza semântica, sentimentos e atitudes sobre os itens e o papel que a disciplina tem na formação deles.

Em termos práticos, a implementação sofre muitos reveses, pois, entre outras coisas, os alunos não costumam frequentar a primeira semana, eles faltam bastante durante os encontros, temos tido cancelamento de aulas por diferentes questões (energia elétrica, falta d’água, violência no entorno, paralisações, queimadas etc.), enfrentamos greves e há muita dificuldade para se compreender o que significa uma aula virar um encontro. Pra piorar, por vezes ainda estou oferecendo conteúdos em encontros totalmente expositivos e precisando apresentar outro modo de avaliação[3].

Entretanto, a mudança fez com que eu me sentisse mais potente e sincero comigo mesmo e com os alunos e mais flexível e tranquilo com o inerente desconforto de não haver encaixes perfeitos entre sujeito e seu desejo e os lugares. 

O que muda as pessoas são as relações

Ainda estou em fase de melhor estruturação dessa perspectiva, mas os resultados, apesar das resistências, têm sido promissores. O melhor indicador disso é o reencontro com alunos que não eram de Administração, mas tiveram aula de marketing comigo em outra formação e fizeram reingresso ou transferência. Quando cursam Psicologia Aplicada à Administração comigo, eles deixam claro quanto que a experiência de estar em sala de aula comigo mudou e como se sentem bem com isso. 

Não é nada fácil fazer com que os alunos entendam que o que temos são encontros e que neles devemos levar nossa potência e conhecimento para compartilhamento e mutua afetação. Esta perspectiva leva o aluno à compreensão de que o desejo, o conhecimento e o desempenho dele afetam a qualidade dos encontros, de todos os que ele têm, não apenas dos que acontecem em sala de aula, e isso exige sim maturidade.  

Que vá ao conhecimento quem o deseja.

[1] Garrido, Giovanna; Vazzoler Mendonça, Adriana; Marques de Oliveira Lopes, Kelly; Silveira, Marco Antonio PRESENTEÍSMO: CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DE UM MAL SUBTERRÂNEO Revista de Ciências da Administração, vol. 19, núm. 48, agosto, 2017, pp. 54-67

[2] Quanto à posição do professor no processo ensino-aprendizagem, os elementos ou objetos de mediação (livros, revistas etc.) ganharam, com a mudança tecnológica, destaque, relevância e também papel. O aluno pode autonomamente hoje acessar a IA e aprender. 

[3] É o que está acontecendo nesse semestre, em função da greve que tivemos no semestre passado.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Outros caminhos...outras palavras

Em 13 de julho de 2023, fiz um apelo em rede social, em uma mensagem insuspeita de comunicar um mau momento que estava passando. Felizmente, não era grave, mas algo diferente acontecia, com o poder de afetar negativamente minha potência de viver. Na mensagem eu dizia: “Gente, mandem razões para eu tomar um chopp gostoso e celebrar vocês, por favor. Beberei hoje a nossa amizade. É um feito ou ideia ou bem-estar seu, alegria ativa, nada de alegria passiva, time que venceu etc.” Até as 14h, quando finalmente captei a senha do viver implícita na situação em que me encontrava, eu já me desgastara bastante nas palavras e caminhos conhecidos, desconsiderando como podem ser oportunos outros caminhos e outras palavras.

Eu estava mal daquilo que comumente chamamos de psíquico — ou alma — e numa intensidade que me surpreendeu. Conheço esse mal, mas era o novo em mim que me deixava praticamente parado, embora não prostrado. Estava desatento, desconcentrado, fraco, sem sopro de vida. Não conseguia me concentrar em nenhuma das inúmeras coisas que tinha para fazer — das obrigações profissionais ao exercício da criação literária, passando pelas rotinas que estruturam a vida. Conforme o tempo passava e eu nada fazia, mais me angustiava e mais desse mal eu sentia, até o momento em que parei de andar sem rumo pela casa e me deitei.

Curiosamente, eu não estava ansioso. Comecei o dia bem, tomei um bom café e me certifiquei do que havia programado na noite anterior fazer na rua, antes de dar conta dos afazeres profissionais e, se sobrasse tempo, escrever. Entretanto, no caminho entre Nova Iguaçu e Seropédica, comecei a sentir que algo não ia bem: cansaço, apesar de ter dormido bem e não ter pedalado ou caminhado antes. Meu olhar insistia na ocupação desordenada que se dá em Queimados, à beira da Dutra — algo que, se nada for feito, se tornará um problema sério nos próximos anos. Sentia dificuldade imensa de me concentrar no que mais me dá prazer: a criação. Nenhuma ideia atraente ou surpreendente emergia. Comecei a questionar o que havia comigo e segui os caminhos conhecidos. Logo percebi que aquele trecho da estrada fora um mau encontro — o primeiro do dia, aliás. Um encontro que, infelizmente, se repete duas ou três vezes por semana e, como sou obsessivo, ainda não aprendi a dele me abstrair ou me desligar.

Sabedor das consequências dos bons e maus encontros sobre nossa potência de viver, e de que não temos controle absoluto sobre sua ocorrência, cometi o equívoco de não acessar e acolher as sensações e sentimentos que emergiam, naturalizando o que meu organismo me dizia (sim: mente e corpo, tudo junto e misturado). Mesmo sabendo que era inseguro, escolhi buscar fora de mim o alívio: peguei o celular e liguei para pessoas caras, que poderiam me proporcionar um bom encontro. Não tive sucesso, embora tenha conseguido falar com Allan, um grande amigo. Sem nos vermos há um bom tempo, conversamos alguns minutos, mas nada muito alvissareiro — algo difícil no Brasil, no Rio de Janeiro e, principalmente, na UFRRJ, em Seropédica e Paracambi, onde ele reside. Embora intuísse que precisava mudar a rota da conversa que geralmente temos — e da qual muito aprecio — não consegui. Preocupado com a escolha imprudente que fizera, a atenção redobrada no trânsito não deu condições de acessar a demanda que jazia no plano intuitivo e que me levaria a falar com ele sobre o que sentia.

Em Seropédica, a natural aleatoriedade da vida na produção dos encontros somou-se aos pensamentos que traziam coisas significativas para a pauta do agora, e a demanda pelo entendimento do que me ocorria ficou novamente latente. As conversas que tive não foram boas, e eu não conseguia entregar coisas boas às pessoas. Meu ânimo já estava alterado. Entre uma fala e outra, lembrei-me de que no dia seguinte minha mãe e Maninho — ex-sogro, de quem muito gostava — fariam aniversário. Daí em diante, entrei na rota da reflexão sobre a vida: minha mãe morrera há quarenta e um anos, e dela eu conseguia acessar apenas uma ou outra memória. Algo ficara bloqueado — não lembrava de seu rosto, de como era sua voz ou de nossas falas. Pensava em como consegui passar pela vida sem ela e quais consequências aquilo gerara.

Maninho — uma perda recente, rápida e misteriosa — fizera e dissera coisas muito significativas para mim nos anos em que convivemos, coisas que abriram um novo momento em minha vida como professor, principalmente. Lembrei-me da nossa última fala, em 16 de junho, quando, ao telefone, perguntei como estava, e ele me respondeu: “Tô bem, não, Mestre. A coisa não tá boa pro meu lado, estou fuzilado.” Três dias depois, ele morreu.

Sem dar conta do que planejara resolver na rua, fui direto para casa. O reencontro com os cães — sempre um momento diferenciado — não foi tão bom. Eles estavam apáticos, não fizeram a tradicional festa. Como estava estranho, não insisti nas brincadeiras. Logo percebi que era resultado das aflições vividas na noite anterior por causa dos fogos após os jogos. Assim que me sentei para trabalhar, eles dormiram perto de mim, não demandaram afeto ou toque — apenas proximidade. Quando Rosângela chegou, também não estava bem: fora trabalhar no sufoco e, no dia anterior, tivera dor de garganta e febre. Apesar de eu ter dito para ir pra casa, preferiu ficar e cuidar do básico que deixa minha vida segura e confortável. Ela também não dispunha do ânimo e da potência que geralmente a movem, e que fazem com que interaja bastante comigo, sinta o quanto estou bem ou mal e se desdobre em gestos e palavras para me deixar bem. Bastante sintomático do dia: ela não fez a tradicional provocação — “Quais são as novidades? Quero as novidades!”.

Rosângela percebeu que eu não estava bem e tentou, por atalho, tocar no tema, mas ela própria não foi muito fundo. Eu sabia o que ela falaria e queria falar do surpreendente que sentia, mas nossa interação não vingou. Deu-se então um momento de preciosa iluminação: como falar para ela que não estou bem, tendo eu uma vida material e profissional muito boa? Mesmo sendo ela a pessoa que mais sabe de mim, pensei no sacrifício que fazia e no que pensaria se ouvisse de mim, naqueles instantes, que estava angustiado, que não conseguia fazer as coisas e não entendia por que sentia aquilo.

Cedi a um escrúpulo que me visita todas as vezes que compartilho com ela meus estranhamentos com a vida — minha inquietude e constante desejo de mudanças. Um escrúpulo que é quase regra: em situações em que as diferenças entre as vidas que se têm são gritantes, sinto-me mal quando digo que algo não está bem comigo. A discrepância das realidades econômicas e materiais entre mim e o outro ganha uma legitimidade absurda e deslegitima qualquer relato sobre mal-estar psíquico ou da alma. Então fico me avaliando como preciosista, ou o que chora de barriga cheia. O sono chegou, e cedi à sua força.

O dia estava quente — outro fator que objetivamente afeta a qualidade de um dia meu — e o sono não prosperou. Um banho gelado promoveu algumas mudanças na dinâmica em que me encontrava, inclusive despertou a vontade de beber à noite — um claro movimento de desligamento, e não de enfrentamento do problema. Mais esperto e revigorado, lembrei-me da necessidade de enfrentamento e que poderia manter contato com a terapeuta. Optei por buscar sozinho uma compreensão do que acontecia e um bom encaminhamento sobre como lidar com isso, sem recorrer à preciosa ajuda dela, a quem buscaria se piorasse.

Após o almoço, enquanto vasculhava a rede social, vi uma postagem sobre os hormônios da felicidade e me concentrei na informação de que comemorar as coisas ajuda na liberação deles. Isso mudou toda a dinâmica. Em seguida à leitura, lembrei-me de que um amigo não estava numa fase muito boa e ainda não tinha perguntado como ele estava naquele dia. Ato contínuo, enviei uma pequena e informal mensagem, sem cumprimentos: “Mande as razões para eu tomar um chopp gostoso hoje, por favor.” Embora fragilizado, suas palavras me alertaram para a necessidade de acessar outras palavras: “Consegui sair de casa! Fiz algumas coisas, mas agora só quero dormir.”

A luta dele é mais complexa que a minha, e sua resposta me alegrou. A troca de mensagens funcionou como senha para desbloquear ideias que, se não tivessem levado à compreensão e elaboração do que sentia, ao menos responderam pela melhoria do dia. Ficou claro para mim que, se tivesse conseguido falar para alguém do que sentia, certamente haveria pouca reação, pois muitas pessoas já confessaram ver em mim alguém que não tem problemas — que loucura isso — ou que, se os tem, não deve ser nada demais.

Nesta luta diária pela sobrevivência, e considerando as enormes discrepâncias sociais e econômicas que observamos, praticamente criamos um protocolo informal: pessoas remediadas não têm tantas necessidades afetivas não atendidas e, portanto, não precisam de reparação ou reparentalização — principalmente fora das salas dos psicólogos e psicanalistas. Foi então que resolvi aumentar minha potência de viver, acessando outro caminho e outras palavras.

As razões que as pessoas me mandaram para celebrar realizações ou feitos delas foram marcantes:

Você é um dos grandes responsáveis por eu estar no mestrado.

Quitei um financiamento.

Domingo tenho dois espetáculos maravilhosos!!!!

Minha vida profissional está maravilhosa, tendendo a melhorar.

Voltei a tocar violão e a cantar... e todas as noites eu danço, por gratidão, por ter me libertado de um relacionamento tóxico.

Estou voltando a ter uma vida “normal” depois de dez meses doente em casa.

A amizade já é um feito para ser celebrada, não acha?

Poder estar aqui escrevendo e preparando o encontro de amigos no próximo domingo (grande parte de ruralinos).

Comemore nossa amizade, dos tempos em que nossa realidade hoje eram nossos sonhos compartilhados enquanto alunos, professores no ICHS e no UBM. Comemore, meu amigo querido, nossa luta foi dura.

Vamos brindar nossa existência.

Cumpri a promessa: tomei um chopp e celebrei a experiência única e transformadora do nosso viver ao acessar outros caminhos e outras palavras. Não foi uma elaboração plena do que eu sentia naquele dia, mas foi apaziguador e alvissareiro (re)acessar o potencial terapêutico que a experiência da alteridade pode prover.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Escreva sua história na velocidade que seu lápis e papel permitirem

 Manhã de 22 de abril de 2022. Estava subindo o Belvedere a caminho de Paracambi. Pedalava devagar e em marcha leve, contemplava a beleza da mata por trás do Posto de Gasolina no Belvedere e ouvia Together, uma música relaxante*. Momentos antes eu me questionava se deveria colocar uma marcha um pouco mais pesada e imprimir esforço condizente com quem tem planos para pedalar grandes distâncias. Como decidi há alguns anos que após os cinquenta eu iria fluir pela vida e fruir bem mais dela, resolvi o dilema num oportuno pensamento: siga seu rumo e escreva sua história na velocidade que seu lápis e papel permitirem

De repente, uma pessoa atrás de mim faz o som de um pigarro. Defini que era outro ciclista, não dei atenção e esperei que ele me ultrapassasse. Novamente o pigarro, e logo me dou conta de que a pessoa está chamando minha atenção. Continuei olhando para frente, mas pensativo sobre o porquê de ela não me ultrapassar ou se, afinal, era algum conhecido. Momentos depois, uma voz de criança soou no ar: sua garrafinha d’agua está quase caindo. Pus a garrafa no lugar e resolvi olhar para trás e agradecer. Um menino pedalava sorridente; duas alças pretas indicavam que estava com uma mochila em suas costas. Agradeci, continuei pedalando, agora com mais atenção porque a pista estava afunilando e chegávamos ao encontro com a Rodovia Presidente Dutra, um lugar muito perigoso e sem muito espaço entre a pista de acesso e a defensa metálica.

Quando acessávamos a entrada do posto do Belvedere, o menino começou a me ultrapassar e sorridente disse: “passei você e com o pneu furado, hein!” Além de bem humorado, o danado era competitivo, me chamava para uma disputa. Fingi que competi, mas desde o início compreendi que estávamos juntos e que ele era o vencedor do dia. Ele me ultrapassou fazendo muito esforço com sua velha bicicleta e o pneu da frente estava realmente furado. Perguntei onde ia e ele respondeu que iria vender cocada na porta da pastelaria, que estava atrasado. Perguntei nome e idade, e Júlio, sempre sorridente, respondeu que tinha 12 anos.

Perto da pastelaria ele parou, tirou a mochila das costas, abriu e a mostrou para mim, que parei a alguns metros dele. A cena era marcante: encostado na velha bicicleta com pneu furado e com a mochila à mão, o bravo menino de 12 anos contempla sorridente o homem de 51 anos, devidamente paramentado (roupa, capacete etc.), ofegante, sem sorrir, segurando entre suas pernas o quadro da moderna bicicleta, bebendo água na garrafinha e em sua caixinha de som continua tocando a música together.

Júlio deixou a bicicleta e começou a ocupar o posto de trabalho. Logo me dei conta de que estava sem dinheiro e não tinha como ajudar o bravo e simpático menino. Despedi-me dele chamando-o de Júlio das Cocadas e desejando boas vendas. Parei depois da pastelaria para pensar em tudo o que tornava a situação inusitada e marcante. Primeiro, estava eu aproveitando a vida, acreditava estar sozinho, curiosamente ouvia uma música chamada together, mas silenciosamente e a caminho do trabalho me fazia companhia na subida do morro um menino de 12 anos, que só se anunciou quando viu que minha garrafa d’agua estava caindo. Segundo, lembrei imediatamente de quando tinha a mesma idade dele e ganhei uma velha bicicleta de meu pai: à época eu reclamei dela não ser nova, como a dos colegas, embora fosse toda cromada. Por fim, minha sorte foi diferente da de Júlio, pois, mesmo que tenha andado várias vezes com o pneu furado, a velha bicicleta cromada me servia para curtir a vida, não para trabalhar. Ainda mais importante: quando usava a velha cromada para ir à escola, era ‘lápis e papel’ que eu levava, não cocadas.  

Quando montei na bicicleta e continuei as pedaladas, ouvi a voz de Júlio perguntando para onde eu iria e me desejando boa viagem. Ele ia em direção ao bebedouro do posto de gasolina. Respondi que ia para Paracambi e perguntei onde ele morava. Humoradamente, expondo toda meninice dos seus 12 anos, disse que morava no São Miguel, segundo ele, “um bairro longe, que sobe morro e desce morro com pneu furado para chegar lá”. Como logo produzo imagens com as falas das pessoas, imaginei como seria o desenho que Júlio produziu em sua mente ao falar de onde vinha para trabalhar. Continuei meu caminho até Paracambi fazendo em minha mente uma pintura simbólica dos morros que subi e desci, traçando um mapa diferente dessa jornada que semanalmente faço para aproveitar a vida. Juntos escrevendo essa história estavam Júlio das Cocadas, eu e o menino de 12 anos que só deixarei de ser quando minha história tiver um ponto final.   

* https://www.youtube.com/watch?v=gEb_BB-OTxQ&t=522s

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Coração e mão X Cérebro e garganta

Um conhecido faleceu e no dia seguinte fui me solidarizar com os filhos, principalmente os ‘especiais’, um menino e uma menina totalmente dependentes dele. Quando cheguei, duas pessoas discutiam intensamente. Assim que dei meia volta, a voz de um dos envolvidos soou alto: 

─ Marquinho, vem cá ajudar na solução de um problema! O insensível aqui tá insistindo num absurdo.

─ Isso! Precisamos de mais uma pessoa coerente para resolver essa questão.

Pensei em fingir que não ouvi, mas a amizade com o falecido era de longa data. Decidi entrar sabendo que seria o mediador do intenso duelo entre ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’. Duelavam a filha do falecido e o esposo da irmã. O motivo era o que fazer com os ‘filhos especiais’ já que o falecido era viúvo.

A irmã defendia que nada mudasse na rotina deles, que permanecessem em casa para serem visitados, fossem abastecidos pela pensão de pai e mãe e que demais irmãos e famílias se revezassem na gestão. Por sua vez, o cunhado defendia que custos fossem priorizados e reduzidos, que se reduzisse o número de visitas a eles ou do que era oferecido aos visitantes e, por fim, que estudassem uma futura colocação dos irmãos numa instituição onde recebessem atenção especial, o que amenizaria para todos os encargos do revezamento.

Explicadas as posições, ambos falaram: “É tão óbvio e ela(e) não quer ver”. 

Em nenhum momento me coloquei como simpático a uma das posições, mas empático a elas: todos queriam o melhor, mas não conseguiam perceber como pintavam o óbvio e o transformavam no quadro. Isso me permitiu compreender que, ao pintar o quadro para análise, cada um colocava como figura ou óbvio o que sua experiência e habilidades e competências alcançavam, o que, logicamente, deixava as do outro como fundo no quadro da obviedade.

Não demorei para decifrar a senha por trás daquele código do viver: precisam se conhecer como virtudes, não como ‘insensibilidade’ e ‘incoerência’. 

Irmã mais velha, a ‘incoerência’ esteve próxima aos pais nos cuidados desde que os irmãos nasceram; sabia quanto que as visitas eram caras para eles, o que a permitia olhar aquela realidade e planejar com facilidade o ambiente, os próximos passos e onde cada um da família entraria nos cuidados, faltando apenas ajustes para o revezamento. Compreendi que nela predominavam afeto e expediente ou coração e mão. 

Casado com a irmã mais nova que ela, a ‘insensibilidade’ era professor universitário, estudioso de gestão e estratégia. Morava longe dali e tinha informações precisas sobre custo de vida e o que ficaria como pensão, sabia que uma pessoa precisaria ser contratada para ficar durante o dia, enquanto os demais revezariam toda noite e temia pela subsistência do projeto. Sua habilidade para argumentar era impressionante, o que certamente fez a ‘incoerência’ gritar por minha ajuda. Compreendi que ele era pensamento e comunicação poderosos ou cérebro e garganta.

O óbvio ao que cada um fazia menção era as competências, habilidades e crenças que explicavam o melhor jeito que ambos encontraram para estar nessa vida e produzir suas virtudes. Logicamente, faziam uso disso no duelo e o resultado não estava bom para ninguém, principalmente para os dependentes que a tudo escutavam e de bobos não tinham nada. “É da gente que estão falando, Marquinho?”, me perguntaram quando fui cumprimentá-los.

Quando finalmente falei, procurei mostrar o que via como quadro e relação figura x fundo: concordava com tudo o que disseram, mas lá no quarto estavam ‘as figuras’, aqueles que deviam ser priorizados para escuta, entendimento da realidade e busca por solução; os sentimentos e pensamentos dos dois deveriam ser figura e não fundo no quadro. Falei para ‘incoerência’ e ‘insensibilidade’ que elas começavam a pintura por suas virtudes, ao invés de usá-las para dar conta do desafio que a pintura do quadro demandava e que dificilmente chegariam a qualquer conclusão se não reconhecessem que o obvio é mais relativo do que se imagina e se vê. A ‘insensibilidade’ resolveu parar e fazer como sugeria e os irmãos foram trazidos à sala e ouvidos.

Gastei tempo apresentando coração e mãos ao cérebro e garganta, finalmente se conheceram como virtudes e não como ‘insensibilidade’ e ‘incoerência’. Fiquei sabendo depois que optaram por manter as crianças em casa.    

Guardei o precioso insight que me veio de, ao invés de julgá-los, lê-los e representá-los como dimensões predominante e por onde as virtudes se enunciam: num predominava o afeto, o fazer pragmático, o expediente; noutro a reflexão, a estratégia, o cálculo, a facilidade para construir e expor argumentos. 

Ficaram lições: somos coração, mãos, cérebro e garganta, mas um predominará na viabilização das virtudes que podemos produzir e aprender a negociar seu uso ou aplicação; esta aprendizagem é fundamental, pois as razões do coração nem sempre são compatíveis com as do cérebro e as mãos estão sempre mais próximas da realidade do que a garganta; por fim, o óbvio é sempre o que escolhemos como figura nos quadros da vida e sempre estará associado aos que nossas experiências, competências e habilidades alcançam.

(23 de novembro de 2021)


terça-feira, 2 de novembro de 2021

Encontros, despedidas, rememoração e recriação.

Finados sempre foi um dia especial para mim. Eu não sabia definir com precisão o porquê, mas a experiência me trouxe as dicas necessárias para o entendimento desse delicado código do viver. Onde celebrávamos a morte, eu via uma celebração da vida: o Dia de Finados é pura criação e recriação.

A arte de resgatar as memórias dos que se foram começava de véspera, preparando o cenário para o famoso Dois de Novembro, quando íamos ao cemitério, o culminar do pesaroso ritual. É criação e recriação constantes, e a danada da memória, a cada atualização, é quem faz isso.

Atualmente, não vou ao cemitério visitar os túmulos de meus pais, mas, assim que abro os olhos, vou direto para o ateliê das lembranças e começo a criar e recriar. Não sou dado às artes da gastronomia e da hospitalidade, mas, como sou filho de mineiros, ponho a mesa, preparo o lugar de cada um, e cuido de cada detalhe. Só saio de lá quando todos se vão, ao final do dia. Deixo a bagunça para arrumar nos dias seguintes e vou para a cama descansar.

Antigamente, era diferente. “Prepare-se, é dia de celebração dos mortos”, dizia-se solenemente ao me acordar. Eu respeitava a ausência de vida nos olhos de todos. “Hoje é Dia de Finados”, comunicavam, e tudo mudava na casa: introversão, lágrimas, frases feitas, poucas palavras: “Ponham uma roupa boa, demonstrem seu afeto”, “Você leva as velas e vê se não esquece o fósforo”, “Você leva as flores”, “Já falei com o rapaz que vai capinar em volta do túmulo”, “Vamos cedo porque não quero pegar o cemitério lotado e temos que passar no Orlando Cocó para levar um frango para o almoço”, “Feche o olho na hora da oração, seu demente”.

Na hora do almoço, palavras praticamente cassadas, lágrimas contidas. Pensamentos, porém, são discretos, e pensar, ainda que gere muito barulho dentro da gente, é ato de ousadia e resistência às cassações. “Como finaram se o que fizeram foi uma passagem? Se saíram daqui para ali, para lá ou acolá, vivos estão, ora. Como morreram, se não há um dia em que deles não me lembre, em que a memória não os traga ou nos leve para lugares e momentos especiais?”, pensava calado enquanto olhava para a cadeira de Dona Tininha vazia na mesa. “Se deixamos a cadeira, por que não pusemos o prato e os talheres dela?”, continuava a reflexão. Com um pouco mais de ousadia na imaginação, lá estava Dona Tininha nos fazendo companhia, piscando o olho para mim, sorrindo discretamente, orientando a respeitar o silêncio.

A experiência chegou, e a ousadia e a resistência tiraram a imagem da mesa da cozinha, levando-a para o ateliê das lembranças. Começo os preparativos, deixo as portas abertas e, aos poucos, todos chegam. Começa a tocar Trio Parada Dura, e Seu Antônio sorri feliz. Para Dona Tininha, por força do tempo e recriação da memória, preparo uma playlist de Clara Nunes. Ela gosta quando toca Feira de Mangaio e aceita com elegância o possível lapso em quarenta anos de saudades. O tempo passou, as coisas melhoraram, e hoje temos quase de tudo: frango, peixe, salada, fruta, cerveja e vinho, refrigerante e sobremesa. Atualmente, podemos ter exageros. Mônica pede uns louvores, Cris traz uns toques de atabaque do seu terreiro, e eu não vejo a hora de tocar Milton Nascimento. Malu, Leo e Mariana, que chegaram zoando a todos, nos abraçam, pegam seus lugares e começam a falar das novidades de suas vidas profissionais e afetivas.

Tudo muda a cada ano para esse dia. Dona Tininha, artista da costura, exige que ninguém repita roupa, e estamos todos no fino do traço e do ponto. Seu Antônio não gosta de tirar aquela camisa surrada do Botafogo do Brasileirão de 1995, mas faz a parte dele: reclama, mas Dona Tininha o provoca com aquelas sonoras gargalhadas. Algumas coisas não mudam, é claro, e precisam permanecer; são elas que nos guiam no passar do tempo. Mas louças, talheres, temperos, quadros, tinta da parede, das madeiras e do piso são todas novas a cada ano. Mônica faz a oração; eu e Malu somos os únicos de olhos abertos. É: serve aqui, pega ali; é festa, e a gente se refestela.

Quando me dou conta, o ateliê é só alegria. Já estamos no café da tarde. Chegou a hora de Milton Nascimento; está tocando Encontros e Despedidas. Paro de comer a broa de fubá e, então, me permito um instante de silêncio. Contemplo com contentamento Mariana, Malu e Leo discutindo as coisas do seu tempo; Mônica reclamando com o pai a demora dele em fazer uma visita à casa dela; enquanto mãe e Cris falam sobre a melhor maneira de cuidar das samambaias-choronas. Maya, Joana D’arc, Cléo e Freud estão à porta latindo: os safados querem atenção.

São quase dezoito horas, e está na hora da Ave-Maria. Colocamos dois copos com água sobre o rádio, Júlio Louzada solta a sua voz, e a água está benzida. Pai serve a água benzida para mim, Cris e Mônica, de forma muito solene. Mãe, brincando com Léo, Mariana e Malu, mede a golada de cada um e pede para que não babuja no copo. “Se não sobrar para mim é pecado, hein”, diz ela, sorridente.

A folhinha na parede informa que amanhã é dia 3 de novembro. Milton Nascimento informa que: “E assim chegar e partir/São só dois lados da mesma viagem/O trem que chega é o mesmo trem da partida/A hora do encontro é também despedida”. Abraços trocados, sorrisos e lágrimas, recomendações e, nas faces de cada um, uma enorme gratidão. Fecho os olhos; todos se vão.

(2 de novembro de 2021)



quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Uma Rural todinha em mim

A UFRRJ faz 111 anos. Recebo algumas perguntas para expressar minha relação com ela. Vejo-me diante do desafio de, em poucas palavras e à queima-roupa, falar dos sentimentos e do que me marca na experiência de ruralino, do que a Rural representa para mim e da percepção que hoje tenho dela.

Aceito o desafio. Falo e, ao mesmo tempo, ouço imaginariamente “Um girassol da cor do seu cabelo”, de Lo Borges. A sensação é a mesma de quando ouvi essa música pela primeira vez, lá na Casa Rosada, graças ao amigo Fernando Duque: o corpo ficou todo arrepiado no encontro entre mim, a música e o vento que só venta na Rural.

Falar do que a Rural representa para mim não é fácil — dá choro e dá risadas em proporções absurdas. São 50 anos de idade e 50 anos de Rural. Tirando pouquíssimos anos em que estive distante, todos os outros anos são Rural, são ruralinos. A Rural é definitiva em tudo o que me constitui: afetos, memórias, encontros, valores e sonhos.

O que dizer dos sentimentos? Lembro-me de que sou filho de funcionário e residi aqui dentro, de que estudei na escolinha do IZ quando ela era de fato no IZ, de que fui aluno do CTUR, duas vezes aluno de graduação e uma de doutorado, de que fui técnico-administrativo e estou docente. São muitas as emoções e os sentimentos envolvidos na minha relação com a Rural.

A Rural atravessa e marca definitivamente a minha história.
As ligações são muitas, e descrever meus sentimentos de ruralino não é tarefa fácil.

É tudo muito denso e tenso nessa relação — são muitas memórias, desde o momento de criança em que comi, ao lado do meu pai, no Bandejão, onde ele um dia foi garçom; até o momento em que, já docente, assisto lá de cima do palco do Gustavão à alegria dos formandos e das famílias na formatura; passando por uma cirurgia no antigo hospital do IF, por andar num ônibus dirigido pelo senhor Modesto, por estar conversando com o João, porteiro do Clube Social, por estagiar no plantio do arroz e na ranicultura, por ter sido do CPD e participar da informatização e da implantação da internet na Rural, por plantar árvores ou hortaliças no CTUR, por ter vivido amores aqui, por ter conhecido pessoas sensacionais… a lista é grande. Ah — sem falar no sentimento de ciúme do meu pai, que amava e vivia a Rural numa proporção assustadora.

É tanta coisa que me marca; minha memória ilustra as diferentes posições ou lugares em que estive por aqui. Mas há algo que deixou marcas profundas. Meu pai, o saudoso Antônio Goulart (ou “Mineiro”), trabalhou nos alojamentos e, nas datas de Natal e Ano-Novo, eu fazia-lhe companhia para levar alimentos e cumprimentos aos alunos que não tinham recursos. Ele fazia pequenas ceias, distribuía abraços e palavras de apoio, convidava as pessoas para virem à nossa casa.

Minha casa sempre foi cheia de pessoas da Rural — elas passavam Natal, Ano-Novo, aniversários e outras datas conosco.

Vi meu pai chorar abraçado a muitos, nos seus piores ou melhores momentos; como no dia, em plena ditadura, em que ele chegou em casa após ser testemunha de defesa de um aluno preso por supostos atos terroristas; ele chegou e começou a chorar: chorou pela injustiça, pelo mal que faziam ao aluno — que estava em péssimo estado — e chorou porque achava que o aluno morreria e não podia fazer nada.

Meu pai também tinha uma memória impressionante: conhecia todos pelo nome, sabia os cursos que faziam, os alojamentos em que viviam e as cidades de onde vinham. Muitas foram as vezes em que visitávamos as famílias de alunos e ex-alunos nas férias em suas cidades de origem. Meu pai acolhia, ajudava e orientava como podia as pessoas, e exigia que eu respeitasse alunos, professores e técnicos; sempre ilustrava as qualidades e esforços que faziam para levar suas vidas.

Passados os anos, que percepções tenho da Rural? Sem exagero, não tenho apenas percepções da Rural, como se estas fossem impressões que ficam após um encontro involuntário ou passageiro. Tenho vivência dela — nela, com ela e por ela. Minha experiência com a Rural é involuntária, dado que sou filho de funcionário, mas é principalmente voluntária, pois nela fiquei, nela estou, ainda que tenha me afastado em alguns momentos.

A influência da Rural na minha estrutura identitária e na produção da minha subjetividade é da ordem do inexorável e do indelével; é punk, submete-se apenas às artimanhas da demência. Conheço o que alunos de todos os níveis experimentam. Conheço o que o morador experimenta, o técnico-administrativo, o docente (dei aula em todos os campi) e o que aquele que tem cargo ou função de coordenação ou executiva experimenta.

Sim — hoje tenho uma visão diferenciada da Rural, pois preciso transcender os afetos mais ingênuos e ter em mente que ela é um organismo complexo: é uma universidade, uma cidade e uma organização ao mesmo tempo. E isso exige modelo de gestão ou de lida e esquemas de observação e interpretação diferenciados.

Se chama UFRRJ, mas ela é universidade nos institutos, campi e na biblioteca, onde se produzem produtos e serviços de alto valor agregado, como ensino, pesquisa e extensão; ela é inteirinha uma cidade, com todos os desafios de se produzir uma vida coletiva; e ela é uma organização — um nexo de funções e recursos que existe para abastecer a si própria e à universidade e à cidade com o que é fundamental à existência. É todinha Rural.

A Rural é única, imensa em todos os sentidos e desafiadora. E ela, de uma maneira bem peculiar e figurada, está toda em mim. Lamento, mas essa história não cabe aqui.