Um não-professor fugindo de uma sombra
Verdade seja dita: eu não queria ser professor. Aconteceu. E não foi encaixe perfeito. Embora alguns vissem em mim um professor, a senha não estava visível e eu não dava atenção às pistas.
Curiosa e ironicamente, durante anos a possibilidade de ser professor não me
entusiasmou. Eu dei preferência à carreira na área de marketing e equivocadamente pensava em encontro e encaixe perfeito entre sujeito, seu desejo e ‘lugar’. "Lá eu serei mais potente", dizia para mim mesmo.
Em
diversos momentos, eu disse que não seria professor, inclusive da UFRRJ, onde era Técnico Aadminstrativo em Educação. Na prática, mesmo sabendo da importante
posição da docência no processo ensino-aprendizagem e estando de
diferentes maneiras ligado a ela, eu, por falta de entusiasmo, a negava.
Mais: mesmo sabendo da importância do ‘lugar’ professor na minha relação com a Rural,
eu ainda estava ligado à ideia de trabalhar em marketing e também de escapar à
sombra do meu pai — ele já era uma lenda da UFRRJ.
Demorei a ver o professor que outras pessoas viam em mim e faziam questão de apontar. Lembro-me vividamente de uma
ocasião em especial, em janeiro de 1995. Eu trabalhava no Câmpus Seropédica e
fazia pós-graduação em Sistemas de Informações, à noite, na UFF, em Niterói.
Para dar conta dos deslocamentos, dormia na casa de um primo (Fernandinho) em
Campo Grande. Um dia, às cinco da manhã, quando saía de sua casa para
trabalhar, ele veio até a mim e disse algo assim: “Marco, sei que você está lutando para
ser um profissional de mercado, mas não posso deixar de dizer que você pode ser
professor, aliás, um grande e excelente professor é o que vejo quando penso em
você e nessa luta para mudar sua condição profissional”. Foi mais um dia de muita luta com senha clara pra alguém, porém de identificação e decifração difíceis para mim.
Apesar dos estímulos,
eu reiteradamente disse ao Fernandinho e aos demais que seria profissional de marketing.
Desencontro e desencaixes marcados
O mercado e eu não nos 'encontramos’. Veio a docência, e sem sinais. Fiz uma visita ao meu pai, na UFRRJ, e vi o comunicado de um concurso para professor substituto justamente na área de marketing. Passei no concurso, não pude assumir; virei docente voluntário, foi muito bom!, virei efetivo em 2002.
Fui professor de marketing durante 22 anos e duas coisas me incomodaram nesse tempo: não aguentava mais a área em que fui ao encontro dela e o ‘lugar’ ou papel da docência. Com o tempo, eu não me via nem me definia como professor. O ‘encontro’ perfeito, o tal ‘encaixe’ que tanto falam entre uma pessoa e a docência, não me seria possível. Tampouco houve o famoso "foi a docência quem me escolheu. E a questão logo se mostrou maior: eu precisava mudar meu modo de estar na vida: ser potência e produção aonde estivesse -- a verdadeira senha -- e não um perspicaz descobridor do meu lugar na vida.
Produzindo a mudança, mergulhei na Psicologia. Ao mesmo tempo imprimi um delicado processo de ressignificação do papel e posição da docência no processo ensino-aprendizagem. Um processo autoral — não tive modelos — e desafiador: enquanto estive com a atenção dividida entre várias frentes, eu não percebi
nem compreendi o que acontecia no contexto da lecionação e no processo de
ensino-aprendizagem no ensino superior.
Dito de outra maneira: um concurso me fez professor, mas não
fui devidamente treinado para isso, isto é, para o lugar de ensino no processo; tornei-me diretor de um Instituto e também não fui treinado para isso, isto é, administrar uma complexa estrutura de operacionalização do processo ensino-aprendizagem. Não fui preparado e não estive imbricado com isso: na UFRRJ, diretor de Instituto é sindico, político, exceto uma articulador de contextos de ensino e aprendizagem.
Professor: realidade ou imagem?
Longe da gestão e submerso na Psicologia, retorno prioritariamente às
salas de aula. Defronto-me com um complexo contexto e este impôs o desafio de
buscar novos sentidos para minha relação com o trabalho e com a UFRRJ, para o entendimento do desencontro e do desencaixe.
Tornava-se imperioso chacoalhar ‘o professor’ e o seu papel e posição no processo
ensino-aprendizagem.
Bem, se é que se ensina algo para alguém, quanto nos cabe do tanto de ensino e de aprendizagem que potencialmente se tem nesse processo? Durante anos eu convivi com a sensação de que aprendia mais do que ensinava, não estava seguro da minha efetividade.
Simbolicamente falando, a ideia de ensino e a imagem de um professor remetem a
uma condição de sapiência e o processo de especialização sugere um presumido
amplo e profundo domínio de conceitos específicos. Um papel que é tido como
vital e, às vezes, soberano. Eu não me vi nesse lugar em nenhum momento. Ensinar, se se consegue isso, precisava de revisão urgente.
À clássica figura do professor é projetada
uma reserva especial de conhecimento, sabedoria e capacidade de ensino. Entretanto, minhas experiências e minha
formação ampla e variada mostraram que eu estava distante do clássico
professor e que, naquele momento da minha vida pessoal e profissional, era inevitável chacoalhar.
Complexidade e desencontros
O contexto abraçava a minha intuição e mal-estar. Uma vez longe da cadeira de diretor, busquei maior envolvimento com as aulas da graduação
(nas modalidades à distância - EAD e presencial) e dei sequência ao meu retorno às salas de aula também como aluno
de Psicologia. Deparei-me então com um cenário complexo:
·
A solidão e dificuldades enfrentadas
pelos alunos no EAD e a convivência com a mediação tecnológica da modalidade
mostraram com clareza minhas fragilidades técnicas e que o potencial para
aprendizagem que existe nela é subaproveitado;
·
Durante quatro anos e meio de
formação em Psicologia, regularmente acontecia de eu sair de uma sala de aula
como aluno e entrar na sala em frente para lecionar; eu diariamente lidava com
as dificuldades no lugar ‘aluno’ para ter aprendizagem efetiva e momentos
depois era testado no ‘lugar’ professor para produzir essa efetividade; essa
situação produzia uma experiência de ambiguidade e falta de sinceridade comigo
mesmo, pois, como poderia cobrar uma coisa numa sala e não entregá-la na outra?;
·
Os conhecimentos em Psicologia e
o estágio em clínica me desafiaram pessoal e profissionalmente; muitos
pacientes do Serviço de Psicologia Aplicada, onde estagiei, eram discentes da UFRRJ e durante dois anos ouvi relatos sobre sofrimento psíquico no processo
formativo deles e o papel crucial da relação com docentes e seus métodos de
ensino nesse sofrimento; a sala de aula tornara-se um dos ambientes mais
ansiogênicos e aversivos da vida dos estudantes;
·
Dimensão relacional e afetiva: às
memórias e afetos positivos ligados a muitas pessoas com as quais convivi
tornaram minha jornada gratificante e substantiva; muitos ex-alunos tornaram-se
amigos pessoais e com eles colaboro regularmente, outros me oferecem produtiva e oportuna locução sobre a
realidade do mercado e constantemente trocam experiências e materiais comigo ou
voltam para dar palestras; essa relação demonstrava as lacunas entre a
realidade das organizações e do mercado e o conteúdo explorado por mim em sala
de aula; a dimensão relacional e afetiva estava se perdendo, entretanto;
·
A maioria dos meus alunos já
estagiava; eles chegavam cansados às aulas e com a visão de que a prática era
mais importante do que a teoria; eles realmente criam que, se houvesse uma
verdade, ela estaria no mercado de trabalho, não no ambiente de formação,
muitas vezes visto e definido como ‘pedágio necessário’, jamais como ‘via’ ou
‘caminho’; o desafio diário era mostrar a eles que a teoria também é importante
e, quanto mais estiver aliada à prática, melhor para eles;
·
Internet, laptops, smartphones
(Ainda não era Inteligência artificial!) cada vez mais presentes em sala de
aula facilitando as atividades e escancarando uma importante realidade: a
quantidade e disponibilidade de conhecimento é algo avassalador; a produção e acesso
a tanto conhecimento desafiam a...
(i) criação de cursos e estruturação de
disciplinas e
(ii) as condições do professor de se manter atualizado com o que
supostamente é melhor e de ter uma visão sistêmica e crítica sobre como se dão
transformações e inflexões na área em que ele atua;
·
Peso do transporte no desempenho
dos alunos: com o passar dos anos, chegar à Rural passou a consumir mais tempo,
energia física e mental e dinheiro; os alunos comumente relatavam esse fator e
ele era compatível com uma pesquisa que fiz junto aos alunos de Administração,
em 2011, quando ministrei a disciplina IH-113 – Administração de Transportes:
entre outras coisas, a pesquisa relatava que 18,4% dos alunos já realizavam o
par 2x2 de deslocamentos (dois de ida - dois de volta) e que chegava a 10% o
número de estudantes que semanalmente gastavam acima de 32 horas no transporte
para estudar e estagiar.
A banalização do maior ativo: as relações.
Além de já lidar
com o subaproveitamento do EAD (pela UFRRJ e também por mim) e o excesso de
trabalho relativos à produção de TCC, quando me dei conta a aula presencial
estava em processo de banalização e de evitação. Uma ironia para quem, após se entusiasmar e aprender
a desejar o estar em sala de aula como docente, assumiu os seguintes paradigmas:
(i ) uma turma da modalidade presencial é uma reunião física única de potencial
cognitivo, motivacional, emocional bem acima da média e do que raramente se vê nas
organizações; as aulas (encontros?) são uma forma de explorar esse potencial;
(ii) precisamos
aproveitar o fato de estarmos próximos para relacionarmo-nos, conhecermo-nos e
admirarmo-nos, precisamos conceber o outro de uma maneira mais ampla, não
apenas por potencial cognitivo, mas fundamentalmente pelos pontos marcantes da
trajetória, das superações, enfim, pela maneira como chegou até ali.
Eu jamais havia
pensado que um dia teríamos que procurar razões para defender a aula presencial,
justificar sua existência, garantir que ela tivesse ocupação real e substantiva,
não meramente utilitária, ilustrativa e penosa ou pedágio necessário. A cobrança
de presença em sala de aula havia se tornado um fator gerador de incômodos, virou
um artificio que garante, pelo menos, a ocupação ilustrativa: aquela em que o
aluno entra para garantir a presença e não ser punido e, por meio da
tecnologia, passeia com seu desejo e ideias por outros lugares e paragens da
crônica da sua vida universitária, como festas e polêmicas em redes sociais.
Em
outras palavras, o presenteísmo –
o estar presente, mas ausente em mente ou comportamento, afetando a
produtividade – passa a ser institucionalizado. Entretanto, ainda
que se saiba da dificuldade de chegar até a aula depois do fardo do
deslocamento, tornou-se crucial que o aluno queira e acredite no que vai
encontrar nela. Nesta vida, é fundamental acreditarmos que acordamos e saímos de casa para ir ao mundo, termos encontros com outras pessoas e produzirmos experiências substantivas.
Encontros, não aulas
Comecei a repensar a docência, sua posição
e papel ocupados no processo ensino-aprendizagem. Primeiro, compreendi que a
disciplina que ministro significava 1/49 avos de carga teórica no itinerário de
formação dos futuros profissionais e que eu precisava me ajustar
realisticamente a isso e definir como efetivamente contribuiria nesse nosso
encontro.
“Se o conteúdo é amplo e acessível em diversas fontes – hoje são
mídias – com o quê o aluno vai se conectar e no que investirá seu desejo?”, eu
me perguntava e ainda me pergunto. Quando planejava conteúdos e processos
avaliativos, eu regularmente me perguntava “como posso transformar esses 1/49
avos de experiência em sala de aula em algo efetivo e gratificante para mim e para
essas pessoas? Esta disciplina é dada no segundo período, não nos veremos mais
e não sei o que levarão desse encontro”.
Entre outras
mudanças pessoais, o complexo contexto me apontou que
são as relações interpessoais – ou encontros, resgatando a perspectiva Espinozista
– que potencializam as mudanças nas pessoas, não as informações e conhecimentos
da disciplina sozinhos. Dessa maneira, orientei-me por algumas premissas para
promover a mudança:
·
Meu afeto e desejo pelo papel que
desempenho na sala de aula precisam estar orientados àqueles momentos e à reunião
única;
·
O afeto e desejo do aluno pelo papel
que desempenha na sala de aula precisam estar orientados àqueles momentos e à reunião
única;
·
Minha experiência e suposto
conhecimento e a experiência e suposto conhecimento dos alunos devem ser
somados ao vasto e acessível conhecimento da área e com o providencial aporte
da presença de ex-alunos em sala (quando possível) e de casos práticos;
·
O momento deixaria de ser aula,
algo que alguém com suposto conhecimento ministraria para um público passivo; ele
passaria a ser encontro;
·
Teoricamente, seria o encontro entre
nossas experiências, afetos, desejos e supostos conhecimentos e o estado da
arte e da prática do conhecimento em questão;
·
Meu papel então
seria promover, viabilizar e regular tal encontro.
Quando me dei
conta, eu não era mais um professor, como as pessoas projetavam e esperavam,
mas sentia e me via como um promotor e regulador de encontros de
transformação ou encontros transformadores. Eu tinha segurança e confiança de
que os encontros e meu desempenho neles – medido pela preparação do mesmo, pela
vontade de estar nele e pela empatia e sincera disponibilidade para o outro, para
as relações – potencializariam experiências que efetivamente mudam pessoas,
inclusive a mim mesmo.
Eu não dava mais aulas, promovia e regulava encontros de
transformação numa disciplina que representa 1/49 avos do itinerário de
formação em crédito teóricos de um futuro profissional de Administração,
Administra Pública, Contabilidade e Hotelaria, publico que atualmente cursa
Psicologia Aplicada à Administração.
Um modelo em construção
O modelo de
atuação, ainda em aperfeiçoamento, ficou assim:
(i) No primeiro encontro, os alunos
recebem casos criados por mim, um mapa dos demais encontros, dividem-se em
duplas ou trios e individualmente apresentam os conceitos ou representações que
têm sobre os itens que compõem os eixos temáticos da disciplina;
(ii) O mapa indica o item que será
abordado em cada encontro, o que deve ser trazido individualmente e em grupo, relativo
ao item – geralmente definições e/ou reportagens de periódicos não-acadêmicos –
e se haverá a presença ou não de um ex-aluno para depoimento sobre o item;
(iii) Durante cada encontro os itens são
explorados de maneira geral e dentro dos casos usados na disciplina;
(iv) Durante o semestre os conceitos
apresentados individualmente no primeiro encontro são revisitados, refeitos e
os alunos comunicam como que suas posições pessoais evoluíram em relação a
eles;
(v) Ao final do semestre, faz-se nova
apresentação individual dos conceitos ou representações que eles têm sobre os
itens. O objetivo é captar o ganho que se teve em termos de ideias, riqueza
semântica, sentimentos e atitudes sobre os itens e o papel que a disciplina tem
na formação deles.
Em termos
práticos, a implementação sofre muitos reveses, pois, entre outras coisas, os
alunos não costumam frequentar a primeira semana, eles faltam bastante durante
os encontros, temos tido cancelamento de aulas por diferentes questões (energia
elétrica, falta d’água, violência no entorno, paralisações, queimadas etc.), enfrentamos greves e há muita dificuldade para se compreender o que significa
uma aula virar um encontro. Pra piorar, por vezes ainda estou oferecendo conteúdos em
encontros totalmente expositivos e precisando apresentar outro modo de
avaliação.
Entretanto, a mudança fez com que eu me sentisse mais potente e sincero
comigo mesmo e com os alunos e mais flexível e tranquilo com o inerente desconforto de não haver encaixes perfeitos entre sujeito e seu desejo e os lugares.
O que muda as pessoas são as relações
Ainda estou em fase de melhor estruturação dessa
perspectiva, mas os resultados, apesar das resistências, têm sido promissores.
O melhor indicador disso é o reencontro com alunos que não eram de
Administração, mas tiveram aula de marketing comigo em outra formação e fizeram
reingresso ou transferência. Quando cursam Psicologia Aplicada à Administração
comigo, eles deixam claro quanto que a experiência de estar em sala de aula
comigo mudou e como se sentem bem com isso.
Não é nada fácil fazer com que os
alunos entendam que o que temos são encontros e que neles devemos levar nossa
potência e conhecimento para compartilhamento e mutua afetação. Esta
perspectiva leva o aluno à compreensão de que o desejo, o conhecimento e o desempenho dele afetam a qualidade dos encontros, de todos os que ele têm, não
apenas dos que acontecem em sala de aula, e isso exige sim maturidade.
Que vá ao conhecimento quem o deseja.