sexta-feira, 6 de maio de 2016

Dia de mães

Por mais que eu me esforce para que não aconteça, os dias que antecedem e procedem o dia das mães me afetam, mexem com meus sentimentos, tocam com insistência nas portas e janelas da casinha onde repousam minhas lembranças. Mas não são necessariamente lembranças pesadas, doídas. Algumas das lembranças que na casinha residem são leves, boas, reconfortantes, pois marcam contextos de revoluções positivas que ocorreram em minha vida. Revoluções que surgiram a partir de releituras e reinterpretação voluntárias que fiz daquilo que a vida me apresentou.

De fato, os temas mãe e maternidade não estão entre os mais fáceis de serem lidados por nós. No delicado tecido psíquico, eles ganham espaço para inscrições e impressões únicas, bem peculiares, delimitando um território perigoso de ser explorado. Entretanto, por várias razões, a minha relação com esses temas e território, além de densa, também tem sua leveza e fluidez, pois é marcada por interessantes aprendizagens que tive para produzir e experimentar alegria e bem estar em vida e que sobressaíram às experiências de dor, desconforto e mal estar que também me fizeram visita desde a infância. É com bastante naturalidade que assumo que qualquer toque nesses temas e território desperta reação marcada por contradição: tem dor, lágrimas, mas também alegria, conforto, esperança. 



Neste ano farão 35 anos que minha mãe faleceu. Tenho poucos registros fotográficos com ela. A sua ausência – se já não é tão dolorida como antes, se emergiram outras leituras menos densas sobre isso – ainda é lastimada, provoca desconfortos, ainda incita questionamento fugidios, imaturos na essência, sobre essa lógica apresentada pela vida de mexer com o que mais nos aprazeria na tensa e tóxica relação entre encontros e despedidas.

Em verdade, tudo seria melhor se não houvesse: mudança na ordem de quem chega ou vai, pressa para partidas, muitas ansiedades nas chegadas ou dores na despedida. Ambas causam ansiedade, mas a despedida me faz mais mal, ainda me provoca. Recorrendo a uma imagem, diria que a danada da despedida passa seu lenço de maneira irônica sobre meu rosto à beira da estação e sai correndo para dentro do trem.

Falo em ausência e falecimento, mas um dia questionei-me se não era um ‘distanciamento técnico’ dela do cenário em que atuamos como mãe e filho. Prefiro ‘distanciamento técnico’ e o seu uso já revela uma mudança radical na maneira como interpreto essa realidade complicada que todos tem que enfrentar: o falecimento ou perda de alguém que muito amamos. 

Um dia essa mudança de interpretação ocorreu em mim: não posso transformar ou mentir para mim dizendo que algo que foi triste e me marcou virou algo alegre, mas posso fazer com que os pensamentos relativos a esse algo não sejam tão sofríveis e negativos e disparem sentimentos de dor e tristeza. Funcionou bem essa perspectiva de que eu minha mãe nos distanciamos tecnicamente do cenário onde atuávamos, de que o espetáculo continuava, de que contracenávamos sim e de outra maneira.

E tal perspectiva emerge de outros questionamentos e aprendizagens que tive. Será que ao morrer, morremos em todos os sentidos? Ou quando morremos, física e biologicamente, imediatamente ganhamos o status de um signo que, com absurda força de vida, influencia, a uma ‘distância técnica’, a vida dos que conosco relacionam-se em condições de proximidade única, como mãe e filho(s), pai e filho(s), avós e neto(s)? Signo este que tem uma distinta posição na memória das pessoas, nesse território tênue e repleto de inscrições e impressões. Creio que isso tenha acontecido entre mim e minha mãe: surpreendentemente, ela continuou influenciando a minha vida e, quando me dei conta disso, experimentei outra revoluções em minha vida. De fato, ela influenciou-me bastante depois que virou signo central no universo de significações que geram sentido à minha vida.

As lembranças com minha mãe são cada vez mais escassas, mas as dos dias que fiquei sem ela ainda abundam. Convivi com ela meros 10 anos; sentindo sua falta já estou há 35 anos. Como eram ruins os dias das mães. Como eu odiava a comemoração deles na escola. Talvez de modo instintivo ou por influência dela na direção do espetáculo, realizei que isso tinha que mudar, que eu releria esta data, que eu não podia tê-la somando-se ao dia de finados e a outras datas esquecíveis para completar o calendário das minhas tristezas e desesperanças com a vida. Assim emerge outra releitura, não muito fácil, mas providencial para sobreviver.

Quando criança eu pouco sabia e soube da minha mãe. O que eu vivia mesmo era o calor da presença e tudo o que ela representava, fazia e produzia na maneira como eu experimentava a vida. A maioria disso foi para o inconsciente. Quando ela ‘distanciou-se tecnicamente’, o calor se perdeu, a coisa de experimentar a vida deixou de ser positiva. Eu fui conhecê-la mesmo depois, e por meio dos outros, das narrativas deles sobre a pessoa que ela era, sobre a vida que levou, sobre o que pensava fazer na vida e como fez o pouco que a vida lhe deu oportunidade para fazer.

E que descoberta da minha mãe eu tive! A criança sentiu falta, o adolescente e o adulto também sentiram, conforme iam conhecendo a grandeza da mãe que tiveram. Foi dolorida a materialização do tal ‘distanciamento técnico’, mas foi muito especial entender como ela influenciou minha vida depois. Conforme eu a conhecia melhor, algo ia mudando na minha maneira de sentir, pensar e responder à vida. Ter uma mãe especial foi uma das sortes diferenciadas que tive na vida e que ajudam a explicar muito das coisas boas que me acontecem ou que fiz acontecer ao ter iniciativa para produzir a alegria e bem estar que acreditava merecer. Sim, isso não teria acontecido se eu não tivesse ido até os parentes e conhecidos para que me falassem dela. Fui às raízes, aproximei-me da minha família, abri-me aos conhecidos, até porque meu pai ficava sem jeito de falar da minha mãe.

Este fato interessante influenciou outra revolução em minha vida. Raramente me lembro de um carinho dela em mim, mas sempre que estive e estou em apuros lembro-me das histórias que me contaram de como ela enfrentou o câncer. Numa delas, ainda que doente, sabedora do que a esperava, e sentindo o peso da doença, ela insistia em ir às aulas no colégio onde estudava para recuperar o tempo perdido com a infância pobre. Os professores tinham pena, diziam para não ir, mas ela dizia que ir à aula era um gesto simbólico para mandar um recado à doença de que o jogo não tinha acabado. Quando ouvi isso pela primeira vez, eu nasci de novo, vim novamente para a vida. Sentir isso foi revolucionário em minha vida.

E isso aconteceu todas as vezes que tive acesso às crônicas de sua curta, brilhante, dolorida vida de 37 anos. A cada renascimento que experimento, eu subscrevo um acordo tácito que se estabeleceu entre mim e ela, que basicamente consiste de uma cláusula, como se ela me dissesse: “Marco, uma vez aqui, descontente com a realidade que vive, incida sobre ela: sonhe, tente, faça, não desista fácil”. Ou será que ela me disse isso em alguma instância dos nossos 10 anos de encontro e eu não me recordo?. E foi isso que ela tentou fazer: incidir sobre a realidade que a descontentava e criar novas realidades. Bem, não teve jeito, levei isso pra vida. Contrato sempre renovado.

E como é fascinante e revolucionária esta perspectiva: entender que minha mãe me pôs no mundo uma vez, e que me deu à luz outras vezes. Uma vez de maneira objetiva e todas as outras vezes de maneira simbólica; uma vez direto do seu ventre e outras vezes direto do ventre figurado que me rodeava e que só senti e descobri sua existência bem depois. Aprendi com esta descoberta um novo viés para o significado de desejar a alguém a felicidade que ele ou ela conhece e a que ele ou ela nem imagina existir. Esta descoberta, aliás, foi senha para outra descoberta também revolucionária e também ligada à figura da mãe, ao exercício da maternidade.

Conforme foi assentando-se o distanciamento técnico da minha mãe do cenário onde atuávamos, conforme eu me fortalecia para produzir alegria e bem estar, conforme renascia, eu realizava outra perspectiva interessante: ao perder a minha mãe, eu ganhei todas as boas mães do mundo. Uma vez exposto aos riscos do ‘distanciamento técnico’, muitas mães me acolheram e me deram atenção, provendo-me os elementos de alegria e bem estar que eu ainda não sabia produzir voluntariamente.

Mais: ganhei um senso claro da experiência maternidade. Eu passei a ter mais sensibilidade e consciência para e da experiência da maternidade, gerando-me habilidade para lidar com as mães do mundo, mas principalmente com as mães que me tornaram pai. Algumas das situações que afetaram significativamente a experiência de homem e de pai que tenho atualmente só aconteceram porque fui capaz de me colocar no lugar das mulheres e das mães com quem contracenei, de submeter os meus quereres e interesses individuais ao que seria um melhor resultado global. Eu sempre entendi que o melhor que eu poderia fazer aos meus filhos passava primeiro por não fazer mal às suas mães. Além de amá-las, elas fizeram-me pai.

Com o tempo ganhei habilidade para lidar com um dos maiores desafios da minha vida: a naturalização da figura, da presença e do relacionamento com a madrasta. Este senso claro da maternidade contribuiu muito para que eu e Alice experimentássemos uma melhoria significativa na qualidade da nossa relação de madrasta e enteado. Eu -- e creio que tenha ocorrido com ela também -- aprendi a prestigiar muito mais a contribuição do que nos era possível fazer, do que ficar pautando nossos dias em torno do que não ocorria devido às nossas limitações. E ela fez bastante por mim durante os anos que passaram.

Já no momento crítico do início do ‘distanciamento técnico’, naquela quinta-feira de 17 de setembro de 1981, muitas mães me acudiram. Quando me tiraram do Colégio Fernando Costa e deixaram-me na casa da tia Ana, ela própria, Darci e Neusa me puseram nos ‘ventres que seus braços formavam’ enquanto me abraçavam e davam a triste notícia. Eu estava em berços plenos e seguros naquele momento triste, confuso. Como podiam, todas as outras tias e primas vieram me acolher nos dias e anos que seguiram: foi assim que ganhei mães tão especiais nas tias Iris, Maria José, Mariana, Terezinha, Julinha, Petita, Diná e Cida; foi assim que Irene e Chiquita me recebiam na casa delas quando meu pai me deixava lá nas férias e nos finais de semana; foi assim que ganhei uma mãe na tia Beth, em Muriaé, e na dona Tereza, em Paracambi;  foi assim com a madrinha Dorinha que -- vendo-me obeso, pequeno, exposto e frágil -- levava-me ao médico para consultas e exames, lutava para me alimentar com legumes e verduras para que eu vencesse recorrentes problemas no sangue e cuja causa só conheci bem mais tarde; foi assim que a vó Sebastiana também foi minha mãe; é assim que Rosângela, por vezes, exerce seu amor de mãe comigo; foi assim que tive mães especiais nas tias Naná e Conceição – ah, com elas passei momentos diferenciados, tivemos um grau de liberdade e confiança para falar de coisas extremamente sérias sobre nossas vidas.

Especialmente, fui adotado por outras mães – mães de amigos – que desempenharam papel central em minhas vidas. Foi assim com a tia Ilza, mãe do Márcio que, em 1983, vendo-me perdido durante as tardes, levou-me várias vezes para dentro de sua casa para lá estudar, alimentar e ter supervisão. Foi assim com a tia Severina, mãe do Betinho, que, vendo meus sérios problemas dentários, acordava de madrugada aos sábados para marcar lugar na fila do dentista Castanheira e negociava com ele preços melhores para mim. Ela saia de madrugada, marcava o dentista, voltava, acordava-me, servia-me café e eu ia cuidar do tratamento. Fora isso, inúmeras outras vezes comi e dormi em sua casa, inúmeras vezes ela e o 'lar' me acolheram. 


Sou muito grato à experiência com a maternidade. Sou grato à minha mãe, às mães que me acolheram quando mais precisei, àquelas que subitamente emergiam nas mulheres que me amavam e às que desesperada e equivocadamente busquei em todas as mulheres com quem me relacionei -- neste caso, não encontrá-las tornou-me mais forte, ajudou-me a tornar-me homem. 

Há algo a celebrar no meu dia de mães e peço mil desculpas às mães que esqueci de mencionar. Mas sei que elas se sentem representadas quando falo de todas as boas mães do mundo. 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

A falta que eles fazem

UFRRJ, 19 de Fevereiro de 1997, à tarde. Experimentei hoje um momento muito interessante da minha curta existência. Marcou-me por sua originalidade, pelo ineditismo com que fui apresentado a mais uma das incríveis facetas do viver. Hoje, por alguns instantes, por alguns metros, experimentei, e pela primeira vez, uma real e incômoda sensação de estar sozinho no mundo, acompanhada esta de uma terrível sensação de vazio existencial. Eu estava sozinho e esvaziado.

Estava andando pela UFFRJ, do Prédio principal (P1) para o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), lendo a cobertura jornalística do falecimento de Darci Ribeiro. Concentrado na leitura, segui meu caminho a passos muito lentos, calmos, enquanto era conduzido, pelo autor da matéria, pelos diversos momentos da vida de uma das personagens mais brilhantes e marcantes da nossa história. Quando comecei havia sol, não ventava. Embora fosse à tarde, fevereiro, havia muita gente transitando pela Rural.

A notícia da morte já me causara um grande vazio. É muito ruim vivenciar perdas, e estas tomam contornos diferenciados quando se trata de pessoas cujos pensamentos, valores, envergadura moral e qualidade do trabalho as tornam imprescindíveis para a formação da nossa imagem de cidadão, da maneira como nos vemos e nos definimos. Embora conhecida a gravidade da doença, Darci Ribeiro desapareceu, simplesmente desapareceu. Fica a obra. O conteúdo da reportagem fez aumentar essas incômodas sensações; as palavras sensibilizavam, emocionavam, foram certeiras pela vida e obra de Darci Ribeiro.

Quando lia uma das últimas frases, onde Darci Ribeiro explicava ao médico por quê sairia da UTI, abandonaria o tratamento e iria para casa, aconteceu o que marcaria para sempre este dia. Parei e comecei a refletir sobre o significado da sua explicação, sobre aquela contundente reafirmação da sua vontade de viver, ainda que implicasse na saída do hospital. Ele, paciente terminal, sai do quarto e vai pra vida, troca a paisagem da dor pelo cenário da vida, vai ficar ao lado dos seus e dos elementos que melhor definem o indivíduo que ele encerrou. Uma paradoxal demonstração de amor à vida.

Fechei o jornal, levantei a cabeça e olhei para os lados. Pela primeira vez, aqui na UFRRJ, não encontrei ninguém. Ninguém ia ou vinha pelo caminho entre o P1 e o ICHS; ninguém vinha ou ia pelo caminho entre os alojamentos e o ponto do Colégio Presidente Dutra. Não notei qualquer pessoa que tenha passado por mim. Nada de carros, motos ou bicicletas. O tempo tinha ficado nublado, ventava muito - chuva forte estava a caminho.

A caminhada, normalmente rápida, estendeu-se por quase 40 minutos. Eu estava sozinho, momentaneamente esvaziado do lúdico e do lírico que tão nobremente alimentam essa nossa breve caminhada pela vida e que sempre nos chegam por meio dos sonhos, apostas e obras dessas pessoas que são imprescindíveis.

sábado, 19 de março de 2016

Um dia na vida

19 de março de 2016. Sábado. Acabei de ter outra experiência marcante nesta minha breve e ordinária vida.

Desde que me acidentei há dias, magoando severamente ligamentos e ossos do tornozelo, hoje foi a primeira vez que fui a pé para minha casa, dado que estava impossibilitado de subir escadas.

Submeti-me à experiência porque preciso recuperar segurança para agir, mas principalmente para reativar os sensos de autonomia e de não sentir-me ou fazer de mim um estorvo. Se estes sensos ficam significativamente expostos quando você passa a depender parcialmente de outras pessoas, imagino como ficam em casos mais severos.

É uma experiência e tanta você passar vinte minutos de sua vida observando o terreno onde pisa com a concentração que não lhe é peculiar: eu senti integral e vividamente todas as pisadas que dei hoje, não houve uma como a que dei e que gerou o acidente pois estava com a atenção voltada para o mundo. Hoje eu vasculhei o terreno onde pisaria para observar contextos, objetos e desníveis que pudessem gerar um tropeção ou escorregão e repetir o episódio de dor e recomeçar o ciclo da dependência.

Eu praticamente dialoguei com o terreno onde escolhi para viver e pisar, uma conversa séria e franca entre mim, ele e todos os objetos que nele repousam e que ilustram a realidade social que experimentamos diariamente: a sinalização e divisão de poder, o sentido de igualdade e fraternidade que temos e exercemos, a relação com o consumo e o descarte de mercadorias, enfim, a cidade conforme ela é pensada e produzida pelo poder público para você provar diariamente.

Eu tive a chance de cair após tropeçar em latas de bebidas, calçadas e quebra-molas irregulares, caixas de alimentos e produtos químicos e escorregar em chorume e restos de sacolas de lixo à espera da limpeza urbana, mas que antes foram visitadas por cães e gatos.




Eu experimentei por meros vinte minutos os desejos e angústias daqueles que tem seu potencial de mobilidade totalmente ceifado, e que dependem não de maneira parcial, mas estruturalmente de pessoas próximas. Experimentei a angústia daqueles que dependem de uma sociedade que consiga fazer com que o seu terreno e a maneira de agir dos cidadãos permitam que todo e qualquer cidadão possa se apropriar desse terreno e conduzir sua vida, que possa se sentir seguro e com os sensos essenciais dignamente ativados.

Lento como nunca estive, mas como sei que à frente estarei dado que envelheço, discuti hoje com meios-fios insolentes e indiferentes, com blocos de concretos postos por moradores para afugentar carros que estacionam, com carros que estacionam e tomam as calçadas e afugentam pessoas. Discuti hoje com pessoas, mas com muitas pessoas mesmo.

Sobre as pessoas, como é interessante sentir a diversidade de energia que brota dos olhares: tem aquele olhar de pena, tem o da indiferença (ou mera alegria disfarçada em cara de paisagem), tem o do estímulo, tem o da ironia, e tem aqueles que sempre comunicam coisas sem sentido, mas que não deixam de cumprimentar. Fiquei curioso para saber das pessoas o que meus olhares normalmente comunicam para elas para poder sintonizá-los com a produção de uma vida melhor para todos nós. O que meu olhar comunicava hoje para elas?

Mas tem algo muito mais interessante do que os olhares: a reação dos motoristas ao incauto e manco que, não tendo calçada, ousa ir pela via atrapalhando as flanadas matinais em seus possantes veículos. Teve um motorista que, podendo virar o volante e diminuir o meu experimentar de uma angústia, me forçou subir numa calçada de meros 40 cm de altura, não refrescou em nada para mim e fez cara de "você está no meu terreno, saia". Teve um que ensaiou o mesmo, mas, ao me reconhecer, parou e demonstrou empatia. Sim, fosse outra pessoa, ele não pararia, continuaria a demonstrar toscamente as linhas que informam o território partido. Teve o cachorro solto na rua que, embora alimentado, fez sua ameaça -- é imanente nele esse lidar com a coisa do território, lamentável é saber que estamos muito parecidos com ele.

Também muito importante: como é pequeno o número de pessoas que querem estender o braço e dizer: vamos nessa, estamos juntos. A mesma sensação que tive quando me acidentei numa rua da Tijuca e apenas duas pessoas falaram comigo: uma que estava ao meu lado e pegou gelo para pronto atendimento e outra que passou, me viu no chão e, sem parar, disse: "meu irmão, abrace sua mochila porque vão tentar roubar".

Ainda mais importante: é imperativo que, experimentando as dificuldades dos que muito precisam e pouco tem, não deixemos que uma breve experiência de angústia obstrua o reconhecimento do auspicioso de nossa vida e caminhada, e que mudemos nossas atitudes em relação à situação daqueles que menos auspícios vivenciam.

Foram vinte minutos de mais um dia na vida, de outro e bem diferente dia na minha breve e ordinária vida, mas que é o resumo da maioria ou de todos os dias de muitas pessoas.

É uma experiência marcante que preciso internalizar com sabedoria. Sim, eu poderia ter aprendido pela observação: tal espetáculo está aí todos os dias, não é mesmo? Mas teve que ser assim, pois não seria de maneira diferente que eu exporia os caprichos do meu egoísmo, vaidade e narcisismo à necessidade de negociarmos seriamente quem e o que deve informar como será o restante dessa minha breve e ordinária vida.

Vida que no que ela tem de ordinária, é muito mais auspiciosa do que a da grande maioria das pessoas dessa e de outras cidades.

Caminhei para ver a paisagem da foto abaixo, para novamente sentir a lufada de vento que diariamente comunica o auspicioso que experimento na quase totalidade das minhas passagens por esse território. Estava com saudade. Sim, contemplar é parte do auspicioso desse minha caminhada. Agradecer e mudar de atitude também devem ser.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A melhor escola do mundo

Muriaé, 13 de agosto de 2015. No dia 12, decidi começar por Muriaé o que chamei de ‘Necessário retorno às origens da minha origem’, que consistia basicamente em visitas às cidades onde meus pais nasceram, Muriaé e Pedro Teixeira. Nessas viagens, além de visitar meus primos e amigos, solicito que falem da vida que meus pais e demais familiares tiveram, do que faziam e de como eram na infância e na juventude; procuro obter informação para ler e entender fatos e contextos que explicam as trajetórias que meus familiares construíram em vida. Trajetórias que, com raras exceções, são dignas de leituras bem detalhadas para obter boas aprendizagens sobre como lidar com a vida e seus desafios. 

A vida deles não foi fácil e ela foi a escola que tiveram, ao contrário de nós, segunda e terceira gerações, que tiveram e têm acesso às melhores escolas do sistema educacional. Não conheci meus avôs paternos e tive pouco contato com minhas avós maternas. Meus familiares não deixaram documentos, não registravam suas façanhas, todo esse patrimônio histórico familiar, tudo o que se sabe está no depoimento e na memória de algumas pessoas que estão envelhecidas, lutando contra o pouco apreço do tempo para com as palavras sem registros. Toda prosa que traz a vida dessas pessoas à mesa, que conta suas aventuras e desventuras, é para mim o tempero especial de um delicioso banquete.

Outra coisa que gosto de fazer em Muriaé e em Pedro Teixeira é andar pelas ruas para apreciar as transformações nas construções e nos hábitos dos moradores. A privilegiada condição de observador, ainda que suspeitíssima nos dias atuais, permite acessar situações repletas da rica substância oriunda da mistura de ambiguidades, tensões, contradições, esperanças, apostas e temores experimentados pelas pessoas quando lidam com contextos de mudanças – as que promovem e das quais são apenas meros expectadores. Essas cidades, ainda que em ritmos bem diferentes, estão mudando. Ando bem devagar por elas, registro o que vejo e sigo comparando com os registros anteriores, formando um quadro particular e bastante subjetivo de análise e avaliação dessas mudanças.

Hoje, aproveitando carona do primo Fábio Gonçalves, comecei a andança pela praça João Pinheiro. Gosto de olhar para as construções antigas que ainda sobrevivem e ficar imaginando onde o trem passava e como era a rotina da cidade atualmente adoecida pela quantidade de carro transitando. Também andei pelo comércio em busca de promoções, de produtos que, ainda que fora da moda, atendem perfeitamente às minhas necessidades atemporais.

Decidido a fazer logo as visitas aos parentes, saí da praça, peguei a rua Arthur Bernardes e fui seguindo em direção à Barra, bairro onde moram alguns parentes. Dei uma parada quase que obrigatória para ver os colégios Santa Marcelina e São Paulo. Gerações de Murieenses se formaram nesses colégios, entre eles muitos primos. Uma lembrança que tenho das minhas idas à Muriaé era o cuidado que minhas tias tinham com o ano escolar dos seus filhos. O ritual mexia demais comigo, pois da compra do material escolar e a preparação dos uniformes, passando pelo encapar os cadernos e livros, tudo era feito com muito calor, capricho, envolvimento, coisa com a qual não pude mais contar com a partida de minha mãe.

Quando passava em frente à praça da antiga prefeitura, parei para apreciar a construção. Rapidamente me dei conta de que estava de costas para o belo prédio da biblioteca da cidade. “Preciso visitar uns livros”. Ironicamente, no início da semana, pensei em criar uma campanha de incentivo à leitura nas redes sociais e cujo tema era ‘Visite um livro’ e realizado que eu próprio não tenho destinado às obras e aos seus criadores o tempo e atenção que merecem. Mais irônico ainda era ser aquela importante biblioteca uma ilustre desconhecida para mim. Para marcar ainda mais o momento, nos primeiros passos dei de cara com uma exposição sobre Pedro Nava. Há pouco tempo, conversando sobre meu desejo de ser escritor e lamentar a idade que tenho, Césas Froes, colega de trabalho, me lembrou sobre Pedro Nava e falou que não há idade certa para transformar inquietude e estranhamento em literatura. Pedro Nava é outro ilustre desconhecido para mim e, conforme lia os cartazes, realizava que o tanto que desconheço dele revela apenas pequenos detalhes do tamanho do meu desconhecimento e ignorância em relação à literatura brasileira.

Ao sair da biblioteca, me deparei com um livro para registrar presenças. Preparava o registro da minha presença e me deparei com uma situação que está entre as mais marcantes da minha breve existência. A pessoa que assinou antes de mim deu uma demonstração sábia, simples e ao mesmo tempo forte do valor dessa que é a melhor escola do mundo: a vida. Em uma coluna que praticamente obriga ao assinante dizer a escola a que pertence, ele escreveu ‘VIDA’. Lamentável a gerência da biblioteca ter a necessidade de colocar uma coluna chamada ‘Escola’, não dando chance ao visitante que não é estudante de poder registrar mais sobre ele, a razão da presença e a qualidade da experiência que ali teve. É um livro que foca nos estudantes do sistema formal, cobrando que informem o nome da escola que frequentam, como se só eles fossem lá, como se ali fosse exclusividade desse tipo de aprendiz; não é um livro que se abre para registrar a presença e experiência de todos aprendizes que ali visitam. 



Esta pessoa, que assina Hélio M F, 55 anos, deu, e com muita elegância, uma resposta à esdruxula sensação vivida pelo visitante que não é estudante ou não estudou, mas que é aprendiz, ou que, sendo de fora da cidade, não vê sentido em colocar o nome da escola onde tenha estudado. Na coluna escola, Hélio M F colocou um retumbante ‘VIDA’, a escola onde certamente se formou e da qual não tem vergonha alguma para demonstrar o pertencimento. Falei com o atendente se ele tinha visto aquela obra de arte e logo fui informado de que Hélio sempre faz aquilo. Infelizmente, apesar de conhecida a situação, a gerência da biblioteca não faz nada. Ele registrou que o motivo era leitura. Eu, atônito, registrei curiosidade, quando deveria ter colocado ‘aprender’. 

Não sei se Hélio faz aquilo para provocar ou reclamar de fato. Entretanto, como a gerência da biblioteca não aprimora a maneira como registra frequentadores e suas metas, não faz um retorno necessário às origens de sua origem, Hélio insiste em lembrar que os alunos da Escola da VIDA, independentemente de suas origens, também visitam os livros.

   

terça-feira, 14 de abril de 2015

Atrás da chave

Domingo, oito de março de 2015. Acordei na casa da minha namorada e não encontrei as chaves da minha casa. O dia prometia: preparávamo-nos para fazer um passeio e eu precisava tão somente cuidar dos cães, trocar de roupas, tirar o carro da garagem e aproveitar o nosso tempo.

Procurei bastante as chaves e a demora em encontrá-las dentro da paisagem conhecida – na casa, no carro dela e onde estivéramos ontem – angustiava-me. ‘Onde, afinal, pusera eu as benditas chaves da minha casa?’, perguntava a mim mesmo em sonoros pensamentos. Meu mal estar com a situação era notório e, para agravar, minha namorada não demonstrava empatia, preferindo, após breve ajuda, ficar parada e fazer a famosa cara de "a chave é dele e ele é quem tem que se virar".

Apesar do mal estar, meus pensamentos automaticamente conduziam-me para uma outra paisagem – a da abstração –, um pouco longínqua, mas que a alçamos com facilidade quando declinamos ao óbvio que rotineiramente nos espreita. ‘Por que deixei-me nessa condição de não poder exercer plenamente meus planos e escolhas e justamente por causa do sumiço das chaves de casa?’, questionei-me. Esse padrão de divagação sinaliza minha chegada à fronteira entre as paisagens. É nessas horas que recorremos ao que acreditamos saber de psicologia, aderindo a bordões como: ‘Pense no significado de perder a própria chave – isso tem algo a lhe dizer’; ‘Tem fatos por trás do óbvio pedindo sua atenção, reclamando uma leitura diferenciada sua’.

Longa viagem de reflexão para um domingo de manhã, para a necessidade óbvia de alimentar os cães e dar a eles atenção merecida. Tratei de ligar para a pessoa que trabalha em minha casa e que geralmente sai com essas perguntas de difícil resposta. Ela comenta: como é que você perde as chaves da sua casa?. Evitei seus difíceis questionamentos. As chaves viriam por uma das Kombis que ela pega para ir trabalhar. Caberia a mim ir até o ponto final e pegá-las, o que demoraria um pouco mais que de costume dado que no domingo a frequência diminui bastante e porque, afinal, é dia de feira.

A feira fica ao lado do ponto final das Kombis e seu movimento influência a rotina daquela parte da cidade de Seropédica – tudo ocorre no ritmo da feira, no vai e vem possível e completamente caótico de pessoas, veículos, motos e bicicletas. Ao final, outra recomendação dela: ‘olha, vai demorar um pouco para chegar’.

Terminada a ligação, dirigindo-me ao ponto final, ultrapassei de vez os limites entre as paisagens e rendi-me à divagação. Comecei a perguntar-me: ‘de onde eu não quero sair ou aonde eu não quero entrar, perdendo essas chaves?’. Rapidamente cheguei ao ponto final, sem ao menos saber em qual Kombi viria e quando. Para chegar lá, passei apressado pela feira, esbarrando em pessoas, indiferente àquela paisagem real.

— Já estou aqui. — digo após saber do número da Kombi.
— Hoje é domingo, vai demorar. Saiba esperar. — reforça ela.
— Pode deixar, espero. Demorei nove meses para nascer. — finalizo de pronto.

Após o breve contato, dou-me conta de que foi a primeira vez que fiz uso dessa expressão e que demorei bem mais do que nove meses para nasce. Durante um bom tempo minha mãe tentou engravidar, o que só ocorreu após tratamento com hormônios. Realizo ser um fato sabido, porém altamente negligenciado de minha parte; que passei boa parte desses 43 anos em correria desabalada pela vida, experimentando bastante angústia e desconforto para alcançar logo alguns objetivos que elegi como especiais; que considerei alguns pontos da minha trajetória como sendo mais importantes do que a edificação dela como um todo; que a trajetória soma o tempo que paguei nos bastidores dos sonhos, vontades, tentativas, limites e frustrações dos meus pais a este tempo que transcorre; que a trajetória liga dois continentes simbólicos – este após o nascimento e o outro em que meus pais ficaram tentando ter o primeiro filho.

Prossegui na divagação: ‘como teria sido minha vida se eu não tivesse negligenciado essa realidade, se tivesse sido mais tranquilo e comedido na abordagem da relação entre essa dimensão especial do meu viver e o tempo em que ela transcorre?’, ‘como teria sido minha vida se eu tivesse dado atenção àquelas vozes sorrateiras da intuição que, algumas vezes, disseram-me: “importante para você não é o continente em que está, nem sua duração,  mas o conteúdo com que vai preenchê-lo”’.

Surpreendentemente, esperei com calma a chegada das chaves, sentado em um meio fio naquela pitoresca paisagem seropedicense. Assim que as peguei, decidi passar lentamente pela feira, tentando ter outra percepção daquela realidade. Decidi que olharia com calma, e detalhadamente, o “conteúdo daquele continente de todas as manhãs de domingo”, enriquecendo de novos significados o novo tempo em que minha trajetória acabara de entrar, pois, afinal, havia encontrado as chaves.

Dentro da feira encontro uma prima muito querida, que me diz que outra prima, também muito amada, está muito mal no hospital  – ela caíra de moto ontem, quebrara alguns ossos e estava com hemorragia.

Aos 68 anos, há pouco tempo esta prima começou a frequentar os treinos de motocross do neto e a dar algumas voltas de moto. Seu filho foi um grande corredor – um campeão – e seu neto ainda compete e tem o mesmo sucesso. Dias atrás, em breve conversa, disse-me ela que viu no motocross uma renovação para os dias em que se encontra: deprimida, tensa com a realidade simbólica de substituir a mãe recém-falecida no cuidado aos irmãos altamente dependentes.

— Ela viu na velocidade a resposta para muita coisa que sentia —, disse-me a prima em natural tom de pesar e ultrapassando com facilidade peculiar a fronteira entre as paisagens do óbvio e da abstração. Ela tem esse dom.

Concordei plenamente, como se fôssemos dois contumazes confidentes sobre as escolhas mais complexas que nossos próximos (e os nem tão próximos assim) fazem sobre quais portas abrir ou fechar, quais caminhos a seguir e qual velocidade imprimir; como se habitualmente aplicássemos aquela nossa presumida sabedoria ao nosso próprio dia-a-dia. Logo eu, que tinha perdido as chaves.

Fiquei sabendo que ontem os técnicos haviam pedido para ela não correr demais, para andar sem pressão, pois aquela era a vitória, a chave para ela: encontrar um hobby e viver toda empolgação que ele desperta, pois a competição, para ela, era mero detalhe. Não deu. Pelo que entendi, ela acelerou, caiu e encontra-se internada e com alto risco de ficar paraplégica.

De lá fui atrás de noticias sobre o estado de saúde da prima e ter mais informações. Entrei em contato com o desânimo das pessoas, suas dores e suas reflexões objetivas sobre "obviedades" relativas ao fato de uma senhora de 68 estar andando de moto, expondo-se ao risco dessa atividade. Não encontrei quem se dedicasse aos por quês dela, do alto de seu livre arbítrio, usar essa atividade – buscar essa chave – para alçar o que queria, pois, talvez, aquela não era “a chegada, mas apenas um ponto de passagem”. Eu Chegara tarde àquela divagação: quando ela me contou que tinha começado a treinar, eu pensei tão somente que se tratava de uma distração, ocupação de mente com algo que, afinal, era conteúdo habitual do seu continente de quase sete décadas de extensão e duração. As motos fazia parte do mundo dela.

Fiz o que pretendia fazer e voltei à casa da minha namorada para olhar mais detidamente a paisagem conhecida. Sentei-me no banco de passageiro do seu carro e refiz a busca. As chaves estavam em uma posição específica embaixo do banco e para onde eu anteriormente havia lançado um olhar displicente e recusado-me a estender um pouco mais a mão para vasculhar a área. 'Por que recusei-me, naquele instante, estender um pouco mais a mão?', perguntei-me com as chaves à mão. 

Não fizemos o passeio nem aproveitamos o nosso tempo. O dia foi péssimo, pois, além da tristeza com a situação da minha prima, eu ainda prolonguei meu descontentamento por não ter vivenciado, do jeito que queria, o envolvimento de minha namorada para encontrar as chaves que, quem sabe, me tirariam de onde eu precisava sair ou me colocariam onde eu precisava entrar.

(Os dias se passaram e eu pretendia visitar minha prima, pois queria ouvi-la, confortá-la, dar a atenção e carinho que sempre me dera; tínhamos intimidade para essa "abertura de porta" que seria tênue, densa e tensa. Não deu. Aos dezesseis de março ela veio a falecer, após os médicos terem debelado a forte hemorragia, feito a primeira cirurgia reparadora; quando ela estava  bem).

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Proteja seus sonhos

Usando linguagem que me é peculiar, e tentando relacionar a escolha profissional com o desafio de edificar uma trajetória de vida digna, ofereço uma leitura desses 20 anos de formado em Administração.

Há 20 anos administrador formado, 43 anos de idade, mas ainda em processo de consolidação para desempenhar decentemente as atribuições dessa carreira e função. Ser um bom tomador de decisões ou um grande estrategista, por exemplo. Em uma dessas atribuições preciso e muito melhorar o desempenho: gerir o complexo de atributos cognitivos, culturais e emocionais que todo grupo encerra.

Todos os dias acordo e durmo com a sensação e a certeza de que ainda tenho muito a aprender. Porque é imanente à função de gestão que todo bom gestor desenvolve e protege os ativos ou principais recursos de uma organização, evitando uma gestão temerária. Como desenvolver e proteger ativos sem conhecimento? Gerenciando aprende-se muito, principalmente que não existem ganhos sem que se incorra em custos e sacrifícios.

Não tenho mais os 19 anos de quando deixei o Colégio Técnico da Universidade Rural (CTUR) para entrar na UFRRJ e ainda assim continua extremamente delicado pensar na gestão dos ativos que podem constituir ou fazer parte da trajetória de uma pessoa por esta vida.

Olhando com cuidado, vemos que uma vida implica, com o passar do tempo, num misterioso e desafiador processo de transformação de ativos extremamente delicados (sentimentos, valores, atitudes,  comportamentos e sonhos) em ativos não menos delicados, como conhecimento técnico e profissional, sabedoria, reputação, redes relacionais e patrimônio material ou ser economicamente ativo.

Entendo que envelhecer seja isso: transformar sonhos e sentimentos – o que temos de maior valor na juventude – em todos os outros ativos sequenciais, até chegar à fase em que constatamos que tudo o que temos, de fato, é sabedoria, lembranças e saudade. Ativos estes que ainda podem ser corroídos pela inexorável dinâmica da realidade biológica quepor vezes nos traz, antes do perecimento absoluto, o esquecimento total.

Admitidas algumas exceções, passamos boa parte desse processo de envelhecer alavancados, isto é, dependendo e muito dos imperiosos aportes que só os outros podem prover. Quando jovens, temos muitos sonhos e sentimentos, mas quase nada dos outros ativos, dependendo bastante das constantes negociações de tempo e espaço inerentes ao que nomeamos "busca por oportunidades (ou seria aquisição de crédito?)". Quando amadurecidos, ainda que tenhamos sido felizes ou muito tristes, estudados ou não, que sejamos ou não capazes de ensinar ao outro, temos sim bastante sabedoria, toda ela devidamente tatuada no que brejeiramente chamamos “lombo”. Ao final, todos os créditos que amealhamos são imobilizados no "lombo". 

Aos 43 anos, levo comigo a certeza de que sei muito pouco, o que por vezes me assusta, dada a frenética produção de conhecimento. Mas isso não me desanima, pois se há o muito que não sei, não existe o que eu não possa saber. O sopro de vida para manter-se aprendendo é outro ativo que devemos proteger.

Os títulos que amealhei, se por vezes afagam o ego e garantem alguma liquidez, na maioria das vezes não me são uteis – nem deveriam ser – para lidar com o constante desafio de gerenciar os ativos imanentes à trajetória. Há uma fase da vida em que o título que lhe confere bom acesso a crédito não é o de doutor, mas o de confiável, de bom pagador.

A profissão de professor, esta sim, uma grande provedora de momentos felizes. Mas sou um mero professor, um dos que, num semestre desses da vida e numa disciplina específica, cruza a trajetória de muitos outros administradores.

Aos trancos e barrancos, tentativas e erros, aproveito a dádiva de ter a rede relacional – formada de amigos, colegas e parentes – que me deu suporte nesta vida. Se não fossem essas pessoas, eu não teria cumprido o pouco que andei. O que tenho de material, aprendo, não é motivo de orgulho, e, se é para ter orgulho, que seja da saudabilidade e vigor transformador dessa rede relacional. Orgulho-me de tê-los por perto e a eles muito admiro, pois continuam fazendo muito.

Apesar dos meros 43 anos, por vezes a sabedoria dá sinais do seu processo de consolidação. Por exemplo, às vezes surpreendo-me com algumas soluções que apresento para problemas que me criam ou que eu mesmo crio para mim e com os desafios que coloco-me para encarar os dias que chegam. Sim, é sim sinal de alguma sabedoria sendo tatuada no lombo. É o que tenho a dizer sobre alguns sorrisos que trago estampados no rosto em situações em que outrora estaria chorando ou amarrando uma cara de assustar. O feedback que recebo de minha filha, Maria Luiza, é o melhor certificado dessa consolidação, e com ele protejo a riqueza que é esse amor que sentimos um pelo outro.

Lá atrás, em 1988, quando entrei no CTUR, queria ter logo uma profissão para ser independente do meu pai. Enquanto estudante, conheci a área de marketing e comecei a sonhar intensamente em ser profissional de marketing ou de propaganda. Fui para o curso de Administração pensando em ser um executivo de marketing. Inclusive escrevi num diário que eu jamais seria professor. Sim, gastei nessa escrita muitos dos créditos que temos para dizer coisas sem se preocupar com o impacto do que estamos dizendo sobre nossas próprias vidas.

Cheguei à UFRRJ com muitos sonhos, mas com algum dinheiro e conhecimento que amealhei no ultimo ano do CTUR, quando vendi algumas coisas da horta escolar e, junto com um primo, comecei a vender peixe em Seropédica. Fiz um concurso público e tornei-me servidor de nível de apoio da UFRRJ. Formei-me Administrador sem muitos sustos, pois tinha uma reserva.

A semana que culminou no dia 24 de setembro de 1994 foi intensa e desafiadora. Eu era puro amor e sonhos, os caros e delicados ativos intangíveis que eu tanto sentia. No dia 23 de setembro, na rua onde morava, fui surpreendido pelo pedido de noivado mais espetacular que experimentei. A aliança nos dedos intensificava a conexão entre os sonhos de ser executivo de marketing e o desafio de ir morar em BH. Na formatura, lembro-me, apesar das apreensões com o futuro, eu era um homem experimentando gostosa e verdadeira alegria. Passaram-se vinte anos.

Os vinte anos culminaram num administrador, professor de marketing, pai, irmão, colega de trabalho, amigo, cidadão, em busca da edificação de uma trajetória de vida digna. Foi-se o executivo, mas a arte do possível fez-me professor. Aqui estou, 43 anos, cada vez mais atento à responsabilidade de continuamente transformar e proteger ativos ou, lido de outra maneira, de esmerar-me para que seja o menos oneroso possível a meu corpo e minha alma transformar sonho e sentimento em alguma sabedoria.

Portanto, se há algo que eu possa dizer para alguém, a título de conselho ou advertência, é: proteja seus sonhos. O desafio de protegê-los vai dar um toque a mais de sabor à sabedoria que lentamente vamos acumulando.

Marco Souza

24-9-1994 --> 24-9-2014

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Aprendizagens que não cabem mesmo em uma embalagem

“A vida é uma escola”, ouvi há bastante tempo. Eu que já tinha lá minhas diferenças com a escola formal, fiquei ainda mais assustado. “Se aqui na escola está assim, imagine quando eu sair daqui para enfrentar a vida”. Diziam-me para estudar e ser alguém na vida e isso me era assustador.

Àquela época também me diziam que só havia uma vida. Era ‘vai ou racha’, ‘tudo ou nada’, ‘aqui se faz aqui se paga’. Também tinha uma apavorante, mais ou menos assim: ‘aprende agora, se não é o mundo quem vai te ensinar, e sai mais caro, às vezes pagamos com a própria vida’.  Que horror ouvir aquilo. A coisa era difícil de ser apreendida, pois tinha escola, mundo e vida e toda aprendizagem tinha que caber na mesma embalagem, numa mesma vida e eu não sabia se daria conta.

Durante algum tempo achei que foi a escola que não me ofereceu oportunidades e experiências que ajudassem a ter uma compreensão mais consistente sobre o que era a vida e o mundo; depois é que entendi que eu é que não tinha consistência para entender o que a escola me mostrou sobre o que eram a vida e o mundo.

Sobre o tempo ou a passagem dele, na escola eu só lidei em Física – quando sofria para entender que o tempo tinha relação com a velocidade e a distância –, em Língua Portuguesa – quando esclareciam sobre os tempos verbais – e no campo – quando ensinavam sobre o preparo do solo, escolha e plantio da semente ou da muda e sobre tratos culturais e colheita. Não tive laboratório para aprender sobre o tempo de ou numa reação química. Mundo era Geografia, vida era Biologia.

Recentemente, ao ler meu diário de 1996 – ano que batizei como ‘o que demoraria para acabar’ – tive uma demonstração de como passei onerosamente pela vida, de quanto desperdicei, de energia mental e física, para lidar com os desafios da embalagem única. É um diário de quase 600 páginas onde demonstro uma ansiedade louca para lidar com o tempo, querendo acelerar coisas para chegar logo ao ‘próximo prato’, mas sem viver plenamente o que tinha para comer no ‘prato à minha frente’. Após a leitura, decidido, disse a mim mesmo: “Relaxa, vá devagar, dê tempo ao tempo. É hora de ser sábio e saiba que você está envelhecendo”.

Hoje, quando saia de casa e fechava o portão, tinha à frente dois vizinhos, dois senhores de idade, experientes, que conversavam alto e anunciavam que iam à feira. Pensei: “Que legal, esses já fizeram suas vidas, cumpriram seus compromissos; são escolados, senhores do seu tempo e agora caminham tranquilos para fazer a feira”. Comecei a acompanhá-los, tentando ouvir a conversa, mas ainda estava bem distante.

Quando chegou no primeiro cruzamento, eles pegavam à esquerda e seguia direto. Vi que eles pararam e começaram a gesticular um para o outro. Quando cheguei mais perto, um deles olhou para mim e disse:

─ Tô falando para andar mais rápido e ele diz que a feira não vai sair do lugar. Humm, quem não tem pressa é porque não precisa chegar a lugar algum.

O outro senhor, contrariado com a fala do amigo, virou para mim e disse: 

─ E quem disse que pressa é garantia de chegar a algum lugar? O que você acha que devo dizer para esse velho chato e apressado?

Surpreso com o que me mostravam ‘os dois professores’ cheios de vida e mundo em suas costas, logo relacionei a situação com o que tenho pensado sobre como vivi e vivo. Esbocei um sorriso amarelo e caí no lugar comum, poderia ser mais profundo:

─ É, tem que negociar direitinho as vontades de vocês aí.

Os amigos foram resmungando e gesticulando rua afora e segui meu rumo pensando na resposta miserável que dei e que sequer refletia algum aprendizado que carrego nas costas dessa embalagem. Afinal, como eu negócio as diferentes vontades que tenho, com as diferentes maneiras que se pode aprender nessa ‘escola-mundo-vida’ e com o que, afinal, deva ou não caber numa mesma embalagem?